A primeira vacina desenvolvida em larga escala no Ocidente é creditada ao médico inglês Edward Jenner que, no século XVIII, utilizou a secreção purulenta de doentes para prevenir o desenvolvimento da varíola em pessoas saudáveis. E a varíola foi, também, a primeira doença infecciosa a ser erradicada da população por meio da vacinação. Desde então, o uso de vacinas na prevenção de doenças contagiosas tornou-se uma prática comum na medicina, salvando a vida de centenas de milhões de pessoas, e aliviando altos custos dos sistemas de saúde dedicados ao tratamento de doentes. Mas, desde o surgimento das primeiras vacinas, surgiram também os movimentos anti-vacina e um post recente aqui do Darwinianas, discute a história dos movimentos anti-vacina no Brasil e no mundo. Sugiro fortemente a leitura do post anterior caso ainda esteja em dúvida a respeito da efetividade e segurança das vacinas já aprovadas para uso, ou confusa em meio às variadas teorias da conspiração e campanhas de desinformação.
As estatísticas são assustadoras: em menos de dois anos, o SARS-CoV-2 já matou mais de 4 milhões de pessoas em todo o mundo, sendo que mais de 500 mil mortes são creditadas ao Brasil apenas. O desenrolar da vacina vem, sem dúvida, tendo impactos positivos significativos tanto no número de novos casos quanto no número de mortes por COVID-19, principalmente em regiões com altos índices de vacinação da população. Para os não-vacinados, ou aqueles que ainda aguardam a sua vez, o uso de máscaras e o distanciamento social ainda são as medidas mais eficazes na prevenção do COVID-19, já que o vírus, altamente contagiante, é transmitido por aerossóis e gotículas emitidas pelo sistema respiratório. Assim, na esmagadora maioria dos casos, a porta de entrada do vírus é o trato respiratório superior, sendo o nariz a via de entrada mais comum. Curiosamente, das quase cem vacinas atualmente em fase de testes, apenas sete são vacinas intranasais.
A idéia de vacinas intranasais não é nada nova, e desde a década de 1960 as primeiras vacinas intranasais para o vírus da influenza foram aprovadas para uso em massa. Até hoje, muitas das vacinas contra a gripe causada pelo vírus Influenza, são administradas por via intranasal e a razão para o seu uso deve-se ao fato de que essas vacinas normalmente estimulam uma resposta imune na mucosa nasal, levando à produção local de anticorpos do tipo IgA, assim como à produção de células B e T de memória da mucosa, capazes de barrar a infecção viral desde o seu local de entrada (Figura 1). Em alguns casos, ainda, essa resposta pode se tornar sistêmica, levando à produção de anticorpos do tipo IgG, capazes de proteger outros órgãos contra o desenvolvimento de doença grave. Já vacinas intramusculares raramente estimulam imunidade de mucosa, resultando geralmente em imunidade sistêmica baseada, em larga escala, na produção de IgG e células de memória sistêmicas.

Por que, então, as vacinas até hoje aprovadas para a prevenção do COVID-19 são intramusculares, como as vacinas de mRNA (como, por exemplo, a Pfizer-BioNTech e a Moderna), ou as vacinas que utilizam um vetor viral atenuado (como, por exemplo, a Janssen da Johnson & Johnson e a Oxford-Astra-Zeneca)? Segundo um artigo recente, seis das sete vacinas intranasais em fase de teste (ChAdOx1-S da Universidade de Oxford; AdCOVID da Altimmune; a BBV154 da Bharat Biotech; a DelNS1-nCoV-RBD LAIV da Universidade de Hong Kong, a MV-014-212 da Meissas Vaccines; e a COVI-VAC da Codagenix) são vacinas de vírus atenuado ou de vetor viral, enquanto apenas uma, a Cubana CIBG-669 é baseada em proteína viral. Estudos ainda em revisão (pré-publicações) a respeito da eficácia das vacinas intranasais com vetores virais sugere que essas vacinas são eficazes não apenas em eliciar uma resposta imune na mucosa nasal e a produção de células de memória residentes na mucosa, mas também de estimular uma resposta sistêmica, possivelmente com a produção duradoura de anticorpos do tipo IgG. No entanto, os vetores virais mais frequentemente utilizados em vacinas intranasais são os adenovírus, e uma grande parcela da população adulta já foi exposta a esses vírus. Isso significa que, em muitos casos, uma resposta imune contra o adenovírus pode diminuir a eficácia da vacina contra o SARS-CoV-2 por meio de interferência negativa. Similarmente, interferência negativa parece acontecer nas vacinas intranasais que utilizam o vírus influenza ou o vírus respiratório sincicial atenuado. Mas, em muitos casos, a estimulação da imunidade de mucosa parece ocorrer de forma efetiva, independente do contato prévio do indivíduo como vetor viral.
Diferentes vias de administração de vacinas, como a administração intranasal e a intramuscular (Figura 1), podem resultar na estimulação do sistema imunológico de variadas maneiras. De forma semelhante, vacinas baseadas em diferentes tecnologias, como as vacinas de DNA, vacinas de RNA e vacinas de vírus atenuados, podem elicitar diferentes respostas imunes assim como apresentar diferentes efeitos colaterais. É possível, no entanto, que o futuro da vacinação para COVID-19 seja o de uma abordagem variada, onde a imunidade sistêmica promovida pelas vacinas intramusculares, geralmente protetora contra doença pulmonar grave, seja combinada a doses de reforço com vacinas intranasais, capazes de gerar também imunidade na mucosa nasal, e potencialmente interromper a transmissão do vírus localmente. Não há, até o momento, nenhuma contra-indicação para um esquema de vacinação variado em termos de vias de administração, apesar de mais estudos ainda serem necessários para a confirmação da eficácia de uma tal abordagem. A introdução de vacinas intranasais pode ser, assim, um passo importante para o controle da pandemia de COVID-19 que ainda vivemos.
Ana Almeida
California State University East Bay
(CSUEB)
Para saber mais:
Islam, M.S.; et al. 2021. COVID-19 vaccine rumors and conspiracy theories: The need for cognitive inoculation against misinformation to improve vaccine adherence. PLoSOne https://doi.org/10.1371/journal.pone.0251605.
Hodgson S.H.; et al. 2021. What defines an efficacious COVID-19 vaccine? A review of the challenges assessing the clinical efficacy of vaccines against SARS-CoV-2. The Lancet Infectious Diseases, 21(2): e26-e35. https://doi.org/10.1016/S1473-3099(20)30773-8.
Sallam, M. 2021. COVID-19 Vaccine Hesitancy Worldwide: A Concise Systematic Review of Vaccine Acceptance Rates. Vaccines, 9: 160. https://doi.org/10.3390/vaccines9020160.
Yingzhu, L; et al. 2021. A Comprehensive Review of the Global Efforts on COVID-19 Vaccine Development. ACS Central Science, 7 (4), 512-533. DOI: 10.1021/acscentsci.1c00120
[Fonte: Imagem modificada de Amadeus Bramsiepe/Karlsruhe Institute of Technology, https://www.computerworld.com/article/3278594/the-game-changing-potential-of-smartphones-that-can-smell.html]