Ciência na prática: Uma oportunidade de aprendizagem “Mãos na massa” por meio da Ciência Cidadã

Já dizia Paulo Freire “(…) ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou construção”. Estudos revelam que a Ciência Cidadã é uma dessas possibilidades, podendo ser usada no ambiente escolar e universitário para promover engajamento com a ciência e atitudes positivas em relação à ciência e ao meio ambiente.

Imagens do Guardiões da Chapada em ação em escolas nos municípios de Lençóis e Mucugê, Bahia (fotos da autora)

É inegável que a ciência está passando por uma crise de confiança nesse começo de século XXI. Os dados da pesquisa realizada pelo Instituto Gallup, em 2019, encomendada pela organização britânica Wellcome Trust, mostram que 75% dos brasileiros entrevistados nessa pesquisa responderam que desconfiam da ciência e 23% consideram que a produção científica pouco contribui para o desenvolvimento econômico e social do país. Quais as explicações possíveis para essa falta de confiança das pessoas na ciência?  Especialistas apontam diversas causas, dentre elas, falta de investimentos em uma educação científica crítica desde a educação básica e/ou disseminação de informações falsas, que confundem deliberadamente as pessoas, em nome de interesses escusos, e/ou a atual crise de legitimidade institucional, com as pessoas deixado de acreditar nas instituições republicanas, e a ciência entrando nesse bojo.

As consequências negativas da ausência de valores próprios do pensamento científico são sentidas pelo número cada vez maior de pessoas que acreditam em pseudociências e teorias da conspiração e que se deixam enganar por notícias falsas. A desinformação é ainda mais preocupante quando diz respeito a determinados temas relacionados à saúde pública, como podemos ver, no presente, no aumento da parcela da população que resiste à vacinação.  No tocante às questões ambientais, a desinformação também impede que as pessoas enxerguem as relações de interdependência dos seres humanos com o mundo natural. No caso das plantas, por exemplo, a cegueira em relação à forma como elas se reproduzem e sua importância em nossas vidas faz com que as pessoas não se incomodem com a perda da biodiversidade vegetal, provocada por ações humanas, como queimadas e desmatamentos, levando-as a ignorar ou apoiar tomadas de decisão não qualificadas que poderão afetar seriamente as nossas vidas e das gerações futuras.

Em artigo publicado aqui no blog, Charbel N. El-Hani e Tiago Guimarães consideram que a crise de confiança na ciência tem a ver, ao menos em parte, com o modo como ensinamos ciências às pessoas. Na avaliação desses colegas, “se as pessoas entendessem mais sobre o que é a ciência e como a ciência funciona, o conhecimento científico poderia ser usado de forma mais justa e proveitosa”. Eles também sugerem que “não precisaríamos nos preocupar com a desinformação, pois as pessoas filtrariam esses documentos falsos, reconhecendo-os pela falta de marcas evidentes das práticas científicas”. Em outra postagem, El-Hani chama a atenção para o fato de que ensinar como a ciência funciona não consiste em ensinar métodos e fazer experimentos. Para isso, é necessário adotar um conjunto de estratégias e ações que aproximem o estudante das práticas científicas.

A Ciência Cidadã (CC) tem potencial para ser utilizada no ambiente escolar e universitário como uma dessas estratégias. Mas antes de começarmos a discutir como a CC poderia ser incluída como ferramenta na educação científica, é importante saber de qual (ou quais) CC estamos falando, pois esse é um termo cuja definição varia bastante entre as diferentes áreas do conhecimento e regiões geográficas. Aqui estamos adotando uma definição ampla e abrangente, proposta pela Rede Brasileira de Ciência Cidadã, que inclui (…) ”uma gama de tipos de parcerias entre cientistas e interessados em ciência, para produção compartilhada de conhecimentos com potencial para promover: o engajamento do público em diferentes etapas da prática científica;  a educação científica e tecnológica, e  co-elaboração e implementação de políticas públicas sobre temas de relevância social e ambiental”. Essa definição abarca, assim, uma  série de iniciativas ao longo de um espectro entre  as duas visões da Ciência Cidadã, a do filósofo e sociólogo inglês Alan Irwin, que define ciência cidadã como “ciência democrática”, e a do zoólogo Rick Bonney, que usa o termo  para descrever projetos em que o público se envolve ativamente na investigação científica e na conservação ambiental, o que ele chama de “ciência participativa”.

