Tem cheiro de vacina no ar…

No momento, ao menos sete vacinas intranasais contra COVID-19 estão em testes clínicos. Elas oferecem um caminho futuro para imunização efetiva e duradoura contra a COVID-19 e um possível controle da pandemia.

A primeira vacina desenvolvida em larga escala no Ocidente é creditada ao médico inglês Edward Jenner que, no século XVIII, utilizou a secreção purulenta de doentes para prevenir o desenvolvimento da varíola em pessoas saudáveis. E a varíola foi, também, a primeira doença infecciosa a ser erradicada da população por meio da vacinação. Desde então, o uso de vacinas na prevenção de doenças contagiosas tornou-se uma prática comum na medicina, salvando a vida de centenas de milhões de pessoas, e aliviando altos custos dos sistemas de saúde dedicados ao tratamento de doentes. Mas, desde o surgimento das primeiras vacinas, surgiram também os movimentos anti-vacina e um post recente aqui do Darwinianas, discute a história dos movimentos anti-vacina no Brasil e no mundo. Sugiro fortemente a leitura do post anterior caso ainda esteja em dúvida a respeito da efetividade e segurança das vacinas já aprovadas para uso, ou confusa em meio às variadas teorias da conspiração e campanhas de desinformação.

As estatísticas são assustadoras: em menos de dois anos, o SARS-CoV-2 já matou mais de 4 milhões de pessoas em todo o mundo, sendo que mais de 500 mil mortes são creditadas ao Brasil apenas. O desenrolar da vacina vem, sem dúvida, tendo impactos positivos significativos tanto no número de novos casos quanto no número de mortes por COVID-19, principalmente em regiões com altos índices de vacinação da população. Para os não-vacinados, ou aqueles que ainda aguardam a sua vez, o uso de máscaras e o distanciamento social ainda são as medidas mais eficazes na prevenção do COVID-19, já que o vírus, altamente contagiante, é transmitido por aerossóis e gotículas emitidas pelo sistema respiratório. Assim, na esmagadora maioria dos casos, a porta de entrada do vírus é o trato respiratório superior, sendo o nariz a via de entrada mais comum. Curiosamente, das quase cem vacinas atualmente em fase de testes, apenas sete são vacinas intranasais.

A idéia de vacinas intranasais não é nada nova, e desde a década de 1960 as primeiras vacinas intranasais para o vírus da influenza foram aprovadas para uso em massa. Até hoje, muitas das vacinas contra a gripe causada pelo vírus Influenza, são administradas por via intranasal e a razão para o seu uso deve-se ao fato de que essas vacinas normalmente estimulam uma resposta imune na mucosa nasal, levando à produção local de anticorpos do tipo IgA, assim como à produção de células B e T de memória da mucosa, capazes de barrar a infecção viral desde o seu local de entrada (Figura 1). Em alguns casos, ainda, essa resposta pode se tornar sistêmica, levando à produção de anticorpos do tipo IgG, capazes de proteger outros órgãos contra o desenvolvimento de doença grave. Já vacinas intramusculares raramente estimulam imunidade de mucosa, resultando geralmente em imunidade sistêmica baseada, em larga escala, na produção de IgG e células de memória sistêmicas.

Figura 1 – Diferentes vias de vacinação e seus efeitos no sistema imunológico. Imagem modificada de Lund & Randall (2021), Science.

