Vulnerabilidade da População Negra ao Covid-19 e o Conceito Biossocial de Raça

Os números da pandemia provocada pelo COVID-19 ratificam as desigualdades raciais na saúde e trazem novos ingredientes ao debate recorrente sobre o conceito de raça.

Tem sido noticiado na mídia de massa e nos meios de divulgação científica que indivíduos da população negra são mais propensos a morrer de COVID-19 do que os brancos. Por exemplo, no Reino Unido a taxa de óbito de pessoas não-brancas é significativamente maior do que a taxa de pessoas brancas, apesar de representarem apenas 14% da população. Nos EUA, a taxa de mortalidade de negros por COVID-19 é o dobro daquela observada em outras etnias, como latinos e asiáticos e três vezes a mortalidade de brancos. No Brasil, enquanto a taxa de óbito por COVID-19 em internados brancos é de 38%, a taxa para pessoas negras é de 55%.

As inequidades ou desigualdades raciais em saúde não são recentes. Tanto nos EUA como no Brasil, a população negra é afetada por: precocidades de óbitos, maiores taxas de mortalidade maternal e infantil, maior incidência de partos prematuros, diminuição do peso de bebês recém-nascidos, maior vulnerabilidade a doenças cardiovasculares, a infarto e a diabetes. Estas três últimas condições, inclusive, aumentam os riscos dessa população em relação à COVID-19.

Diante de tais desigualdades raciais em saúde, são mais frequentes dois tipos de reações: interpretá-las como fruto de predisposições genéticas diferentes entre os grupos étnico-raciais; ou, opostamente, as creditarem a fatores socioambientais aos quais a população negra tem sido mais frequentemente submetida (como um aspecto da injustiça social), tais como precariedade das condições sanitárias, excessivo adensamento domiciliar (fator importante no caso da COVID-19) e sobrecarga emocional que a experiência do racismo cotidiano lhes impõe.

Em contraposição a essa dicotomia entre o biológico e o social, tem surgido uma terceira via na epidemiologia social e na genética pós-genômica. Tem sido proposto que as desigualdades raciais na saúde são derivadas da incorporação dos efeitos socioambientais do racismo nos sistemas biológicos de pessoas racializadas através de mecanismos epigenéticos. Como explicado em outra matéria deste blog, os mecanismos epigenéticos são responsáveis por alterações na expressão dos genes, sem envolver alteração nas sequências de DNA. Portanto, esses mecanismos podem alterar certas características ao longo da vida de um organismo, dependendo das influências ambientais existentes, tais como alimentação, estresse e exposição a produtos tóxicos.

Devido ao período de gestação ser um momento crítico para o estabelecimento desses mecanismos no organismo em desenvolvimento, os efeitos do racismo podem vir a ser transmitidos também a gerações futuras. Dessa forma, as más condições de saúde provocadas pela experiência do racismo ao longo da vida das pessoas poderiam afetar a saúde da próxima geração, devido à alteração da qualidade do ambiente fetal e pós-natal precoce. Além de aumentar os riscos de eventos adversos ao longo do desenvolvimento inicial do indivíduo, essas condições podem ocasionar, no futuro, predisposição a certas doenças crônicas, como as cardíacas e a diabetes.

Tal interpretação das desigualdades em saúde nos coloca um novo ingrediente no debate sobre o conceito de raça, problematizando a afirmação de que as raças humanas não existem como fenômeno biológico, mas apenas como fenômeno social. Sugere-se que o fenômeno sociocultural da raça e do racismo torna-se biológico, uma vez que provoca efeitos duráveis na constituição biológica de pessoas que são alvo do racismo, os quais podem se estender aos descendentes. Essa noção tem sido proposta e fortalecida, por exemplo, por estudos que encontram relações entre efeitos do preconceito racial no estresse fisiológico maternal, nascimento prematuro e baixo peso corporal em recém-nascidos e na incidência de doenças cardiovasculares na vida adulta de afro-americanos. Essa perspectiva introduz uma noção de raça como entidade biossocial ou biocultural.

Como adverte o antropólogo britânico Peter Wade, este pode parecer um passo regressivo – um retorno a uma perspectiva que naturaliza diferenças raciais, como o fizeram as ciências raciais e eugenistas do século XIX. Esse risco é aumentado por conta da frequência de uma visão determinista e genecêntrica da biologia humana na mídia e na sociedade, na qual essa biologia é reduzida a predisposições genéticas. Essa proposta de incorporação ou corporificação da raça, no entanto, não entende a natureza humana – e a raça – como algo pré-formado e determinado, mas sim como algo maleável pela própria cultura. Em termos biológicos, trata-se de ver a raça não como genética, mas sim como resultante da relação entre fenômenos socioculturais e biológicos mediante, por exemplo, mecanismos epigenéticos.