Dada a pluralidade conceitual, as iniciativas de CC podem ser classificadas de diferentes modos: pelo tipo/nível de colaboração entre cientistas e público interessado em ciência; pela forma de participação na coleta de dados em programas de monitoramentos e inventários da biodiversidade; pelo grau de contribuição do projeto para a ciência; quanto à natureza ou ao tipo de atividade a ser realizada; pelo nível de participação do cidadão voluntário, interessado em ciência, na pesquisa científica; e quanto aos objetivos do projeto de ciência cidadã. Em relação à participação, os projetos contributivos e colaborativos são os mais comuns e, em geral, de maior interesse da comunidade científica, podendo ser acessados em diversas plataformas, como por exemplo iNaturalist, Zooniverse e SibBr. Já os projetos co-criados, embora menos numerosos e em menor escala, possuem maior relevância social.

Mas, independentemente da tipologia, estudos revelam que a participação em projetos de ciência cidadã proporciona aos estudantes um ambiente favorável para o engajamento com a ciência, levando à melhor compreensão da diversidade da pesquisa científica e do pensamento científico, e promovendo atitudes positivas em relação à ciência e ao meio ambiente. Muito embora os projetos colaborativos contribuam mais para aprendizagem de conteúdos específicos e para aumentar o interesse nesses conteúdos, os projetos co-criados contribuem mais para o desenvolvimento de habilidades para a investigação científica.

No escopo do INCT IN-TREE, alguns projetos de CC estão sendo conduzidos, dentre eles, os projetos Guardiões da Chapada e Guardiões dos Sertões de Sergipe. Em linhas gerais, os “Guardiões” são projetos colaborativos de ciência cidadã que envolvem voluntários no monitoramento participativo da interação planta-visitante em ambientes naturais, urbanos e agrícolas, por meio do registro fotográfico das interações.

Apesar das especificidades de cada projeto “Guardiões”, no que diz respeito aos locais de atuação, aos tipos de ambientes monitorados e às ações que desenvolvem, eles têm em comum o fato de estarem  baseados em três pilares, que coexistem e interagem entre si de forma harmoniosa, organizados em duas dimensões, educacional e científica, quais sejam: 1) Produção colaborativa de informações de base científica, por meio do monitoramento participativo, que permite gerar novos conhecimentos sobre a biodiversidade; 2) Tradução e compartilhamento dos conhecimentos relacionados aos projetos ou gerados por  estes;  3) Despertar da cidadania científica e ambiental, por meio de ações voltadas à capacitação, ao desenvolvimento de habilidades e ao engajamento em ações de conservação.

Na dimensão científica do projeto, a colaboração entre cientistas e interessados em ciência envolve a coleta de dados das interações por meio do registro fotográfico. As fotos podem ser tiradas com uma câmera fotográfica, com o celular ou com o tablete e enviadas diretamente para uma plataforma online E-Guardiões da biodiversidade, ou por meio do aplicativo “Guardiões da Biodiversidade”, desenvolvido para dispositivos móveis, já disponíveis para IOS e Android, o qual permite também registrar as interações em tempo real. As fotos tiradas, com as respectivas informações, são armazenadas em um banco de dados, onde especialistas poderão acessá-las e fazer a identificação dos animais e de plantas e complementar a descrição da interação planta-visitante, se for necessário. Com todos esses dados, será possível, por exemplo, mapear novas ocorrências de espécies, avaliar o efeito das mudanças ambientais sobre as espécies, desenvolver diretrizes para manejo e conservação da vida silvestre, e planejar o uso sustentável da terra na região. Como um projeto científico, os projetos “Guardiões” devem produzir dados e informações científicas genuínas, que possam gerar novos conhecimentos. Nesse sentido, esses projetos buscam aliar relevância e rigor por intermédio da parceria entre cientistas profissionais e demais atores sociais. A parceria com cientistas ajuda a aumentar a confiança e a credibilidade nos dados, enquanto a parceria com os atores sociais aumenta a relevância e o impacto social dos resultados.

No ambiente escolar e universitário, a dimensão científica dos projetos “Guardiões” pode ser explorada para colocar os estudantes em contato com a prática científica e a natureza da ciência, estimulando o estudante a formular questões situadas na sua realidade local e a discutir os resultados das pesquisas. As questões podem variar conforme o perfil e nível de escolaridade dos estudantes, o que fica a cargo do professor, que deve fazer as adequações que julgar necessárias.