Por que, então, as vacinas até hoje aprovadas para a prevenção do COVID-19 são intramusculares, como as vacinas de mRNA (como, por exemplo, a Pfizer-BioNTech e a Moderna), ou as vacinas que utilizam um vetor viral atenuado (como, por exemplo, a Janssen da Johnson & Johnson e a Oxford-Astra-Zeneca)? Segundo um artigo recente, seis das sete vacinas intranasais em fase de teste (ChAdOx1-S da Universidade de Oxford; AdCOVID da Altimmune; a BBV154 da Bharat Biotech; a DelNS1-nCoV-RBD LAIV da Universidade de Hong Kong, a MV-014-212 da Meissas Vaccines; e a COVI-VAC da Codagenix) são vacinas de vírus atenuado ou de vetor viral, enquanto apenas uma, a Cubana CIBG-669 é baseada em proteína viral. Estudos ainda em revisão (pré-publicações) a respeito da eficácia das vacinas intranasais com vetores virais sugere que essas vacinas são eficazes não apenas em eliciar uma resposta imune na mucosa nasal e a produção de células de memória residentes na mucosa, mas também de estimular uma resposta sistêmica, possivelmente com a produção duradoura de anticorpos do tipo IgG. No entanto, os vetores virais mais frequentemente utilizados em vacinas intranasais são os adenovírus, e uma grande parcela da população adulta já foi exposta a esses vírus. Isso significa que, em muitos casos, uma resposta imune contra o adenovírus pode diminuir a eficácia da vacina contra o SARS-CoV-2 por meio de interferência negativa. Similarmente, interferência negativa parece acontecer nas vacinas intranasais que utilizam o vírus influenza ou o vírus respiratório sincicial atenuado.  Mas, em muitos casos, a estimulação da imunidade de mucosa parece ocorrer de forma efetiva, independente do contato prévio do indivíduo como vetor viral.

Diferentes vias de administração de vacinas, como a administração intranasal e a intramuscular (Figura 1), podem resultar na estimulação do sistema imunológico de variadas maneiras. De forma semelhante, vacinas baseadas em diferentes tecnologias, como as vacinas de DNA, vacinas de RNA e vacinas de vírus atenuados, podem elicitar diferentes respostas imunes assim como apresentar diferentes efeitos colaterais. É possível, no entanto, que o futuro da vacinação para COVID-19 seja o de uma abordagem variada, onde a imunidade sistêmica promovida pelas vacinas intramusculares, geralmente protetora contra doença pulmonar grave, seja combinada a doses de reforço com vacinas intranasais, capazes de gerar também imunidade na mucosa nasal, e potencialmente interromper a transmissão do vírus localmente. Não há, até o momento, nenhuma contra-indicação para um esquema de vacinação variado em termos de vias de administração, apesar de mais estudos ainda serem necessários para a confirmação da eficácia de uma tal abordagem. A introdução de vacinas intranasais pode ser, assim, um passo importante para o controle da pandemia de COVID-19 que ainda vivemos.

Ana Almeida

California State University East Bay

(CSUEB)

 Para saber mais:

Islam, M.S.; et al. 2021. COVID-19 vaccine rumors and conspiracy theories: The need for cognitive inoculation against misinformation to improve vaccine adherence. PLoSOne https://doi.org/10.1371/journal.pone.0251605.

Hodgson S.H.; et al. 2021. What defines an efficacious COVID-19 vaccine? A review of the challenges assessing the clinical efficacy of vaccines against SARS-CoV-2. The Lancet Infectious Diseases, 21(2): e26-e35. https://doi.org/10.1016/S1473-3099(20)30773-8.

Sallam, M. 2021. COVID-19 Vaccine Hesitancy Worldwide: A Concise Systematic Review of Vaccine Acceptance Rates. Vaccines, 9: 160. https://doi.org/10.3390/vaccines9020160.

Yingzhu, L; et al. 2021. A Comprehensive Review of the Global Efforts on COVID-19 Vaccine Development. ACS Central Science, 7 (4), 512-533. DOI: 10.1021/acscentsci.1c00120

[Fonte: Imagem modificada de Amadeus Bramsiepe/Karlsruhe Institute of Technology, https://www.computerworld.com/article/3278594/the-game-changing-potential-of-smartphones-that-can-smell.html]

Bico doce: a evolução da percepção de açúcar nas aves

Muitos animais, no qual eu me incluo, amam comidas doces. Outros, como gatos, golfinhos e a maioria das aves, são indiferentes. Nós, que amamos doces, sentimos a doçura dos alimentos quando moléculas de açúcares se ligam a receptores presentes nas papilas gustativas. O receptor que reconhece açúcares é produzido a partir de um gene chamado T1R2. Muitas espécies especializadas em uma dieta pobre em açúcares perderam esse gene durante a evolução e tornaram-se insensíveis ao sabor doce. As aves, por exemplo, que evoluíram de dinossauros carnívoros, não possuem o gene T1R2 em seu genoma. No entanto, todos sabemos que algumas aves tropicais, como os beija-flores, amam comer néctar, o líquido adocicado produzido pelas flores para atrair polinizadores.

