Construir um novo perfil profissional é criar o próprio espaço no mundo
Vincent van Gogh (1853 – 1890), Paris, Dezembro de 1887-Fevereiro de 1888. Óleo sobre tela, 65.1 cm x 50 cm. Créditos: Van Gogh Museum, Amsterdam (Vincent van Gogh Foundation). O artista tinha o costume de pintar autorretratos, pois não tinha recursos para pagar modelos. Os autorretratos eram feitos para estudar técnicas e, por isso mesmo, ele aparece de diferentes maneiras nos quadros. A obra foi escolhida para ilustrar a ideia de que uma pintura de si mesmo é sempre uma releitura e, para esta reflexão, simboliza a criação desse novo perfil profissional. Além disso, Van Gogh foi responsável por criar um novo estilo artístico, inexistente à época, o que também associo a uma nova forma de fazer ciência.
Um dos maiores desafios na Ecologia e Conservação é a lacuna pesquisa-prática. Este desafio está relacionado à constatação de que o conhecimento produzido na Ecologia, bem como a forma de pensar e investigar questões ambientais, não estão sendo aplicadas para resolver problemas do mundo real. Adicionalmente a isso, na Biologia da Conservação cresce a ideia da importância de considerar a relação humano-natureza, em vez de ver os humanos como separados da natureza. No entanto, a superação dos problemas ambientais utilizando do conhecimento científico e a proposição de soluções criativas baseada em diversos saberes é um trabalho bastante difícil. Isso depende de tradução e fomento ao intercâmbio entre os conhecimentos, de envolver diferentes partes interessadas, de reunir e sistematizar conhecimento(s) de boa qualidade, de compreender novos desafios e manejar relações interpessoais.
A pesquisa inter- e transdisciplinar desempenha um papel importante nesse aspecto, configurando espaços onde diferentes perspectivas possam trazer suas narrativas sobre os problemas socioambientais, ao passo que desenvolve e reproduz práticas diferentes da ciência dominante. Criam-se, assim, soluções que potencialmente são mais benéficas para as pessoas e natureza. No entanto, quem fará todo o trabalho árduo de integrar as abordagens reunidas em iniciativas dessa natureza? Quais são as reais necessidades de quem se arrisca a iniciar uma jornada inter- e transdisciplinar? Aqui eu vou compartilhar brevemente minha própria experiência como bióloga em início de carreira que migrou de uma formação disciplinar para uma atuação inter- e transdisciplinar. Vou discutir alguns dos desafios e benefícios que encontrei e argumentar sobre porque a inter- e transdisciplinaridade são cruciais para abordar questões socioambientais.
Vamos começar do início. Durante o período de graduação, estudei Ciências Biológicas por quatro anos. Esse período foi suficiente para moldar minha forma de pensar, meu comportamento e minha visão de mundo. Eu esqueci como costumava pensar quando comecei meus estudos e achava difícil compreender porque alguém discordaria da minha perspectiva sobre a natureza – um assunto implicitamente estudado em minha área e profundamente enraizado em meu conhecimento adquirido através de incontáveis horas de estudo. Isso aconteceu, em parte, porque minha formação acadêmica tinha um foco disciplinar muito forte. Aprendi a evolução como um conceito central na Biologia e subjacente à diversidade, taxonomia, genética, zoologia, botânica e ecologia. Durante esse tempo de graduação, cada disciplina era dividida em dois ou três módulos semestrais, mais ou menos conectados entre si. Eu passei da bioquímica e biologia molecular para a genética e, paralelamente, estudei embriologia, zoologia, botânica e ecologia. Cada uma em suas caixas e com sua relevância. No final da minha graduação, eu tinha um diploma que certificava meu conhecimento em várias disciplinas dentro do campo da biologia. No entanto, embora os seres humanos fossem considerados parte da natureza, o aspecto “humano” não foi abordado de forma abrangente.
Da metade para o final da minha graduação, eu li o texto intitulado “Desafios e Oportunidades de Superar a Lacuna entre a Pesquisa e a Implementação na Ciência Ecológica e Gestão no Brasil”, escrito por pessoas que eu admiro muito por seu excelente trabalho em Ecologia e Filosofia da Ciência. Ainda nesse período, tive a sorte de fazer parte de um grande projeto de pesquisa em que a lacuna entre pesquisa e implementação era foco de discussões profundas e de vários esforços para tornar a Ecologia mais eficaz na resolução de problemas do mundo real, notadamente na agricultura, mas também com comunidades pesqueiras, manejo de áreas preservadas e políticas públicas. Este foi um momento de virada, quando percebi que as questões ambientais com as quais eu me preocupava tinham facetas que não poderiam ser adequadamente estudadas dentro da minha formação disciplinar, devido às limitações metodológicas, falta de ferramentas ou paradigmas prevalentes. De fato, as universidades são tipicamente instituições orientadas por disciplinas e apenas recentemente a área de Conservação começou a abraçar uma perspectiva de “natureza e pessoas” de forma mais ampla, o que tem implicações para a gestão, para a avaliação de currículo e impactos científicos, bem como para o desenvolvimento de teorias, métodos e ferramentas que sirvam para compreender e avaliar os sistemas socioecológicos.
Para enfrentar esse problema, percebi que precisava entender outras abordagens fora da minha formação acadêmica e começar uma jornada inter- e transdisciplinar. Antes de aprofundar ainda mais essa discussão, é muito importante esclarecer as diferenças entre estudos disciplinares, multidisciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares. Aqui, vou adotar os conceitos apresentados no artigo de Tress, Tress e Fry disponível nesse link. Estudos disciplinares consistem em pesquisas que se concentram em um objeto específico dentro dos limites de uma única disciplina acadêmica. Estudos multidisciplinares envolvem diferentes disciplinas acadêmicas investigando um tema ou problema sob um guarda-chuva temático. O resultado do conhecimento também é disciplinar e a cooperação entre as disciplinas é limitada. Já os estudos interdisciplinares envolvem duas ou mais disciplinas não relacionadas entre si que são postas em uso para investigar um mesmo objeto, de modo que pesquisadores cruzam as fronteiras entre disciplinas a fim de criar novos conhecimentos e teorias que vão além do escopo de cada disciplina isoladamente. E, por fim, os estudos transdisciplinares reúnem não apenas disciplinas acadêmicas, mas também participantes não acadêmicos e suas visões de mundo e conhecimentos, em direção a um objetivo de pesquisa e ação comum. Acho importante mencionar que, do meu ponto de vista, não há nenhum juízo de valor sobre essas abordagens. Penso que todas são relevantes e têm seu lugar e contribuição. Há beleza tanto no estudo de caracteres específicos de uma planta e sua relação evolutiva com outras espécies, como também na colaboração entre ciência e conhecimento botânico de comunidades indígenas e locais.
Voltando ao meu caso, trabalho com conservação de polinizadores e, mais recentemente, comecei a trabalhar com áreas urbanas. Considerando o primeiro caso, esse tema pode ser abordado de várias maneiras, por exemplo, testando como as práticas agrícolas influenciam a abundância e a diversidade de polinizadores. Temos evidências de que os polinizadores estão em declínio devido à agricultura, às mudanças climáticas, à urbanização, ao uso de pesticidas etc. Também sabemos que há uma falta significativa de dados a esse respeito em muitas partes do mundo. Parte da solução para abordar esse problema requer o envolvimento das pessoas na conservação de polinizadores, seja por meio de ações diretas de conservação seja por conscientização e elaboração de políticas públicas que melhor protejam esse serviço, por exemplo. No entanto, como podemos envolver efetivamente as pessoas na conservação de polinizadores?
Esta é uma situação típica em que pesquisadores/as da Ecologia precisam cruzar as fronteiras de sua disciplina para encontrar outros pesquisadores em outros campos igualmente disciplinares. Em minha pesquisa de doutorado, recorri teoricamente à psicologia social e metodologicamente às ciências sociais para entender aspectos sociais relacionados à conservação de polinizadores. Vamos explorar alguns dos desafios que encontrei ao conduzir pesquisas inter- e transdisciplinares, os quais merecem grande atenção de quem busca realizar estudos dessa natureza.
Um desafio significativo para o emprego de abordagens inter- e transdisciplinares em ciências ambientais é a dependência epistêmica. Este conceito está relacionado ao fato de que, em atividades de pesquisa colaborativa – como as interdisciplinares -, os cientistas que trabalham em um campo distante de sua formação acadêmica são dependentes epistemicamente de outros cientistas vinculados a este campo para compartilhar ideias, aprender e aplicar métodos e interpretar resultados. Em segundo lugar, na pesquisa inter- e transdisciplinar, geralmente o delineamento experimental ou amostral e a coleta de dados funcionam de maneira bastante diferente, notadamente quando integramos ciências sociais e ciências ambientais. Geralmente, métodos qualitativos se encontram com métodos quantitativos para dar sentido aos resultados e o estilo de escrita e comunicação são bastante diferentes. Além disso, trabalhar com esse tipo de dados requer o desenvolvimento de novas habilidades éticas e a consideração da disponibilidade de outras pessoas para contribuir com sua pesquisa, o que pode levar muito tempo. Por último, mas não menos importante, atualmente os cientistas são avaliados principalmente por seu histórico de publicações. Os resultados de pesquisas inter- e transdisciplinares nem sempre são aceitos em revistas disciplinares, embora haja alguns exemplos de revistas de alta qualidade que se concentram nesse tipo de pesquisa. Mas o mais importante é que manter a excelência na pesquisa – propondo questões que avancem o conhecimento, executando os estudos com rigor metodológico etc. – implica uma aprendizagem profunda de um campo completamente novo, o que traz desafios epistêmicos e linguísticos.
Do ponto de vista pessoal, eu adicionaria que lidar com algo desconhecido tanto para a minha formação acadêmica, quanto para a comunidade científica ao meu redor, representou um desafio ainda maior e, muitas vezes, me levou a ser questionada – principalmente por outros professores e colegas – se estava no lugar certo. Não posso deixar de mencionar que um questionamento externo só nos atravessa e nos marca quando há também um questionamento interno; afinal, nunca damos muita atenção a questões que já não existem em nós. No meu caso, como mulher negra fazendo algo diferente, essas questões também surgiram internamente, pois à época não tinha referências e experiências muito concretas que me inspirassem ou me acolhessem nesse caminho. Assim, a necessidade (e vontade) de me manter firme e inovar foram muito importantes nesse caso. Superar esse desafio requer resiliência e disposição. A criação de redes de contatos com pessoas abertas a abordagens inter- e transdisciplinares também é igualmente relevante.
A pesquisa inter- e transdisciplinar também oferece inúmeras oportunidades para ecólogos e conservacionistas. Em primeiro lugar, trabalhar em ambientes colaborativos e diversos promove o desenvolvimento de habilidades eficazes de comunicação, permitindo que os pesquisadores adaptem sua linguagem a diferentes públicos. Em segundo lugar, proporciona oportunidades para criar soluções baseadas na natureza e nas pessoas. No caso da pesquisa transdisciplinar, diversos conhecimentos são combinados. Isso pode influenciar diretamente a tomada de decisões por meio da participação de múltiplos atores, levando em consideração também a ciência. Por fim, as abordagens inter- e transdisciplinares permitem explorar como métodos e projetos de pesquisa de diferentes disciplinas podem ser combinados para informar esforços de conservação. Apesar dos desafios, a prática contínua e o engajamento com abordagens inter- e transdisciplinares reduzem gradualmente a percepção de estar “fora do seu campo”.