Essa perspectiva também nos oferece uma ponderação à defesa de se banir o uso do conceito de raça da pesquisa e prática médica. Embora exista uma desigualdade evidente na taxa de óbito entre raças, apenas 7% dos dados publicados mundialmente sobre COVID-19 registram raça ou etnia. Os principais fatores apontados para explicar essa desigualdade são relacionados a questões socioeconômicas e geográficas, mas parecem não ser suficientes para explicá-la completamente. Isso ocorre, principalmente, pela limitação decorrente de se analisar, separadamente, os fatores biológicos e sociais. Portanto, considerar uma abordagem biossocial da raça possibilitaria reconhecer como as relações entre esses fatores podem influenciar a vulnerabilidade a certos tipos de doenças e, dessa forma, viabilizar medidas de prevenção e tratamento mais eficazes para tais indivíduos.

Em relação ao ensino de Biologia – e a formação de professores de Biologia –, fica cada vez mais urgente o investimento no ensino de epigenética e a construção de uma visão menos determinista genética ao explicar a relação entre genes e características, que seja capaz de contemplar as influências do ambiente na compreensão da herança e do desenvolvimento da biologia humana.

Claudia Sepulveda

Professora do Departamento de Educação (UEFS)

Bruno Althoff

Doutorando em Ensino, Filosofia e História das Ciências (UFBA/UEFS)

Imagem de entrada: Bruno Pinto

 

Para Saber Mais:

GRAVLEE, C. C. How race becomes biology: embodiment of social inequality. American journal of physical anthropology, v. 139, n. 1, p. 47-57, 2009.

Apresenta um modelo de como as desigualdades raciais na saúde se tornam literalmente corporificadas no bem-estar biológico de grupos e indivíduos racializados, e discute as implicações para o debate sobre o conceito de raça.

WADE, P. Raça: natureza e cultura na ciência e na sociedade. In: HITA, M. G. (org.). Raça, racismo e genética: em debate científicos e controvérsias sociais. Salvador: EDUFBA, 2017, p.47-80.

O autor examina a diversidade de significados atribuídos ao conceito de raças, ao longo de seu desenvolvimento histórico nas ciências naturais e em contextos socioculturais e políticos distintos. Defende a tese que o conceito de raça sempre foi entendido por uma junção complexa de elementos da cultura e da natureza.

KUZAWA, C. W.; SWEET, E. Epigenetics and the embodiment of race: developmental origins of US racial disparities in cardiovascular health. American Journal of Human Biology: The Official Journal of the Human Biology Association, v. 21, n. 1, p. 2-15, 2009.

Nesse artigo, os autores defendem que a epigenética e o desenvolvimento devem ser considerados como a ligação entre os fatores socioambientais e as inequidades raciais na Saúde nos Estados Unidos. Como suporte para a discussão, apontam a diminuição no peso ao nascer ao longo de gerações subsequentes de imigrantes africanos nos Estados Unidos, em contraposição ao peso ao nascer das gerações de imigrantes europeus no mesmo país.

CHOR, D.; LIMA, C. R. A. Aspectos epidemiológicos das desigualdades raciais em saúde no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 21, p. 1586-1594, 2005.

Considerando o aspecto específico do Brasil, esse artigo busca analisar os efeitos da discriminação racial na saúde. Através de análises provenientes de diversos estudos epidemiológicos, os autores defendem o uso da dimensão étnico-racial nas pesquisas em Saúde, já que a dimensão socioeconômica, embora esteja relacionada, não é suficiente para explicar as inequidades em saúde no país.

5 comentários em “Vulnerabilidade da População Negra ao Covid-19 e o Conceito Biossocial de Raça”

  1. Muito interessante a ideia de raça biossocial. Percebo um movimento muito semelhante relacionado às questões de gênero e sexualidade, vistos de um ponto de vista antidualista.

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  2. Caramba, muito interessante essa matéria. Me formei em biologia na UFPR em 2008 e me lembro bem o impacto que a aula sobre epigenética me causou! Foi como uma desconstrução de todo o determinismo genético que eu vinha incorporando ao longo dos semestres. E olha que foi uma só aula! Ninguém nunca mais tocou no assunto! kkkkkkk Mas mesmo assim, como professora do ensino básico, nunca consegui tratar deste assunto da forma como deveria. 😦

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