Na dimensão educacional, os temas centrais dos projetos Guardiões podem ser contextualizados por situações ou problemas socioambientais, locais ou regionais, como, por exemplo, desmatamento; queimadas; uso de agrotóxicos; produção de alimentos; pragas e doenças de cultivos agrícolas; declínio de polinizadores; qualidade do ar e da água; arborização em espaços urbanos e bem-estar humano; mudanças climáticas e a biodiversidade; espécies invasoras, dentre outros. Dessa maneira, podem contribuir para tornar os conhecimentos escolares mais significativos para os estudantes. Essas situações-problemas poderão mobilizar tanto conhecimentos científicos quanto outros tipos de conhecimentos, necessários para busca de soluções, o que favorece uma aprendizagem multidimensional dos conteúdos, que permite ao estudante, além de compreender conceitos e princípios técnicos e memorizar fatos e evidências, também exercitar procedimentos e ações práticas e vivenciar e refletir sobre situações concretas, do mundo real.

Ao relacionar os conceitos científicos aprendidos em sala de aula às questões científicas relevantes para a vida das pessoas, ou sejam, às questões sociocientíficas, os projetos Guardiões também contribuem  para aproximar a escola/universidade do seu entorno, promover uma educação científica crítica dos estudantes, desenvolver novas habilidades e competências, despertar novos talentos para a carreira científica, e construir os valores necessários para tomada de decisões responsáveis sobre questões relacionadas às relações entre ciência e tecnologia na sociedade e no ambiente (CTSA).

Contudo, existem desafios para implementar projetos de CC nas escolas, dentre eles, a necessidade de capacitação dos professores, bem como dos cientistas, para co-produção e condução dos projetos; adaptação do projeto aos currículos e processos avaliativos; dificuldades para garantir a qualidade dos dados coletados pelos estudantes, bem como para análise e interpretações dos resultados; e falta de recursos financeiros contínuos para garantir a sustentabilidade do projeto e o tempo de professores e pesquisadores para dedicação aos projetos. Por sua vez, esses desafios podem ser em parte solucionados pelo estabelecimento de parcerias entre Universidade-Escola, entre professores de diferentes disciplinas e, se possível, entre as escolas ou universidades e diferentes setores da sociedade; pela formulação de objetivos científicos e educacionais claros e protocolos simples, adequados ao perfil e nível de escolaridade dos estudantes; por ações que incentivem a participação dos estudantes e dos professores desde o início do projeto; pela transparência e compartilhamento dos resultados; e por atividades que visem manter engajamento, interesse e motivação de todas as partes interessadas no projeto.

Buscando contribuir para superação desses desafios, os projetos “Guardiões” vêm construindo parcerias com instituições de ensino, organizações não-governamentais e coletivos para o desenvolvimento de ações educacionais.  Na Bahia, o Guardiões da Chapada tem atuado nos municípios de Lençóis, Mucugê, Ibiocoara e Piatã no âmbito de uma Ação Curricular em Comunidade e Sociedade (ACCS), componente curricular, na modalidade disciplina, que visa ampliar a possibilidade e a qualidade de participação pública em temas relacionados ao uso e à conservação da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos, instrumentalizando os atores sociais para intervirem melhor nos processos decisórios relacionados à conservação ambiental; contribuir para a formação de profissionais comprometidos e engajados com a solução dos problemas ambientais; e estimular a autonomia e criticidade dos participantes, na busca de soluções sistemáticas para problemas socioambientais. Em Sergipe, as ações do Guardiões dos Sertões acontecem por intermédio de parcerias construídas pelo projeto  “Protagonistas da Escola Verde: experiência de aprendizagem em ecologia e educação científica no ensino médio”, que articula a Universidade Federal de Sergipe, escolas da educação básica, gestão pública e comunidade em geral em prol de avanços na discussão de temas relacionados à ética, à biodiversidade e aos serviços ecossistêmicos, no contexto do semiárido sergipano, com abordagem participativa. Interessados em conhecer essas ações podem visitar as nossas páginas nas redes sociais e/ou entrar em contato com os coordenadores dos projetos “Guardiões” através do e-mail guardioeschapada@gmail.com

Blandina Viana

Universidade Federal da Bahia

Para saber mais:

Bonney, R. et al. Can citizen science enhance public understanding of science? Public Understanding of Science, v. 25, n. 1, p. 2–16, 2015.

Kelemen-Finan, J.; Scheuch, M.; Winter, S. Contributions from citizen science to science education: an examination of a biodiversity citizen science project with schools in Central Europe. INT J SCI EDUC. 2018; 40(17): 2078-2098

Viana, BF; Souza, CQ. Ciência cidadã para além da coleta de dados. Revista ComCiência – Revista eletrônica de jornalismo cientifico, Labjor, UNICAMP, p. 1 – 2, 05 out. 2020.

Viana, BF.2020.  Meliponicultura e Ciência Cidadã: o que elas têm em comum?. Revista Mensagem Doce, n. 151