Algumas discussões adicionais sobre esse tema ainda estão em aberto, principalmente se considerarmos que há esse novo perfil profissional em ascensão que ocupa um não-lugar na academia como a conhecemos hoje, mas que também transforma este não-lugar em algo inventivo. Assim, precisamos refletir sobre como os ecólogos disciplinares ensinarão a uma nova geração de pesquisadores inter- e transdisciplinares? Essa nova geração realmente pode trazer mudanças significativas? Como os ecólogos básicos e aplicados podem se engajar efetivamente nesse diálogo? Qual é o estado atual do conhecimento inter- e transdisciplinar em Ecologia e Conservação? Que habilidades outras ainda precisaremos desenvolver para atuar na pesquisa inter- e transdisciplinar? As discussões atuais também destacam a importância de considerar as relações geopolíticas, particularmente entre o Norte e o Sul Global, por meio das quais países da Europa e América do Norte têm sistematicamente oprimido e dominado países da América do Sul e África, por exemplo. Também não podemos esquecer da necessidade de descolonizar a Ecologia e a Conservação, ou seja, de repensar a predominância do pensamento europeu nas soluções aos problemas socioambientais e abandonar práticas que reforçam injustiças ambientais. Autonomia, curiosidade e coragem são características necessárias para superar os desafios associados à formação em pesquisas inter- e transdisciplinares. Essa abordagem oferece um caminho promissor para construir um pensamento inovador e crítico sobre problemas socioambientais, além de promover a capacitação de futuros líderes e cientistas comprometidos em encontrar soluções criativas em um mundo em rápida mudança.
Caren Queiroz Souza Pesquisadora de Pós-doutorado Universidade Federal de São Carlos Brasil
A relação entre as florestas e as chuvas é conhecida por diversas culturas. A ciência vem descrevendo essa relação cada vez com mais detalhes. Mas existem teorias que explicam essa relação?
A teoria da bomba biótica de umidade explica que, por meio da transpiração e da condensação, as florestas criam ativamente regiões de baixa pressão, que absorvem o ar úmido dos oceanos, gerando ventos capazes de transportar umidade e sustentar a chuva nos continentes. Como as massas de terra continental estão acima do nível do mar, por efeito da gravidade toda a água líquida acumulada no solo e nos reservatórios subterrâneos flui inevitavelmente para o oceano, na direção da inclinação máxima das superfícies. Então, para acumular e manter reservas ideais de umidade na terra, seria necessário compensar o escoamento gravitacional de água para o oceano, por meio de um fluxo reverso de umidade, do oceano para a terra. Segundo essa teoria, esse fluxo reverso é impulsionado e mantido por grandes áreas contínuas de floresta. Isso quer dizer que, se a floresta for removida, o continente terá muito menos evaporação do que o oceano contíguo – com a consequente redução na condensação –, o que determinará uma reversão nos fluxos de umidade, que passarão a ir da terra para o mar, criando um deserto onde antes havia floresta. Por sua vez, ações de restauração florestal podem aumentar a precipitação local e também contribuir para o fortalecimento do transporte total de umidade do oceano para a terra continental, aumentando a magnitude e a confiabilidade da precipitação.
A Floresta Amazônica mantém o ar úmido em seu interior e exporta rios aéreos de vapor, que contribuem para formação de chuvas fartas e irrigam regiões distantes no verão do hemisfério sul. Nos últimos anos, os rios voadores, como têm sido chamados esses cursos de água atmosféricos, apareceram em matérias da mídia de grande circulação, a exemplo da BBC News Brasil e Revista Galileu. Eles foram definidos em 1992 como grandes volumes de vapor d’água que são transportados na baixa atmosfera. Um dos rios voadores de maior importância para a América do Sul é formado pela ação conjunta da forte evaporação das áreas tropicais mais quentes do Oceano Atlântico e da Floresta Amazônica. Sob ação da bomba biótica de umidade, a intensa evaporação nas áreas do oceano é sugada para dentro do continente e avança no sentido oeste, até atingir a Cordilheira dos Andes. Ao longo dessa trajetória, o vapor d’água recircula, tendo seu volume aumentado ao passar por cima da Floresta Amazônica, graças à atividade de evapotranspiração das árvores. Ele segue então seu caminho e desagua em áreas mais remotas e mais áridas nas regiões Sudeste e Sul do Brasil, além de dispersar-se pelos países fronteiriços, como Paraguai e Argentina.
O processo de evapotranspiração é a perda de água pelas plantas na forma de vapor. Esse processo se inicia pela ação de diferentes fatores, em especial pela mudança de temperatura na atmosfera, que interfere no movimento da água que circula pelo corpo da planta e chega à superfície das folhas. Depois que as nuvens precipitam, grande parte da água atravessa o dossel e se infiltra pela floresta. Parte dessa água é armazenada no solo, ou mais abaixo, nos aquíferos. A água que é armazenada no solo retorna para a atmosfera quando é absorvida pelas raízes e posteriormente liberada através da evapotranspiração das árvores. Essa água absorvida pelas raízes ascende para as folhas pelo xilema, tecido condutor de água e sais minerais nas plantas vasculares.
Apesar de a transpiração ocorrer em qualquer parte do organismo vegetal acima do solo, a maior proporção ocorre nas folhas (mais de 90%), o que está associado à sua anatomia. Na superfície foliar, existe uma camada de cera interrompida por poros, denominados estômatos. No interior desses poros, há células agrupadas que emitem vapor d’água para o espaço presente entre elas, no qual há uma abertura para atmosfera, o que possibilita a perda desse vapor, fenômeno que se conhece como evapotranspiração. À medida que a água vai sendo perdida para a atmosfera, o seu movimento pelo corpo da planta continua garantindo a hidratação dos tecidos internos e a manutenção do próprio ciclo de evapotranspiração. Para que exista essa elevação da coluna d’água pelo tecido condutor, as moléculas de água precisam estar coesas e submetidas a uma força de tensão que vence a gravidade. Essa dinâmica no transporte da água do solo para as raízes e das raízes para o caule depende da pressão positiva de raiz e da capilaridade. A pressão positiva de raiz resulta da constante perda de água do interior do corpo da planta, criando uma força de arrasto da água do solo em direção às raízes, que acaba elevando a coluna d’água pela extensão do xilema, mas com um poder de ascensão limitado em função da força da gravidade, que se opõe a essa elevação. A capilaridade contribui, então, para esta ascensão da coluna d’água. Trata-se de um fenômeno físico que ocorre quando líquidos se deslocam na superfície de tubos muito finos, o que depende das propriedades de coesão e adesão. A força de adesão depende da afinidade existente entre o líquido e a superfície sólida do tubo. Já a força de coesão depende da atração entre as moléculas do próprio líquido e atua no sentido oposto à parede do tubo. Como a água está sendo perdida pela evapotranspiração, as folhas atuam como uma bomba de sucção que mantém este processo funcionando.
No relatório O futuro climático da Amazônia, Nobre revelou que, usando dados de evaporação coletados nas torres de fluxo de um projeto de grande escala, foi possível estimar a quantidade total diária de água fluindo do solo para a atmosfera através das árvores na bacia amazônica. O valor estimado, para uma área de 5,5 milhões de km2, chegou ao total surpreendente de 20 bilhões de toneladas de água transpiradas ao dia para a atmosfera (ou 20 trilhões de litros). Se todas as florestas da porção equatorial da América do Sul fossem consideradas, esse número passaria a 22 bilhões e, se considerássemos as florestas que existiam em 1500, seriam 25 bilhões de toneladas ou mais. Para efeito comparativo, o rio Amazonas despeja no Oceano Atlântico cerca de 17 bilhões de toneladas ao dia, pelo menos 3 bilhões de toneladas a menos do que foi estimado na formação do rio aéreo.
Mais um fenômeno controlado pela floresta e capaz de atuar no clima diz respeito às emissões de aerossóis moduladas pelas árvores. Esses aerossóis são elementos-chave do sistema climático, pois são capazes de mudar os padrões de chuva na região amazônica, como consequência da redistribuição de energia e da formação de núcleos de condensação e núcleos de gelo. Os aerossóis controlam a formação de nuvens e a precipitação através de seus efeitos sobre os núcleos nos quais gotículas de água se condensam ou gelo se forma. Nuvens são agregados de gotículas em suspensão no ar. Em baixas temperaturas, estas gotículas se condensam a partir do vapor. Porém, para formar núcleos de condensação, é preciso haver uma superfície sólida ou líquida que funcione como “semente” para que se inicie a deposição e condensação das moléculas de vapor. Essas sementes são geradas pelos aerossóis encontrados na atmosfera. A depender de sua composição e abundância, eles podem espalhar ou absorver radiação, assim como aumentar ou suprimir a precipitação.
Os aerossóis são classificados em partículas primárias, produzidas deliberadamente pela flora (por exemplo, liberação de pólen e esporos de fungos) e incidentalmente (por exemplo, como restos de folhas e solo ou como microorganismos em suspensão), e partículas secundárias, produzidas na atmosfera pela oxidação de gases residuais, que resulta em compostos de baixa volatilidade. Assim como partículas de aerossóis de outras origens (por exemplo, poeira mineral, sal marinho, fumaça de biomassa – oriunda da queima de biomassa – e partículas de poluição), partículas biológicas podem influenciar a formação de nuvens e processos de precipitação através de diversos mecanismos, os quais são cruciais para a manutenção do ciclo hidrológico. A precipitação induzida por partículas primárias e secundárias, emitidas pelas florestas ou formadas na atmosfera, agindo como núcleos de condensação ou núcleos de gelo, sustenta a reprodução de plantas e microrganismos no ecossistema do qual os precursores dessas partículas são emitidos (Figura 1). Essa causalidade circular é retratada na pergunta feita por Nobre em seu texto de 2007: “As florestas crescem onde chove ou chove onde crescem florestas?” Ela pode ser entendida como um dilema do tipo ovo-ou-galinha e estimular a seguinte conclusão: “[…] onde tem mata, tem chuva” (Nobre, 2007, p. 369).
Há diferentes formas de interpretar a causalidade circular entre florestas e chuvas. Uma delas é uma proposta recente que vem sendo discutida na filosofia da biologia: a teoria organizacional das funções ecológicas. Na próxima seção, falaremos sobre ela e a abordagem que a fundamentou, a teoria da autonomia biológica.
Figura 1: Principais mecanismos associados ao controle da água pela floresta no ciclo hidrológico continental. A água presente no solo entra no corpo da planta, sendo em seguida conduzida até as folhas, onde grande parte é evapotranspirada. As árvores também contribuem com compostos orgânicos voláteis, que oxidam em contato com a atmosfera e são os maiores responsáveis pela formação de núcleos de condensação. As partículas primárias, como esporos de fungos e grãos de pólen, contribuem para a formação de núcleos de gelo, mas também podem agir como núcleos de condensação “gigantes”, gerando grandes gotas e induzindo chuva quente, sem formação de gelo. Autor da figura: Jeferson Coutinho.
Sistemas biológicos: um tipo específico de regime causal
Uma forma de interpretar a circularidade causal entre organismos e componentes abióticos num ecossistema vem sendo explorada na construção de uma teoria organizacional das funções ecológicas. De acordo com essa teoria, assim como em outras abordagens, como a teoria da construção de nicho ou a teoria Gaia, a vida influencia as condições físico-químicas do ambiente de uma maneira que acaba por contribuir para a sua própria auto-manutenção. A teoria também compartilha com outras versões de abordagens organizacionais a ideia de fundamentar as atribuições de funções a componentes dos ecossistemas com base na proposição de que os sistemas biológicos realizam um tipo específico de regime causal, no qual as ações de um conjunto de partes são condição para a persistência de toda a organização ao longo do tempo. Essa teoria é derivada da teoria da autonomia biológica, que propõe que sistemas vivos são irredutíveis a sistemas físico-químicos, exibindo propriedades qualitativamente distintas porque apresentam uma organização específica, que pode ser descrita como um fechamento, isto é, uma circularidade causal diferente daquela encontrada em sistemas físico-químicos, como explicaremos a seguir.
A teoria da autonomia biológica considera que sistemas vivos são organizacionalmente fechados e termodinamicamente abertos. Quando dizemos que um sistema vivo é organizacionalmente fechado, estamos nos referindo ao que denominamos acima “circularidade causal”. Em termos mais precisos, isso significa que a organização biológica em questão (por exemplo, de um organismo ou ecossistema) exibe “fechamento”, isto é, seus componentes e suas operações dependem umas das outras para sua própria produção e manutenção, e determinam coletivamente as condições para que o próprio sistema exista e siga existindo. Conforme a teoria da autonomia biológica, o fechamento característico dos sistemas vivos é um “fechamento de restrições”. Isso requer, claro, que expliquemos o que são restrições.
Restrições são causas locais e contingentes, exercidas por estruturas e processos específicos, que reduzem os graus de liberdade da dinâmica ou do processo sobre o qual atuam, mas permanecem conservadas na escala de tempo relevante para descrever sua ação causal em relação àquele processo ou dinâmica. Como as restrições reduzem os graus de liberdade dos processos internos ao sistema vivo, elas contribuem para sua coordenação, a qual gera, por sua vez, novas possibilidades de comportamento e adaptação ao meio para o sistema como um todo. Uma variedade de entidades pode desempenhar o papel de restrições em um organismo, por exemplo, macromoléculas (digamos, enzimas ou ribossomos) e configurações materiais específicas (como o sistema de vasos sanguíneos ou os circuitos neurais dentro do cérebro). Reduzir graus de liberdade de um processo significa dizer que, sob a ação da restrição, o processo tem um universo menor de possíveis trajetórias, em comparação com o que teria na ausência da restrição. É essa redução de graus de liberdade que faz com que os processos sejam, sob a influência das restrições, mais coordenados, de tal maneira que a manutenção da vida seja possível. Portanto, quando nos referimos a um fechamento de restrições, estamos considerando uma rede de dependências mútuas entre partes constitutivas de um sistema que atuam como restrições, oque contribui não apenas para a manutenção e existência das outras partes do sistema, como também do próprio sistema como um todo e, consequentemente, de si mesmas.
De modo diferente dos sistemas vivos, cadeias circulares de processos também podem ocorrer sob a ação de restrições externas. Esse comportamento é tipicamente observado em sistemas físicos ou químicos e é caracterizado por sequências ordenadas de ocorrências ou estados dinâmicos que estão ligados sistematicamente uns aos outros, tipicamente de maneira causal. O fechamento de processos, como é chamado, ocorre quando esses estados ou ocorrências formam um ciclo fechado: um processo A causa um processo B, que causa um processo C, que, por sua vez, causa A. É o que ocorre, por exemplo, no fluxo circular que a água percorre sob ação da radiação solar em uma garrafa de vidro fechada e preenchida até a metade (Figura 2).
Figura 2: Fechamento de processos no fluxo circular que a água percorre sob ação da radiação solar em uma garrafa de vidro fechada e preenchida até a metade: (1) a radiação solar atravessa as paredes da garrafa e aquece a água; (2) ao atingir uma determinada temperatura, a água começa a evaporar; (3) o vapor d’água, depois de subir, condensa no topo da garrafa e cai como água líquida; (4) que fica novamente sujeita à evaporação. Autora da figura: Clarissa Leite.
A ciclagem das moléculas de água dentro da garrafa é um fluxo termodinâmico, físico-químico, circular, limitado apenas por entidades externas, a exemplo do vidro. O vidro atuam, então, como uma restrição externa, que não é regenerada pelo fluxo termodinâmico cíclico da água. No caso de um fechamento de processos, as restrições são apenas externas, não dependendo da dinâmica sobre a qual atuam, como no exemplo acima. Em vez de apenas uma cadeia circular de processos influenciada por restrições externas, sistemas biológicos produzem restrições internas, que atuam sobre seus próprios processos e, assim, exibem dois regimes causais distintos, mas interdependentes: um regime termodinâmico aberto de processos e reações e um regime fechado de dependência entre componentes que agem como restrições. Isso é o que significa dizer que esses sistemas são termodinamicamente abertos e organizacionalmente fechados.
De acordo com a teoria da autonomia biológica, funções são sempre atribuídas a componentes que atuam como restrições internas a um sistema vivo. Usando um exemplo clássico nos debates sobre funções, podemos considerar o coração para explicar o que significa atribuir função a uma restrição de acordo com essa teoria. O coração é uma parte constitutiva de muitos animais que tem a função de bombear sangue. Interpretado nos termos da teoria da autonomia biológica, pode-se afirmar que, ao bombear sangue, o coração atua como uma restrição. Primeiro, porque o bombeamento de sangue pelo coração tem o poder causal de alterar, por exemplo, a distribuição de gases e nutrientes num corpo animal, no sentido específico de que diminui os graus de liberdade desse processo de distribuição (o que ocorre, claro, com a contribuição de várias outras restrições, a exemplo de todo o conjunto de artérias, arteríolas, capilares etc.). Segundo, considerando-se que leva cerca de um minuto para o sangue circular por todo o corpo de um ser humano (a título de exemplo), podemos perceber que, na escala temporal em que o coração, ao bombear sangue, restringe a distribuição de gases e nutrientes no corpo, ele se mantém conservado (assim como as artérias, arteríolas, capilares), no preciso sentido de que ele não sofre alterações nas propriedades relevantes para sua atuação como restrição que sejam devidas ao processo de circulação do sangue, naquela escala temporal.
A atribuição de uma função a uma restrição, conforme essa teoria, se apoia exatamente no papel causal que um determinado componente de um sistema exerce, como restrição, em processos vitais de um sistema vivo, dentro do fechamento de restrições que caracteriza sua organização. Isso implica que esta parte contribui para a manutenção da organização do corpo e é, ao mesmo tempo, mantida graças ao papel de outras restrições e desta organização mesma. Apliquemos novamente isso ao caso do coração. Ao bombear sangue e, assim, atuar como uma restrição sobre a distribuição de gases e nutrientes, o coração contribui para a manutenção e existência de todas as outras partes do corpo, bem como do próprio organismo, o que, por sua vez, contribui para a manutenção e existência do próprio coração. Retomando algo que explicamos acima, o fechamento de restrições destaca exatamente essa característica dos sistemas biológicos: que seus componentes constitutivos e operações dependem uns dos outros para sua manutenção e, além disso, contribuem coletivamente para determinar as condições sob as quais o próprio sistema pode existir.
Na teoria da autonomia biológica, as restrições que são produzidas sob influência de outras restrições são chamadas de dependentes, enquanto aquelas que participam do processo de produção de outras restrições, são chamadas de possibilitadoras. Para fazer parte do fechamento de restrições, uma restrição deve ser tanto dependente, quanto possibilitadora. Mas, e nos casos em que as restrições são apenas dependentes ou apenas possibilitadoras? As restrições que são exclusivamente possibilitadoras ou dependentes estabelecem conexões entre o sistema vivo e outros sistemas (vivos ou não), que ou constituem seu ambiente, ou se situam em níveis físico-químicos de processos internos aos seres vivos. Isso quer dizer que, para caracterizar um sistema como organizacionalmente fechado, não há a necessidade de afirmar que todas as restrições que agem na dinâmica do sistema são parte do fechamento. Mostra também que falar de fechamento organizacional não implica defender alguma independência do sistema vivo em relação ao ambiente. Um sistema que realiza fechamento organizacional de restrições é um sistema fisicamente aberto, inerentemente acoplado ao ambiente com o qual troca energia e matéria. Sem essa conexão com outros sistemas e sem troca de matéria e energia, o sistema vivo não tem como se auto-manter.
A explicação organizacional da teoria da autonomia biológica vem sendo construída desde os anos 1990, focando sobretudo sobre células e organismos. Enzimas e órgãos, como o coração, foram alguns dos exemplos usados para explicar como partes de sistemas vivos assumem funções quando atuam como restrições (p. ex., enzimas catalisando reações em células e, assim, diminuindo seus graus de liberdade; e órgãos, como o coração, diminuindo os graus de liberdade de processos como a distribuição de gases e nutrientes em determinados organismos). Em 2014, três pesquisadores aplicaram a explicação organizacional proposta por essa teoria a sistemas ecológicos, argumentando que as funções que componentes de sistemas ecológicos desempenham em processos ao nível do ecossistema como um todo podem ser entendidas como efeitos precisos (diferenciados) de componentes bióticos (vivos) ou abióticos (inanimados) que atuam como restrições sobre fluxos de matéria e energia nos ecossistemas. Isso demanda que os ecossistemas exibam uma organização que seja entendida em termos de um fechamento de restrições. Nunes-Neto, Moreno e El-Hani usaram para desenvolver a teoria o fitotelma de uma bromélia como modelo de um sistema ecológico organizacionalmente fechado, considerando as relações de predação e decomposição estabelecidas em uma teia alimentar interna a ele, envolvendo uma espécie de aranha, larvas de mosquitos e microorganismos, o que resulta numa diminuição dos graus de liberdade do fluxo de átomos como os de nitrogênio. O modelo foi representado com dois níveis hierárquicos, um relativo ao fluxo dos átomos e outro relativo aos papéis dos componentes bióticos que atuam como restrições. Essa proposta original deu os primeiros passos para a construção de uma teoria organizacional das funções ecológicas, que vem sendo aprimorada desde então.
Teoria organizacional das funções ecológicas e a formação de nuvens nos oceanos
Alguns anos depois, El-Hani e Nunes-Neto abordaram a transição de um mundo pre-biótico – composto de sistemas puramente físico-químicos – para um mundo controlado pela vida, com base na teoria organizacional. Eles descreveram como o sistema de formação de nuvens nos oceanos não resulta apenas de uma sequência de eventos físico-químicos relacionados à evaporação e precipitação da água (i.e., não resulta apenas de um fechamento de processos). Há uma participação ativa e decisiva de uma rede de interações de organismos marinhos, em especial do fitoplâncton, que levam à secreção de uma substância sulfurosa, o dimetilsulfureto (DMS), que contribui para a formação de núcleos de condensação de nuvens sobre o oceano, em um processo semelhante àquele que ocorre no continente envolvendo aerossóis liberados pelas florestas, tal como explicamos acima. Quando as nuvens precipitam, a chuva traz para o oceano precursores do dimetilsulfureto, que se tornam disponíveis para o metabolismo dos organismos marinhos, fechando, então, o ciclo estabelecido entre eles e a formação de nuvens. Como observado por estes autores, é importante notar que existe uma relação de dependência mútua entre a microbiota marinha e as nuvens, que pode ser entendida em termos de sua atuação como restrições, em escalas temporais específicas, sobre processos físico-químicos e, mais especificamente, como restrições dependentes e possibilitadoras no controle que o sistema exerce sobre o fluxo do dimetilsulfureto. A microbiota depende do enxofre depositado pela precipitação das nuvens e carreado pelos rios, assim como as nuvens dependem do enxofre derivado do dimetilsulfureto produzido pelo fitoplâncton. Assim, os autores propõem que a teoria organizacional das funções ecológicas oferece uma fundamentação consistente para explicar a transição de um fechamento de processos, no qual os ciclos do enxofre e da água correspondiam somente a uma sequência fechada de estados dinâmicos físico-químicos, para um sistema caracterizado por um fechamento de restrições, no qual a vida passa a exercer controle sobre estes dois ciclos. Se generalizarmos esse argumento, podemos chegar, então, a uma tese central da teoria Gaia, a de que, quando os seres vivos passaram a controlar parte importante dos processos físico-químicos planetários, passamos de um mundo controlado somente por processos físico-químicos a um mundo controlado pela vida.
Nesse texto sobre a relação da vida marinha com a formação de nuvens nos oceanos, El-Hani e Nunes-Neto tratam da atribuição de funções ecológicas a componentes inanimados ou abióticos. No entanto, para incluí-los como itens funcionais, eles devem, assim como os itens bióticos, atender a um critério fundamental da teoria: estar sujeitos ao fechamento, ou seja, atuar como restrições internas à organização do sistema e, portanto, sob seu controle. Como vimos anteriormente, ser uma restrição interna à organização do sistema quer dizer, segundo essa teoria, que o componente (nesse caso, abiótico) deve ser uma restrição dependente e possibilitadora. Caso não sejam restrições internas ao fechamento organizacional, não se pode atribuir funções ecológicas a esses componentes. Note-se, contudo, que eles ainda podem ser considerados relevantes na dinâmica do sistema ecológico, já que podem agir como restrições externas que afetam seus processos, mesmo não sendo parte de sua organização interna.
Explorando um outro caso em um texto ainda não publicado, os proponentes dessa abordagem explicam que, em ecossistemas savânicos, o controle exercido por espécies de plantas adaptadas ao fogo, por meio de características relacionadas à sua inflamabilidade, i.e., à facilidade com que entram em combustão, é um exemplo de como uma restrição anteriormente externa ao sistema (o próprio fogo) pode passar a fazer parte de sua dinâmica interna, quando colocada sob controle de sua organização. Quando o fogo é integrado à dinâmica do ecossistema por meio de espécies de plantas adaptadas a ele, que exibem características de inflamabilidade e influenciam sua frequência, ele passa a ter um papel construtivo na dinâmica do ecossistema. O fogo passa a ser uma restrição possibilitadora nos ecossistemas savânicos por seu papel nos processos de rebrotamento das plantas e é, ao mesmo tempo, uma restrição dependente, na medida em que sua produção depende, em parte, das espécies de plantas adaptadas a ele. Nesses casos, pode-se até falar em coevolução do fogo e da biota. Quando o fogo não está sob controle do sistema, ele não age como uma restrição funcional interna ao mesmo, mas apenas como uma restrição externa, que age sobre componentes do ecossistema, mas sem estar sob controle de sua organização, o que pode ser uma razão para que o fogo tenha um papel destrutivo.
Mas além da relação entre os organismos marinhos, a água e o enxofre nos oceanos, bem como das plantas com o fogo em ambientes savânicos, como a teoria organizacional das funções ecológicas poderia explicar a relação entre as florestas e a chuva nos continentes?
Teoria organizacional das funções ecológicas e o ciclo hidrológico continental
A partir dos argumentos apresentados acima, podemos refletir sobre o caso do ciclo hidrológico continental, o qual abordamos no começo desse texto. Seria este também um caso de fechamento organizacional de um sistema ecológico, no qual as árvores assumem papel funcional crucial nas trocas entre o continente e a atmosfera? Assim como no exemplo do coração, tomando como base a explicação organizacional, podemos entender que as árvores são parte constitutiva do sistema hidrológico nos continentes e têm a função de controlar trocas entre o continente e a atmosfera. Mais especificamente, elas restringem o fluxo de água, energia, carbono e outros elementos entre esses dois ambientes. Ao fazerem isso, elas contribuem para a manutenção e existência de outras partes (por exemplo, as nuvens, a água) do sistema hidrológico nos continentes, bem como para a manutenção e existência do próprio sistema e de si mesmas.
Além disso, podemos dizer que a água em florestas úmidas seria inicialmente uma restrição externa, mas teria sido recrutada, como restrição possibilitadora e dependente, para compor a organização interna desses ecossistemas, assim como no caso do fogo em ecossistemas savânicos? A água é considerada um dos principais agentes modeladores em florestas úmidas, afetando a distribuição, fisionomia e diversidade de espécies características desses ecossistemas. A água pode desempenhar, então, funções relevantes nos processos ecossistêmicos de uma floresta úmida, enquanto está sob o controle de restrições internas à sua organização, como as plantas. Por exemplo, características das plantas podem determinar diferentes volumes de evapotranspiração e modular a emissão de aerossóis nucleadores de nuvens nesses ecossistemas. Esses aspectos interagem com outros fatores do clima, determinam o volume de água que circula no sistema e influenciam o regime de chuvas no continente. Uma vez que a água precipita, sua participação na germinação das sementes é de fundamental importância. E são as plantas que germinam dessas sementes que então irão evapotranspirar e emitir aerossóis para a formação de mais chuva, fechando o ciclo.
Se a Floresta Amazônica e a água são restrições no fechamento organizacional do sistema hidrológico continental, podemos interpretar que elas determinam não apenas a manutenção e existência uma da outra, como também do próprio sistema. Sendo assim, a afirmação que podemos fazer, seguindo a teoria organizacional das funções ecológicas, é que as florestas crescem onde chove e chove onde crescem florestas. Assim como nos oceanos, em algum momento da história evolutiva da Terra ocorreu, nos continentes, a transição de um fechamento de processos para um sistema caracterizado por um fechamento de restrições, ou seja, para um mundo controlado pela vida em que as plantas passaram a atuar como agentes facilitadores, mas também dependentes do sistema hidrológico continental.
Clarissa Machado Pinto Leite (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares em Ecologia e Evolução – INCT IN-TREE, Universidade Federal da Bahia)
Jeferson Gabriel da Encarnação Coutinho (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia/IFBA, Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares em Ecologia e Evolução – INCT IN-TREE, Universidade Federal da Bahia)
PARA SABER MAIS
Gorshkov, VG, Makarieva AM. Biotic Regulation: Main Page. Disponível em: <https://www.bioticregulation.ru/>. Acesso em: 21 de agosto de 2023.
<Nasa Global Tour of Precipitation in Ultra HD (4K) – Youtube. 2016. Youtube NASA Goddard, 20 de maio de 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=c2-iquZziPU/>. Acesso em: 21 de agosto de 2023.
Nobre AD, 2014. O Futuro Climático da Amazônia, Relatório de Avaliação Científica. Patrocinado por ARA, CCST-INPE, e INPA. São José dos Campos, Brasil, 42p.
Pearce, F. 2020. Weather Makers. Science (American Association for the Advancement of Science) 368.6497: 1302-305. Acesso em: 21 de agosto de 2023.
Sabe quando alguém fala que a insulina é liberada para diminuir glicemia e você se incomoda?! Nessa postagem, argumentamos que há maneiras legítimas e consistentes de usar afirmações dessa natureza (chamadas “teleológicas”), sem implicar desacordo com o discurso científico contemporâneo. Uma explicação é dita “teleológica” quando apela a noções como fins, metas, objetivos, propósitos. As obras citadas proporcionam uma jornada de leituras para os interessados em aprofundar o entendimento de como falar teleologicamente de maneira cientificamente correta.
O que é teleologia e por que ela invoca medo?
O uso da linguagem teleológica nas explicações sobre sistemas vivos sempre causa controvérsias e é frequentemente rejeitada por biólogos, cientistas de outras áreas, professores de ciências e biologia, e muitas outras pessoas. A razão fundamental para usar essa linguagem reside no fato de que sistemas vivos exibem fenômenos que nos incitam a pensar nas funções de suas características e de seus comportamentos, até mesmo em propósitos que parecem buscar cumprir. Assim, uma explicação teleológica apela a noções como fins, metas, objetivos, propósitos.
O incômodo que alguns sentem quando uma pessoa diz uma frase como “a insulina é liberada pelo pâncreas para diminuir a glicemia no sangue” é motivado, muitas vezes, por razões que já foram amplamente discutidas e superadas na filosofia da biologia, mostrando a necessidade de um maior acesso a esses avanços, na formação de cientistas e professores de ciências, e também da população em geral. Esta postagem é um primeiro esforço nessa direção, o que já nos permite dizer que não será exaustiva, e tampouco será nosso único texto a tratar do tema aqui no Darwinianas.
Em uma explicação teleológica, como explica o filósofo Charles Taylor, dizemos que um evento ocorre para certo fim, com um dado propósito, ou seja, que ele ocorre porque é o tipo de evento que produz aquele fim. Dessa maneira, o fato de que ele é o evento necessário para que se obtenha, num certo estado de coisas, o fim em que questão é considerado, em tal explicação, condição suficiente para a ocorrência do evento. Não se trata, claro, da única explicação possível. Se explico o comportamento de caça de uma onça em termos do fim de capturar uma presa, e interpreto esta como uma explicação suficiente do comportamento da onça, isso não me impede de explicar o mesmo comportamento de outra perspectiva, por exemplo, em termos dos mecanismos fisiológicos subjacentes ao comportamento. Estas explicações podem ser vistas como complementares, e não como rivais.
Noções como função, propósito, objetivo etc. comparecem, por exemplo, em toda uma série de questões comuns em livros didáticos e nos argumentos construídos para respondê-las, assim como na própria vida cotidiana. Por exemplo: “Quais as funções do complexo golgiense?” (em Biologia, de Amabis e Martho); “Que trabalhos especializados executam esses componentes [tronco cerebral, medula, cerebelo] do encéfalo?” (Em Biologia, de Frota-Pessoa); Qual o objetivo do comportamento de corte do galo-da-serra-do-Pará (Rupicola rupicola)? (v) Qual o propósito da viagem de Mariana à Serra da Lousã? Todas essas perguntas solicitam uma explicação teleológica, ou seja, que respondamos pela apresentação da função, do objetivo ou do propósito da estrutura ou do comportamento em questão. Essa apresentação é, por sua vez, considerada uma explicação de por que Mariana fez esta viagem, ou de por que o galo-da-serra-do-Pará exibe tal comportamento de corte, ou de por que complexo golgiense e componentes do encéfalo funcionam da maneira como funcionam. Por conta desse papel explicativo, considera-se em geral que noções teleológicas não podem ser eliminadas das ciências biológicas.
Contudo, raciocínios teleológicos também trazem preocupações importantes, que estão por trás da tendência de muitos de rejeitá-los. Estaríamos assemelhando os seres vivos demasiadamente a nós mesmos ao explicá-los apelando a funções e propósitos? Estaríamos nos comprometendo com um modo de explicar esses seres que não se mostra compatível com o naturalismo que caracteriza o discurso científico contemporâneo?
Parte das dificuldades decorre do fato de que a teleologia foi descartada nas ciências físicas modernas como explicação válida de fenômenos naturais, por conta de uma suposta inversão da ordem temporal nas relações causais. Supostamente, nas explicações teleológicas um efeito estaria sendo entendido como determinante de sua própria causa, conflitando com um princípio largamente aceito desde a revolução científica do século XVII, o de que os efeitos seguem às causas. Outras dificuldades decorreram da naturalização do discurso científico no século XIX, uma vez que as explicações teleológicas pareceriam implicar alguma forma de planejamento dos seres vivos. Por fim, do pensamento darwinista decorre uma terceira dificuldade, em virtude da visão – também largamente aceita – de que a evolução é um processo histórico aberto, que não tem metas ou finalidades, como, por exemplo, a origem da espécie humana. Nessa postagem, focaremos nossa atenção nessas três dificuldades.
Todas estas são preocupações importantes, que demandam soluções: é preciso explicar a teleologia eliminando a possibilidade de interpretação como se invertesse a ordem temporal de causas e efeitos. É fundamental para uma explicação compatível com a ciência naturalizar o entendimento teleológico dos seres vivos, tornando-o inteiramente compatível com o modo como a causalidade é pensada na ciência moderna, em particular, sem que os antecedentes causais de um fenômeno natural jamais incluam causas não-naturais. Por fim, a ideia de que a evolução em si tem metas deve ser recusada.
O ser vivo como causa e efeito de si mesmo: naturalizando a teleologia
O que pode ser novidade para muitos é que todas essas preocupações têm soluções já bem desenvolvidas, que tornam possível tanto o professor de ciências ou biologia, quanto o biólogo, quanto qualquer cientista ou outra pessoa, se bem informados, usar explicações teleológicas de modo válido e consistente com o pensamento científico contemporâneo.
Desde a Crítica do Juízo, do filósofo alemão Immanuel Kant, tem sido elaborado com profundidade cada vez maior um entendimento dos sistemas vivos como meios e fins em si mesmos, de modo que fenômenos associados a objetivos, metas, funções têm uma recursividade que torna sem sentido afirmar que efeitos viriam, nesses casos, após as causas. Na teoria da autonomia biológica desenvolvida por Alvaro Moreno, Matteo Mossio e colaboradores, por exemplo, os sistemas vivos são compreendidos como detentores de um “propósito intrínseco”, com base no entendimento de sua organização como inerentemente teleológica, no preciso sentido de que sua própria atividade é, de maneira fundamental, dirigida a uma finalidade (telos), a manutenção das condições de sua própria existência.
Esta é, além disso, uma compreensão inteiramente naturalizada da teleologia, que demarca regimes causais distintivos nos sistemas vivos, irredutíveis a processos físico-químicos, embora dependentes deles, mas fundamenta sua legitimidade em termos de uma concepção de causalidade cientificamente aceitável. Essa visão permite deixar de lado, então, preocupações tanto com a ordem temporal de causas e efeitos, quanto com a naturalização da explicação teleológica.
Nesta teoria, o que conecta a organização biológica à teleologia intrínseca é o conceito de autodeterminação: a organização biológica determina a si mesma no sentido de que os efeitos de sua atividade contribuem, numa relação circular, para sua automanutenção, e assim para a persistência da própria atividade. Nessa relação circular, causas e efeitos se concatenam de tal modo que não se pode supor qualquer inversão da ordem temporal esperada. Desse modo, também se estabelece uma noção biologicamente distintiva de propósito: a teleologia é intrínseca no caso dos sistemas vivos, e não extrínseca, como nos artefatos, uma distinção que foi discutida décadas atrás pelo filósofo Hans Jonas.
Duas consequências muito importantes seguem dessa distinção. Primeiro, que ao entender os seres vivos teleologicamente não há qualquer necessidade de postular um designer externo a eles, comprometendo-se com visões não-naturalizadas. Isso significaria propor que a teleologia dos seres vivos é extrínseca, que, como no caso dos artefatos, eles seriam produzidos desde fora. Mas desse modo perde-se de vista um dos aspectos mais fundamentais desses seres, o de que eles produzem a si mesmos, e assim exibem uma teleologia intrínseca, que lhes é característica. Segundo, a distinção entre teleologia intrínseca e extrínseca mostra que identificar o propósito dos seres vivos com a manutenção de suas condições de existência e atividade significa que não há necessidade de apelar a ideias antropomórficas, como desejo, volição, deliberação etc., para entender seu funcionamento teleológico.
É importante perceber que a teleologia intrínseca dos seres vivos é caracterizada por uma normatividade, isto é, ela diz respeito não somente ao que o ser vivo factualmente faz, mas também – e fundamentalmente – ao que ele normativamente deve fazer. E, mais, esta é uma normatividade naturalizada, porque baseada na automanutenção do sistema: um critério naturalizado estabelece quais normas o sistema deve seguir, dado que ele deve se comportar de uma maneira específica, e suas partes devem funcionar de uma maneira específica, porque, de outro modo, o sistema (e, logo, suas partes) deixa de existir. É nesse sentido que se pode dizer que as condições de existência de um sistema vivo são as normas (intrínsecas e naturalizadas) de sua própria atividade (dotada do propósito de sua automanutenção).
Essa naturalização da teleologia implica, então, um entendimento naturalizado de um dos conceitos mais usados na biologia, cujo papel explanatório nem sempre é bem entendido, a saber, o conceito de função. Na teoria da autonomia biológica que estamos discutindo aqui, quando funções são atribuídas às partes dos sistemas vivos, entende-se que elas correspondem aos efeitos causais dessas partes que contribuem para manter a organização do sistema. A autodeterminação e automanutenção do sistema são alcançadas em virtude das intrincadas interrelações de componentes e suas funções, que formam uma rede na qual eles são tanto mutuamente dependentes, quanto funcionalmente complementares. Por exemplo, nosso corpo se automantém porque nossos sistemas orgânicos (circulatório, respiratório, digestório etc.) se relacionam uns com os outros numa rede de dependências mútuas e complementares, que determinam nossas condições de existência e, assim, suas próprias condições de existência. Estamos de volta a Kant: o raciocínio teleológico oferece um princípio organizador de nosso entendimento dos sistemas vivos, ao colocar em primeiro plano uma explicação do ser vivo em termos de sua unidade, considerando que ele é tanto causa quanto efeito de si mesmo.
Distinguindo formas legitimas e ilegítimas do raciocínio teleológico na ciência contemporânea
Por fim, uma distinção apropriada entre formas de raciocínio teleológico torna possível separar usos cientificamente legítimos e ilegítimos. Em seu O Desenvolvimento do Conhecimento Biológico, o biólogo Ernst Mayr propõe uma diferenciação útil entre modos de pensar teleologicamente aceitáveis ou não no discurso científico. Ele aborda dois modos de pensar que, malgrado sua legitimidade e contribuição em outros sistemas de conhecimento, não encontram espaço na ciência contemporânea: de um lado, a ideia de uma teleologia cósmica, conforme a qual todo o universo ou cosmos seria teleológico, como assumido por filósofos como Aristóteles ou religiões como as judaico-cristãs; de outro, a ideia de que o processo evolutivo teria uma meta, usualmente vista como a origem dos seres humanos. No entanto, explicações que apelam a tendências em processos naturais (que Mayr denomina “teleomáticos”), devidas ao fato de que esses processos obedecem a leis, são inteiramente válidas no discurso científico. E o mesmo pode ser dito de explicações teleológicas distintivas dos sistemas vivos, como abordamos acima, mas sem mobilizar – como Mayr – a ideia de teleonomia, que se apoia na suposição de que tais sistemas exibem comportamentos e atividades dirigidas a fim porque possuiriam programas internos (frequentemente entendidos como programas genéticos) que trariam em si mesmos a especificação de suas finalidades.
Não utilizamos essa interpretação por recusarmos a ideia de programa, como insuficiente para entender sistemas que não têm distinção clara nem entre sua estrutura material (hardware) e sua operação lógica (software), nem tampouco entre dados e programas, como propôs o filósofo Henri Atlan. Isso para não falar do instrucionismo e preformacionismo incorporados na ideia de programas genéticos. Este não é o espaço, contudo, para estendermos essa discussão. Como foi dito acima, há muito a dizer sobre o assunto da teleologia e não podemos ser exaustivos no espaço que temos.
De qualquer modo, esperamos que estes primeiros passos possam dirimir, ao menos em parte, o medo que os biólogos e outros cientistas, ou professores e outros profissionais, costumam ter da teleologia, e, ao mesmo tempo, convidar os leitores a pensarem na teleologia distintiva dos sistemas vivos de modo naturalizado e intrínseco a eles. Até as próximas palavras sobre esse tema tão instigante! Nos links do texto e nas indicações abaixo, há muitas jornadas nas quais se lançarem antes de voltarmos ao assunto aqui no Darwinianas.
Charbel N. El-Hani
(Instituto de Biologia/UFBA)
PARA SABER MAIS
Allen, Colin & Neal, Jacob. (2020). Teleological notions in biology. The Stanford encyclopedia of philosophy (Spring 2020 Edition), Edward N. Zalta (ed.).
O desejo individual cria a ideologia, ou apenas reflete o espírito de nosso tempo?
Estamos em um momento em que a ideologia liberal ultra-individualista tem angariado vitórias expressivas, aliada que está ao conservadorismo, a um certo patriotismo que identifica a nação à sua própria bolha social, e a uma ativa e propositiva rede de milícias digitais. Mas as ideologias também existem em outras direções, por exemplo, resistem socialismos, usualmente associados a uma defesa de minorias e direitos coletivos, bem como a uma sujeição do indivíduo ao grupo. Mas ideologias afinal refletem uma realidade
social, ou produzem esta realidade? Os indivíduos escolhem suas ideologias em um cardápio de possibilidades, ou são as ideologias que selecionam e moldam indivíduos à sua imagem e semelhança? Na pesquisa científica, a seta que aponta do indivíduo ao social (à ideologia) é conhecida como estratégia de pesquisa partindo de baixo, de níveis inferiores, para níveis superiores de organização. Já a seta que aponta a causalidade partindo das ideologias e atingindo os indivíduos é conhecida como estratégia de pesquisa de cima, da organização social, para os níveis inferiores de organização, e esta segunda estratégia deixa implícito que o indivíduo é em geral um peão conduzido por regras sociais que o suplantam e o superam.
O medo de perder a individualidade, o medo de ser apenas um peão, a vontade de que o indivíduo, de que eu consiga virar as regras do jogo social impondo minha própria lei, superando assim as adversidades da vida em grupo, é esta vontade de potência e afirmação do indivíduo que está na raiz do capitalismo liberal. Já na raiz das ideologias mais socializantes temos o desejo de conformidade, de desaparecer na multidão, a vontade de fazer parte de algo maior e justificar sua existência individual através do coletivo, o entendimento de que o todo é maior que a soma de suas partes. Mas, novamente, é o desejo individual que cria a superestrutura social ou, ao contrário, nossos desejos apenas refletem o espírito de nosso tempo ou, para sermos mais comedidos, são fruto da dinâmica de nossa bolha social?
A relação entre as capacidades cognitivas e personalidade de um indivíduo com a ideologia que ele abraça (ou que o envolve) pode ser analisada empiricamente, aliando testes, que avaliam a capacidade cognitiva, a questionários objetivos, que medem afinidades ideológicas. Foi exatamente o que fez o pesquisador Leor Zmigrod e uma equipe de psicólogos, em um estudo recente publicado na prestigiosa Philosophical Transactions of the Royal Society. Eles partiram de dados coletados em trêsestudosprévios, com uma grande amostra de 522 norte-americanos. Assim, foram previamente investigadas algumas habilidades cognitivas básicas: precaução, velocidade de percepção, velocidade de acúmulo de evidências, desconto temporal (a capacidade de deixar para depois uma gratificação, visando seu possível posterior aumento), e uso estratégico de informação. Foram também previamente quantificados 12 traços de personalidade, avaliando tendência a assumir riscos financeiros, assumir riscos sociais, apresentar controle emocional, perseguir objetivos, impulsividade, entre outros. Em uma sub-amostra de 334 desses indivíduos anteriormente estudados, os autores então aplicaram novos questionários, avaliando as crenças religiosas, o nacionalismo, as inclinações político-ideológicas, e o grau de dogmatismo. Seu objetivo, ao final, era buscar fatores cognitivos e traços de personalidade que fossem preditivos da orientação ideológica de um indivíduo.
Percebam de cara que os resultados do estudo podem ter aplicações assustadoras, visto que muitos desses testes cognitivos poderiam ser aplicados sub-repticiamente, enquanto jogamos online, por exemplo, ou enquanto respondemos a questionários aparentemente inofensivos (quiz) em redes sociais. A popularização de um poder assim imenso pode tornar coisa do dia-a-dia escândalos como o terrível caso da Cambridge Analytica, a empresa que usou dados do Facebook para manipular um importante referendo popular, determinando assim nada mais nada a menos que a separação do Reino Unido da União Européia.
Os resultados do estudo de fato sugerem que um poder ainda maior está ao alcance de muitos. Quando comparados a pessoas de ideologia mais à esquerda, conservadores nacionalistas são, em termos cognitivos, mais cautelosos, fazem mais desconto temporal (trocam mais facilmente um pequeno ganho hoje por um grande ganho em um futuro distante), e utilizam de forma menos estratégica a informação disponível. Já quanto à personalidade, conservadores nacionalistas são mais impulsivos, seguem mais de perto seus objetivos, e tomam muito menos riscos sociais. Dogmatismo, religiosidade, e conservadorismo apresentam diferentes assinaturas em termos do perfil cognitivo e de personalidade; por exemplo, dogmáticos tendem a não acumular evidências para a tomada de decisões (um campo fértil para as fake news), enquanto religiosos percebem rapidamente riscos, e são de caráter socialmente agradável. Outro resultado importante, é que o uso de testes psicológicos aumenta em quatro vezes nossa capacidade de prever a orientação ideológica dos indivíduos, em oito vezes a previsibilidade acerca de sua inclinação religiosa, em em 15 vezes a previsibilidade acerca do grau de dogmatismo dos indivíduos.
Como vimos no escândalo da Cambridge Analytica (escândalo que possivelmente se repetiu em nossa última eleição presidencial), o conhecimento acerca da distribuição geográfica fina de inclinações ideológicas na população permite o direcionamento preciso de campanhas publicitárias específicas para alvos específicos, aumentando enormemente a eficácia da propaganda política. Mas o potencial que vemos agora é maior: mapear em tempo real a cognição e a personalidade da população, com alguns poucos testes rápidos, abre uma janela sem precedentes para a manipulação ideológica da sociedade, e a simples existência de tamanho poder requer imediatamente um posicionamento da sociedade, um debate que ainda estamos por fazer.
Muitos países, particularmente a União Européia, estão impondo fortes restrições a corporações digitais, como Google, Facebook, e Microsoft, no sentido de impedir o uso comercial (ou político) de dados pessoais. A China, por outro lado, não demonstra preocupação alguma neste sentido; muito ao contrário, o estado chinês inclusive está aparentemente buscando estatizar o acesso a estas informações pessoais, por ora distribuídas em gigantes tecnológicas como Baidu, Alibaba, e Tencent; caso os recentes e bem sucedidos testes com o uso estatal de moeda (yuan) digital na China se expandam com sucesso para todo o país, o governo assumirá o controle de um banco de dados que compreende toda a população, e toda movimentação de compra ou venda (valor e objeto negociado). Isso implica o rastreamento em tempo real do quê, quando, onde, e quem compra. É um poder informacional talvez imenso demais para se ter, a ponto de autores como Shoshana Zuboff decretarem que o capitalismo entrou em uma nova era, na qual a vigilância digital cria um mercado de comportamento futuro, no qual as previsões sobre os desejos de cada um (e o controle destes desejos) são o produto que passa a ditar as regras ao mercado industrial, direcionando inclusive as apostas no mercado financeiro.
Independentemente do que se faça com este tipo de informação digital rápida e rastreável, se seu uso será permitido, incentivado, banalizado, banido, controlado, independentemente de nossa decisão coletiva, que só conheceremos após um grande debate nacional, cabe aqui uma outra discussão, talvez ainda mais relevante. Será que, como pressupõem Leor Zmigrod e colegas, em seu estudo acima detalhado, são a personalidade e a cognição do indivíduo que seriam preditivos de sua ideologia? Por que não o inverso? É fácil de se imaginar que um construto coletivo e histórico como a ideologia seja mais difícil de ser alterado que a personalidade ou a cognição de um indivíduo. Se a seta de causalidade for invertida, se o social determinar o indivíduo, então é o social que prevê a personalidade e a cognição individuais. Alternativamente, será que não existiria uma relação dialética, onde o indivíduo afete e seja afetado pelo social? Se for assim, simples modelos de causalidade unidirecional (do indivíduo para o social) não serão suficientes para prever o comportamento no longo prazo. Talvez no curto prazo, talvez no tempo do desejo individual se saciar em compras, ou no tempo de um segundo turno eleitoral, talvez para previsões de curto prazo, não faça diferença o uso de um modelo mais simples (unidirecional) ou mais complexo (bidirecional, dialético). Mas no longo prazo da competição entre nações, no tempo das irreversíveis mudanças climáticas, no longo prazo da sobrevivência da humanidade e de nosso pequeno planeta Terra, talvez para decisões com esta gravidade e este longo prazo, tenhamos, afinal, que considerar utilizar modelos mais complexos. Neste caso, o que estamos fazendo é considerar a possibilidade de encontrarmos ideologias novas ou modificadas que ajudem a salvar os indivíduos. Essa possibilidade parece muito necessária, quando vemos ideologias conservadoras causando múltiplos genocídios em nosso país, hoje.
Para saber mais:
Zuboff, S. 2021. A era do capitalismo de vigilância. Editora Intrínseca, Rio de Janeiro.
Lee, K. 2019. Inteligência artificial: como os robôs estão mudando o mundo, a forma como amamos, nos relacionamos, trabalhamos e vivemos. Editora Globo, Rio de Janeiro.
Vivemos entre o sonho de que um herói, a tecnologia, virá nos salvar, do iminente esgotamento e desbalanceamento de nosso planeta, ou seja, vivemos entre o sonho de um Salvador, um gênio que se destaca no tecido social, e o paraíso de uma sociedade onde todos são iguais, perante a lei, perante Deus, perante … parece que sempre tem alguém, mesmo nestes paraísos utópicos, que se posta acima dos demais, com autoridade suficiente para julgá-los. Será que nossa mente humana pensa de forma tão hierárquica que não conseguimos conceber a igualdade plena?
O que significaria uma igualdade plena? Depende. Se estamos falando em termos absolutos, os iguais seriam clones com uma mesma experiência de vida. Se estamos falando de “iguais perante a lei”, não precisamos que haja igualdade absoluta, desde que os desiguais sejam tratados em pé de igualdade. Claro, cabe dizer que dar condições iguais a indivíduos de partida desiguais significa logicamente que devemos, enquanto sociedade e enquanto legisladores e juízes, garantir que não haja aqueles poucos afortunados de berço que iniciam uma corrida de 100 metros rasos já a dez metros da chegada. Para que a meritocracia faça sentido em um país, e em um mundo, onde o racismo estrutural vem sendo cada vez mais desmascarado, onde o mito do brasileiro cordial vem sendo exposto, a justiça requer que os mais afortunados iniciem a corrida bem mais atrás que o indivíduo médio.
Como é que a biologia lida com as diferenças? Em primeiro lugar, há um princípio básico que norteia o pensar biológico: a diversidade é a base sem a qual não há evolução. Se queremos nos adaptar a um mundo em mudanças, temos que nos cercar de diversidade de estilos de pensamento, de estilos de vida, de morfologia, de cor, de estatura, de sociabilidade, enfim, diversidade é a palavra mais fundamental e cara ao pensamento biológico. Dito isto, fica claro que não devemos tolerar, mas sim louvar a diversidade, entre elas a diversidade étnica humana. Agora, muito cuidado com este pensamento colocado assim de forma tão crua. Não vá sair por aí repetindo esse chavão de duas ou três linhas. Pseudo-intelectual é aquele sujeito que só lê seu feed de imagens associadas a duas ou três linhas de texto e que, por isso mesmo, tem um discurso que é basicamente uma colagem de frases de impacto, curtas e desconexas. Para que não nos transformemos em um raso caleidoscópio intelectual, temos que prosseguir na leitura, e temos que diversificar nossas fontes confiáveis de informação. Aqui cabe um aviso aos navegantes: aquelas três linhas de texto nunca são suficientes, elas são, sempre, apenas um chamariz. Entenda: seu feed na rede social não é fonte confiável de informação, é puro bate papo de boteco, só que enquanto o que se fala no boteco acaba no boteco, o que se escreve na rede social pode acabar na justiça.
A diversidade é valorizada tanto na ecologia quanto na evolução. Se os indivíduos de um ecossistema, em toda sua diversidade, podem se associar positiva ou negativamente, seria de se imaginar que as associações positivas sejam a fonte deste valor biológico dado à diversidade. Associações negativas são, por exemplo, a predação, ou a competição. Quando o liberalismo econômico apregoa que a competição entre os agentes econômicos (que às vezes é total predação) é melhor para a sociedade, ele está no fundo fomentando uma interação ecológica negativa. Claro, existem também interações positivas, como comensalismo, simbiose, altruísmo. De um modo geral, é possível, dentro da biologia, explicar as interações positivas a partir da competição entre rivais, com um argumento basicamente utilitarista: em certas circunstâncias me seria útil ajudar meu rival porque isto me traria mais benefícios que prejuízos. Assim, a competição tem gradativamente se colocado como a força predominante na organização do pensamento biológico, muito possivelmente em função do ethos liberal predominante na história do ocidente: somos todos formados em sociedades que valorizam a competição, de modo que pensar em termos competitivos tem sido, para nós, mais fácil que pensar em termos cooperativos. De que forma uma interação negativa como a competição pode gerar um valor positivo? A resposta usual é aquela do feed de notícias: os mais fracos morrem primeiro, e com isso os melhores sobreviventes vão gradativamente melhorando o mundo. Se você acha que o mundo está melhorando, você pode até acreditar no seu feed de notícias, e parar de ler o texto aqui.
Para aqueles mais de 90% da população para os quais o mundo não está melhorando, vamos descer mais fundo um pouco em nossa análise. O que acontece quando o interesse dos competidores se alinha? Duas coisas podem resultar: se o alinhamento é total, a tendência é a formação de uma sociedade extremamente coesa e integrada, essencialmente cooperativa, e se o alinhamento é apenas parcial, permanece uma competição interna, especialmente no que se refere a algumas tarefas (aquelas nas quais não há alinhamento de interesses). Alinhamentos fortíssimos de interesse acontecem, por exemplo, em inúmeros invertebrados sociais, notavelmente entre os insetos sociais. Quando eu devoto minha vida inteira ao sucesso de outros indivíduos (geralmente a rainha, ou a nobreza), é muito provável que haja um alinhamento fortíssimo de interesses (embora, sim, às vezes possa ser apenas a velha e boa coerção social). Entre os vertebrados essa hipersocialidade é muito mais rara, ocorrendo, por exemplo, nos estranhíssimos ratos toupeira pelados (Heterocephalus glaber). Como analisamos há pouco tempo aqui no Darwinianas, nossa socialidade deve ter sido selecionada em grupos pequenos, e em situação de escassez de recursos alimentares, situação que favoreceria indivíduos totipotentes (e não de castas especializadas, como rainhas reprodutoras, operárias forrageadoras, cuidadoras de ninho, etc) e, portanto, com grande cérebro. No entanto, com o advento da domesticação de plantas e animais, há cerca de 10 mil anos, passamos a ter recursos abundantes e grupos sociais maiores, situação que, ao contrário, favorece a especialização cognitiva que temos visto hoje em dia, cada um de nós em uma função muito específica dentro da sociedade. A organização social pressupõe uma convergência de interesses, mas que nível de convergência temos hoje? Estamos caminhando para uma sociedade de formigas, ou abelhas? Já vimos, também aqui no Darwinianas, que coletividades de cérebros minúsculos muitas vezes podem resolver problemas mais complexos que um mesmo número de indivíduos atuando isoladamente. Não pela força bruta do coletivo, não porque a união faz a força, mas porque a união faz a inteligência. No caso dos insetos sociais, alguns têm defendido que estes superorganismos (colmeias, cupinzeiros, formigueiros) conseguiram construir uma nova cognição, um meta-cérebro, uma coletividade pensando e utilizando para isso o cérebro dos indivíduos como ferramentas que controlam o fluxo de informação na colônia, de tal forma que os indivíduos passariam a ser como neurônios de um cérebro maior. É o que defendem Sasaki e Pratt, ao revisar a literatura e mostrar que, como os cérebros nossos, uma colônia de insetos sociais se auto-organiza ao redor de núcleos de informação: duas trilhas de formigas são duas estruturas sociais auto-organizadas competindo pela atenção da colônia, buscando cada uma recrutar um número maior de insetos para si. Ao final, a colônia decide (uma das trilhas desaparece), e geralmente decide pela melhor opção disponível (permanece ativa a trilha que focou no alimento mais próximo, ou em maior quantidade). Ao final, um grupo de indivíduos irracionais (que teriam individualmente feito uma escolha irracional) apresenta, sistematicamente, uma decisão racional, o que indica que a racionalidade emergiria no social, a partir desta auto-organização supra-individual ao redor de núcleos de compartilhamento informacional. Tudo isso parece muito bonito, e há um grande frisson na literatura acerca desta cognição social emergente. O superorganismo teria afinal uma super-mente.
Finalizo este texto com duas questões importantes: primeiro, será mesmo que a seleção natural teria produzido super-mentes nos insetos sociais? Segundo, será mesmo que nós, humanos, estamos trilhando este caminho para uma super-mente? Com relação à primeira, e para fazer simples um longo argumento que estamos desenvolvendo agora, entendo que há um otimismo exagerado na literatura ao atribuir a colmeias e formigueiros uma super-mente social que controlaria as mentes individuais dos insetos. Literalmente, as colônias de insetos sociais não deveriam ser chamadas de superorganismos, porque elas não têm um si-próprio, um controlador social do comportamento individual, uma personalidade de colmeia, um desejo de formigueiro (para além dos desejos das formigas individuais). Com relação à segunda pergunta, podemos apenas especular. Entendo que temos cérebros grandes demais, que fomos selecionados por tempo demais em grupos pequenos sob escassez de recursos, e reverter todo este grande cérebro hierárquico para um funcionamento cooperativo em colmeia iria requerer agora uma revolução biológica importante. A seleção natural predominante hoje é provavelmente neste sentido, digamos, de uma certa cupinização da humanidade. Mas estamos também sob forte pressão de seleção cultural, e estas novas cartas culturais no velho baralho evolutivo podem passar a ditar as regras de nossa futura organização social. Se caminharmos no sentido de uma maior coesão social, com a China se tornando a maior potência e portanto espelho para o mundo, estaremos caminhando no sentido deste superorganismo humano. O organismo é uma entidade incrível, ele reúne diversidade interna (cada órgão se especializa em uma função) e unicidade (todos têm um mesmo objetivo e funcionam em conjunto. Em cima disso tudo há ainda uma autonomia decisória: o que o organismo decide não é necessariamente fruto daquilo que seus órgãos necessitam no momento: posso entrar em jejum mesmo estando com fome. Ao mesmo tempo, as decisões do organismo não são necessariamente fruto de estímulos do mundo externo: quando vejo uma presa, ou um parceiro sexual, posso ignorá-los, ou fugir deles, emitindo assim respostas não esperadas. A autonomia do organismo em relação a seus órgãos internos e ao mundo externo é o que precisaríamos ter no nível social, se a sociedade for caminhar no sentido de adquirir uma super-mente.
Para nós, seres humanos, tornar nossa sociedade um pouco mais orgânica significaria valorizar a diversidade de funções que grupos humanos distintos podem ter em uma sociedade ampliada, ao tempo em que se deveríamos também criar objetivos e mitos e utopias comuns a todos, que norteassem assim um funcionamento unificado, dando coesão à necessária diversidade. Veja agora que chegamos ao final do texto com uma ideia bem distinta acerca da importância da diversidade. No seu feed de notícias, a diversidade humana seria importante como um seguro contra a adversidade imprevisível do futuro: se o mundo mudar, teremos sempre algum variante (morfológico, comportamental, cognitivo) presente que dará conta da nova pressão seletiva, enquanto os variantes restantes serão contra-selecionados: os índios, os negros, os gays, todas estas minorias morrerão, para que a humanidade permaneça. No entanto, o que vemos agora, ao final do texto, é algo muito distinto: a variação pode ser importante para que a sociedade resista melhor às mudanças, já que cada variação pode ter uma função complementar para o conjunto orgânico da humanidade. As diferenças entre os seres humanos, nesta visão mais organicista de sociedade, produziriam uma maior resiliência desta sociedade a perturbações, permitindo reorganizações frente a mudanças no ambiente. Uma sociedade mais orgânica: um belo desejo de ano novo. Vamos sonhar juntos?
Como a ciência joga luz sobre questões complexas? Já discutimos no Darwinianas que a produção do conhecimento muitas vezes requer o desenvolvimento de modelos. Modelos são representações da realidade que deixam de fora parte de sua complexidade e dessa forma tornam fenômenos naturais passíveis de explicação e mais acessíveis para nossa cognição, nossas ferramentas experimentais e nossa capacidade analítica.
O recurso a modelos é algo tão inerente ao modo como fazemos ciência que às vezes até esquecemos que nosso conhecimento é intermediado por eles. No post desta semana do Darwinianas , compartilhamos um vídeo de uma conversa com Charbel Niño El-Hani, um dos autores do blog, a respeito do papel de modelos em biologia. A conversa foi originalmente gravada para um curso de Biologia Evolutiva da Universidade de São Paulo, e é motivada pelo uso de modelos no estudo da evolução.
Charbel discute a importância de modelos na ciência e a necessidade de estarmos sempre atentos aos limites impostos pelospropósitos, natureza e estrutura de cada modelo. A ciência depende de bons modelos, mas mesmo bons modelos precisam ser continuamente examinados com um olhar crítico.
As hidras mostram que sua constância morfológica é um redemoinho de células modulado pelo diálogo de seu genoma com o ambiente. E nos desafiam novamente a repensar conceitos.
Em 1741, o naturalista suíço Abraham Trembley descreveu uma pequena criatura que habitava lagos e rios da Europa. Ela era verde, tinha forma de tubo e passava a maior parte do tempo agarrada ao substrato, como uma alga. Mas às vezes se soltava e caminhava lentamente para um novo local, dando graciosas cambalhotas. Tinha tentáculos delicados na parte de cima que variavam em número entre diferentes indivíduos, algo incomum para uma espécie de animal.
Trembley não tinha certeza se a criatura era uma planta ou um animal. Para responder essa dúvida, ele fez um experimento, método que só viria a ser comum em biologia mais de um século depois. Ele cortou a criatura ao meio e elaborou uma hipótese: se fosse um animal, morreria; se fosse uma planta, brotariam dois novos indivíduos. Após alguns dias, cada parte da criatura cortada ao meio gerou dois indivíduos completos (Figura 1). E quando cortada em quatro partes também. Não importando se eram pedaços grandes ou pequenos, cortes verticais ou horizontais, sempre se regeneravam organismos completos de cada fragmento.
Trembley concluiu que era uma planta. Mas sua conclusão ruiu quando observou um indivíduo capturar e comer uma presa. Tratava-se de um animal com capacidades extremas de regeneração. Linnaeus batizou o animal de Hydra, em referência ao mito grego de Hidra de Lerna, um monstro marinho capaz de regenerar uma nova cabeça cada vez que era cortada (foi finalmente derrotado por Héracles com a ajuda de um cauterizador).
Figura 1: Estátua de Héracles lutando contra Hidra de Lerna, no Louvre, em Paris (esquerda); Uma Hydra cortada em duas partes regenera dois indivíduos completos (esquerda).
A pequena Hydra de Trembley foi mais que uma curiosidade para ciência do século XVIII. Foi uma monstruosa anomalia para as teorias preformistas apoiadas na visão mecanicista do animal máquina. Para os preformistas, a forma do animal adulto preexistia miniaturizada em ovos ou espermatozoides. Não havia verdadeira geração da forma, mas simplesmente crescimento. A hidra desafiava essa concepção ao gerar novos indivíduos a partir de diferentes partes. Um século depois, o preformacionismo foi completamente abandonado e a visão de que a forma dos animais é construída durante o desenvolvimento embrionário se tornou um consenso.
As hidras são cnidários, como os corais, anêmonas e águas-vivas. Na biologia contemporânea, ela se tornou um organismo-modelo para estudar os mecanismos celulares e moleculares que controlam a capacidade de regenerar partes e órgãos. As células de seu corpo, ao contrário das nossas, estão todas constantemente se dividindo e substituindo as antigas, em uma contínua recriação corporal. Células que se dividem na região central se movem continuamente em direção às extremidades, seguindo gradientes moleculares de proteínas na cabeça e na base do corpo. Quando cortada ao meio, a hidra regenera uma cabeça no lado que tinha maior concentração da proteína produzida na região da cabeça, coordenando assim a reconstrução do eixo corporal.
A proteína secretada por células na região da cabeça foi chamada de WNT e ativa a produção de outras proteínas nas células vizinhas. O número variável de tentáculos é uma indicação da potência da atividade de WNT. Quando uma molécula sintética que ativa a via de WNT é colocada na água, as hidras desenvolvem tentáculos em todo o corpo (Figura 2). Um estudo publicado esse mês por cientistas alemães mostrou que o gradiente molecular de WNT depende também de fatores abióticos e bióticos. Indivíduos criados a 12°C desenvolvem em média 40% menos tentáculos do que indivíduos criados a 18°C, e indivíduos que tiveram as bactérias simbióticas da pele eliminadas pela aplicação de antibióticos desenvolvem quatro vezes mais tentáculos. Mostraram ainda que temperatura e bactérias influenciam diretamente onde se expressam genes do genoma da hidra.
Figura 2: Expressão de WNT na região apical de uma Hydra (esquerda); Plasticidade de uma Hydra exposta a diferentes temperaturas.
A biologia moderna frequentemente descreve o desenvolvimento embrionário como um processo controlado autonomamente pelo genoma em direção a um estado adulto estável. O ambiente é visto como condição de fundo ou fonte de ruído de um processo que é controlado internamente. Mas as hidras mostram que sua constância morfológica é um redemoinho de células modulado pelo diálogo de seu genoma com o ambiente. E nos desafiam novamente a repensar conceitos.
Os números da pandemia provocada pelo COVID-19 ratificam as desigualdades raciais na saúde e trazem novos ingredientes ao debate recorrente sobre o conceito de raça.
Tem sido noticiado na mídia de massa e nos meios de divulgação científica que indivíduos da população negra são mais propensos a morrer de COVID-19 do que os brancos. Por exemplo, no Reino Unido a taxa de óbito de pessoas não-brancas é significativamente maior do que a taxa de pessoas brancas, apesar de representarem apenas 14% da população. Nos EUA, a taxa de mortalidade de negros por COVID-19 é o dobro daquela observada em outras etnias, como latinos e asiáticos e três vezes a mortalidade de brancos. No Brasil, enquanto a taxa de óbito por COVID-19 em internados brancos é de 38%, a taxa para pessoas negras é de 55%. Continue Lendo “Vulnerabilidade da População Negra ao Covid-19 e o Conceito Biossocial de Raça”
O filósofo da biologia Gustavo Caponi, professor da UFSC, faz duas aclarações porque Design Inteligente não é ciência.
Na ciência duvida-se a partir do conhecimento e não a partir da ignorância. Duvida-se a partir daquilo que sabemos, e não a partir daquilo que ainda ignoramos. Nada no conhecimento biológico contemporâneo justifica dúvidas sobre o fato de todas as formas vivas descenderem de um ancestral comum do qual elas evoluíram, nem há razão razoável para supor que, algum dia, essas dúvidas possam vir a surgir. É por isso que tais dúvidas só podem ser colocadas a partir do exterior da ciência; e é por essa mesma razão que elas estão excluídas de qualquer discussão científica. Tal é o caso das objecções à teoria da evolução que hoje são levantadas pelos neo-criacionistas que promovem isso que eles chamam ‘design inteligente’: uma pretensa explicação da adaptação biológica que se quer apresentar como alternativa à Teoria da Seleção Natural. Ela está enunciada a partir do exterior da ciência por duas razões que eu vou apontar aqui.
A primeira delas tem a ver com o fato de, na ciência, seja qual for a explicação dada a um fenômeno, essa explicação deve aludir a variáveis acessíveis ao próprio conhecimento científico, independentemente do próprio fenômeno que se almeja explicar. O que, claramente, não é o caso do ‘desenhista inteligente’ que alguns pretendem invocar para explicar as adaptações de estrutura e função que ocorrem nos seres vivos. Esse projetista misterioso, que sempre foi mais conhecido como ‘Deus’, é uma entidade cujos estados e comportamentos escapam a qualquer conhecimento empírico e a qualquer intervenção ou manipulação experimental. Explicar uma adaptação complexa apelando para esse projetista não é diferente de explicar uma tempestade marinha apelando para a ira de Netuno. Nesse caso, se nos perguntarem como sabemos que Netuno está zangado, a única resposta que poderemos dar é que a tempestade está lá para confirmar essa cólera. Já no caso do desenhista inteligente, se perguntarmos a um de seus adoradores como ele sabe que esse projetista é responsável por uma determinada estrutura, a única resposta que teremos é que a complexidade da estrutura está lá para confirmar a resposta. Essa complexidade, nos dirão, é tão grande que só pode ser explicada por uma intervenção sobrenatural; e é ao invocar essa intervenção que a resposta do design inteligente fica irremediavelmente desterrada do âmbito daquilo que pode ser considerado um exame científico.
Mas, além disso, que já é razão suficiente para descartar a cientificidade da soi-disant ‘teoria do design inteligente’, também deve ser apontado que, ao contrário daquilo que seus proponentes afirmam, essa pretensa teoria não resolve nenhuma dificuldade que ainda não tenha sido resolvida em termos evolucionistas. A tão apregoada ‘complexidade irredutível’ não tem nada de irredutível, e o próprio Darwin já havia explicado isso. Ele o fez em 1859, na primeira edição de Sobre a Origem das Espécies; e, por via das dúvidas, o esclareceu ainda mais em 1866, na quarta edição dessa mesma obra.
Todavia, como o evolucionista católico Saint George Jackson Mivart se fez de distraído, e voltou a essa suposta dificuldade em sua obra de 1871, A Gênese das Espécies, o célebre darwinista alemão Felix Anton Dörhn viu-se obrigado a fazer um esclarecimento final, e definitivo, sobre o assunto. Ele o apresentou em seu opúsculo de 1875: A Origem dos Vertebrados e o Princípio da Sucessão de Funções. Este último princípio era, justamente, um pressuposto que Darwin não tinha conseguido enunciar com total clareza quando ele discutiu os órgãos extremamente complexos.
A ideia, no entanto, é relativamente simples; e para entendê-la temos que começar no mesmo ponto do qual parte o frágil argumento da ‘complexidade irredutível’: qualquer estrutura para ser submetida ao aprimoramento da seleção natural deve ter algum desempenho funcional biologicamente significativo. Portanto, para explicar a origem das estruturas cujo desempenho funcional atual supõe uma complexidade estrutural cuja origem evolutiva não pode ser atribuída ao mero acaso, temos que apelar para o Princípio de Sucessão de Funções. Este leva a pensarmos que essa complexidade morfológica foi o resultado de pressões seletivas que tiveram a ver com uma outra função realizada por essa mesma estrutura, numa etapa anterior da sua evolução. Esse pode ser um desempenho funcional que não exigia necessariamente tanta complexidade morfológica, mas cuja otimização poderia resultar naquele aumento de complexidade que permitiu o aparecimento da nova função. Para dizer de outra forma, uma função complexa é produto de uma série de modificações estruturais resultantes da otimização de funções anterior menos complexas.
Os evolucionistas sabem disso desde 1859, e não precisaram de Nietzsche para lhes contar: a história do olho não é a história da visão. Não é assim porque, nas suas formas mais primitivas, aquilo que chamamos ‘olho’ não desempenhava a função de ver, mas de detectar movimentos ao redor, sensíveis como mudanças na intensidade de luz captada. Pela mesma razão, a história das penas e a história das asas das aves não são a história do vôo: inicialmente as penas evoluíram em virtude do equilíbrio térmico; e, nas suas origens, aquelas estruturas que agora chamamos de ‘asas’ evoluíram em virtude de algo muito distinto do vôo. E algo semelhante, embora muito mais simples, foi o acontecido, conforme Kenneth Miller o apontou, com a evolução dos flagelos bacterianos: essas estruturas que alguns acólitos do ‘design inteligente’ apresentam em filminhos adubados com musiquinha e invocações ao sobrenatural. Em sua forma “completa”, são estruturas de propulsão. Tomadas apenas suas subunidades, são estruturas de bombeamento de moléculas.
É claro, entretanto, que estudar esses tortuosos processos de otimização e mudança funcional acaba sendo muito complexo e árduo, algo que requer muito trabalho. Por isso, para os espíritos preguiçosos, é mais fácil esquecer de Dörhn, curvando-se piedosamente perante uma suposta complexidade irredutível: como Mivart fez em 1871; como Lucien Cuénot fez novamente em sua obra Invenção e Finalidade em Biologia de 1941; e como mais recentemente Michael Behe e seus seguidores também o fizeram. Nada de novo no front.
Desterro de Fritz Müller
12 de Fevereiro de 2020
Darwin’s Day 2020
Gustavo Caponi (Departamento de Filosofia, UFSC)
PARA SABER MAIS:
CAPONI, Gustavo 2013: El 18 Brumario de Michael Behe: la teoría del diseño inteligente en perspectiva histórico-epistemológica. Filosofía e História da Biologia 8 (2): 253-278.
MILLER, Kenneth 2010: The flagellum unspun: the collapse of ‘irreducible complexity’. In ROSENBERG, Alex & ARP, Robert (eds.): Philosophy of Biology. Malden: Wiley-Blackwell, pp.438-449.
O Governo Federal indicou para a direção da CAPES – uma agência do Ministério da Educação que regula, avalia e financia atividades de ensino superior – um adepto do Design Inteligente (DI), uma vertente do criacionismo, que nega a teoria da evolução. Por que isso importa?
O livro “A origem das espécies” foi publicado por Charles Darwin há 161 anos. Nele, Darwin constrói um longo argumento acerca de uma ideia central: todos os seres vivos, que vivem ou já viveram, são aparentados uns aos outros e se modificaram a partir de ancestrais comuns. Segundo Darwin, a seleção natural explica muitas das mudanças que os seres vivos sofreram ao longo do tempo.
Há quem não aceite essas ideias. Para criacionistas a diversidade de seres vivos que existe na Terra não resulta da evolução, mas é de alguma forma produto de intervenção divina. Há várias vertentes do pensamento criacionista, mas todas em algum grau negam a ideia básica de que a evolução ocorreu.
O que significa ser um criacionista em 2020?
Ainda que o criacionismo negue a Evolução, começo por lembrar que o pensamento evolutivo pode ser adotado por praticantes de diferentes religiões. Há uma rica história de cientistas que conciliaram, cada qual da sua forma, o pensamento evolutivo e a espiritualidade. No Brasil temos, entre tais pensadores, Crodowaldo Pavan (que foi membro da Academia de Ciências do Vaticano) e Newton Freire Maia (evolucionista e católico praticante). Sim, é possível ter fé e ser evolucionista. No próprio Darwinianas temos um colaborador que é religioso. Espírita praticante, acredita em Deus, em muitas histórias contadas e registradas na Bíblia e nem por isso deixa de ser evolucionista e pesquisador de primeira linha. Diante desse cenário, torna-se muito importante distinguir entre uma visão criacionista, como uma visão religiosa, legítima dentro do domínio da religião, e a tentativa de propor criacionismo como se fosse teoria científica, que se torna uma forma ilegítima de pseudociência.
A versão mais moderna do criacionismo é o Design Inteligente (DI). O argumento dessa forma de criacionismo é que os seres vivos possuem estruturas que são complexas demais para terem se originado pelo processo evolutivo. Segundo o DI, a existência de estruturas complexas refuta a evolução pois a “remoção de uma das partes faria com que o sistema efetivamente cessasse de funcionar”. Considere um olho, que é uma estrutura complexa feita de muitas partes. Assumindo que ele só funciona com todas as peças no lugar, ele precisaria ter surgido já completo, com todas as suas partes, pois olhos incompletos não seriam funcionais. A evolução, vista como processo em que sucessivas mudanças explicam a transformação, não acomodaria o surgimento de uma estrutura complexa de uma só vez. Dada a suposta impossibilidade de explicar o surgimento de traços complexos por processos naturais, os defensores do DI concluem que o responsável seria algum “projetista”, de identidade desconhecida. O indicado para a presidência da CAPES é um defensor do DI. Ele advoga que o ensino do design inteligente deveria estar presente a partir da educação básica.
Mas os argumentos do DI já foram refutados. Por exemplo, o complexo flagelo das bactérias (estrutura que usam para locomoção) é constituído de múltiplas peças (30 proteínas, para ser mais preciso). Os defensores do DI argumentam que flagelos sem todas as peças no lugar não funcionariam, e que seria impossível que a evolução originasse essa estrutura complexa juntando “de uma só vez” 30 proteínas diferentes. Mas eis que Kenneth Miller estudou a fundo o flagelo bacteriano e descobriu que um subconjunto de proteínas do flagelo também exerce funções completamente distintas da locomoção, injetando toxinas em outras células. Assim, o flagelo não seria formado do zero, mas a partir de grupos de proteínas que já estavam montados, exercendo outra função. Assim, fica muito mais fácil explicar a origem do flagelo, pois peças que o constituem já estavam presentes antes de existirem flagelos, mas exercendo uma função distinta. Dessa forma, conseguimos explicar a existência da estrutura intermediária que culminou na origem do flagelo, e desmontamos o argumento usado pelo Design Inteligente. Ou seja, mesmo se assumíssemos para fins do argumento que o DI poderia ser mais do que uma pseudociência, e supuséssemos que ele poderia ser uma teoria científica, ainda assim o DI não seria mais do que uma teoria refutada.
E não se trata de somente uma refutação. Outros argumentos favoritos do DI também já foram refutados: a complexa via de coagulação é constituída de proteínas que, também de acordo com estudos de Miller, antes de haver coagulação atuavam no processo de digestão. Há também experimentos em laboratório que mostram que traços complexos surgem a partir de estruturas que desempenhavam outras funções anteriormente. Insistir nos argumentos do DI é negar resultados de trabalhos científicos reconhecidos. E, o que é mais preocupante, há quem insista na ideia de que se deveria colocar esses argumentos refutados dentro da sala de aula. Uma vez que eles foram cientificamente refutados, o propósito parece ser apenas tentar negar a evolução, nada além disso. Fazê-lo traria grandes prejuizos à educação científica dos brasileiros e, na verdade, de qualquer cidadão do planeta. Mas por que?
Ora, por que ser defensor do DI implica negar um vasto corpo de conhecimentos, que reúne ideias da paleontologia, da genômica, da anatomia, da biogeografia. Significa refutar não um experimento ou estudo isolado, mas toda uma vasta literatura, construída ao longo de mais de um século, inteiramente consistente com as ideias básicas da evolução: somos todos aparentados, descendemos de ancestrais comuns com modificações influenciadas pela seleção natural.
Defender o DI significa, por exemplo, fechar os olhos para experimentos feitos em laboratório por Richard Lenski, que comparou bactérias ao longo de 20 anos e documentou sua transformação pela seleção natural. Significa ignorar os estudos de Peter e Rosemary Grant, que mediram os bicos de tendilhões (uma grupo de aves) ao longo de décadas e mostraram que as suas dimensões mudaram de uma maneira consistente com a disponibilidade de alimentos das ilhas que habitavam, novamente como previsto pela seleção natural. Ser defensor do DI em 2020 é deixar de lado os estudos que identificam mutações em genes que controlam o desenvolvimento de animais, e são capazes de explicar como ao longo do tempo uma pata pode ter se tornado uma nadadeira. Ser defensor do DI significa prescindir de um olhar evolutivo sobre como tumores se transformam ao longo do curso de uma doença: sim, tumores também evoluem, e as teorias usadas para explicar a evolução das espécies ajudam a entender como as células num tumor coexistem e competem, e como a constituição da massa de células que chamamos de tumor se transforma. Ser defensor do DI implica fechar os olhos para a resposta que temos nos dias de hoje para aquilo que Darwin chamou de “o mistério dos mistérios”, que é o surgimento de novas espécies. Hoje identificamos genes específicos que, quando alterados, explicam por que um grupo que era uma única espécie tornou-se dois grupos de organismos de espécies distintas, incapazes de cruzar uns com os outros e produzir descendentes férteis. Sim, temos uma compreensão de mecanismos moleculares que explicam como uma espécie se transforma em duas.
Em muitos casos, ser defensor do DI infelizmente também significa deturpar a forma como cientistas trabalham. Um dos discursos mais perniciosos e recorrentes é o de que os alunos estudando evolução precisam também aprender sobre o “outro lado”, que seriam as perspectivas criacionistas. Mas outro lado do quê? O “outro lado” de uma ideia evolutiva é uma nova ideia científica que discorda dela. Dessas temos muitas na biologia evolutiva: debater ideias e criticar colegas é o cotidiano de um cientista, e num post anterior já tratei de áreas particularmente controversas da biologia evolutiva.
Argumentos anti-evolutivos oferecidos por criacionistas defensores do DI não são “o outro lado” da evolução; apesar de sua roupagem científica, eles são uma negação da forma científica de pensar. Faço uma analogia: um paciente insatisfeito com um médico tem todo direito de buscar um tratamento espiritual para sua mazela. Mas não se pode dizer que ele foi buscar uma “segunda opinião”. Ele terá abdicado do caminho médico e seguido outro rumo. De modo análogo, trazer o criacionismo para a as aulas de ciência é fazer com que a aula deixe de ser de ciências.
Demandar que se ensine uma ideia religiosa numa aula de ciências faz tão pouco sentido quanto demandar que se inclua no culto de uma religião uma discussão científica das escrituras sendo lidas. Notem, não se trata de defender que uma coisa é melhor que outra, mas de reconhecer diferenças. E isso é importante porque apresentar diferentes conhecimentos às pessoas sem tratar de suas diferenças apenas cria pessoas confusas.
Ser criacionista defensor do DI é negar a ciência da evolução, mas não através de argumentos científicos. Ao fim e ao cabo, significa negar a ciência. Dessa forma, o argumento de que o DI teria alguma suposta teoria científica alternativa, que deveria ser ensinada nas aulas de ciências, é em si uma contradição. Como algo que nega o pensamento científico pode ser científico?
Ser criacionista defensor do DI em 2020 é negar a forma como o conhecimento é construído, e propositalmente confundir controvérsias que são inerentes à ciência com um pretexto para tentar derrubar uma das mais sólidas teorias construídas pela ciência. É não compreender que a evolução não é um fato isolado, mas uma teia de conhecimentos apoiada por uma comunidade de cientistas com critérios rigorosos para avaliar quais experimentos, observações ou cálculos matemáticos são confiáveis.
Ser criacionista defensor do DI em 2020 é incompatível com ocupar uma posição de liderança na comunidade científica, como um país da importância do Brasil deveria almejar.