Um estudo publicado em 2014, na revista Science, liderado pela ornitóloga Maude Baldwin, iluminou esse mistério. Mostrou que o receptor para o sabor umami, que normalmente se liga ao aminoácido glutamato e produz o sabor suave e duradouro de alimentos como shoyo, peixes e queijos, está modificado nos beija-flores para perceber açúcares. Ao contrário de uma galinha, que não tem preferência entre água pura ou água com açúcar, os beija-flores buscam freneticamente o dulçor do néctar, mas sem poder diferenciar entre os sabores doce e umami.

No entanto, os beija-flores só existem no continente americano. Em outros continentes, as aves que se especializaram em comer néctar são passeriformes, como os sunbirds e honeyeaters, e não são aparentadas aos beija-flores. Em um novo estudo, publicado na semana passada na revista Nature, o grupo de Maule mostrou que os passeriformes também usam uma modificação do receptor de umami, mas em outra parte da molécula, o que indica que a percepção de açúcar evoluiu independentemente nos dois grupos por meio de um truque similar. Além disso, o estudo mostrou que não só os passeriformes que comem néctar, mas todo o grande grupo dos oscinos, que contém quase a metade de todas as espécies de aves, são capazes de perceber o sabor doce usando o receptor de umami.

Além de esclarecer a origem do gosto por açúcar nos passeriformes, o trabalho mostra uma história evolutiva complexa. Os oscinos se originaram na Austrália e a presença de um receptor sensível a alimentos doces indica que o ancestral de todos eles era um pássaro que se alimentava na flora australiana, famosa por sua abundância de néctar, olores e sabores, e posteriormente deu origem a milhares de espécies com dietas variadas. A presença do receptor para o sabor doce em espécies que não têm dietas ricas em açúcares aponta para a importância da combinação de modalidades sensoriais para a seleção do alimento. A maioria das aves escolhe a comida primariamente orientada pela visão e não por acaso as espécies nectívoras buscam preferencialmente flores vermelhas. As papilas gustativas, que em aves são poucas e localizadas na parte posterior da boca, atuam mais na confirmação ou rejeição de alimentos. Por último, a preferência por cores brilhantes nas aves que se alimentam de frutas e néctar pode ser responsável por muito da beleza observada nessas aves, pois a preferência alimentar pelas cores vivas das flores e frutas maduras pode ter influenciado a seleção sexual de penas coloridas, resultando que muitas das aves de cores mais espetaculares são aquelas que amam a doçura.

João Francisco Botelho

(PUC de Chile)

Para saber mais:

Baldwin, Maude W., et al. “Evolution of sweet taste perception in hummingbirds by transformation of the ancestral umami receptor.” Science 345.6199 (2014): 929-933.

Toda, Yasuka, et al. “Early origin of sweet perception in the songbird radiation.” Science 373.6551 (2021): 226-231.

Despedida: Richard Lewontin, sem espaço para a complacência

Desafiar ideias largamente aceitas tira os cientistas de sua zona de conforto, estimula novas ideias, e provoca reflexões sobre o que motiva nossa pesquisa. Richard Lewontin, que faleceu em julho de 2021, não se cansou de lançar desafios.

O que torna um cientista inspirador? Em alguns casos, é seu domínio da técnica e o sucesso em responder questões. Em outros, é a capacidade de comunicar ideias complexas ao público não especializado. Há ainda aqueles que inspiram pela sua conduta e o caráter ético de sua relação com alunos e colegas. Outros nos impressionam pela transparência e clareza de seu posicionamento político. Richard Lewontin incorporava todos esses traços. Ele faleceu no dia 4 de julho deste ano, aos 92 anos, e deixa uma grande lacuna na ciência, e na biologia evolutiva em particular.

Lewontin fez sua graduação em Harvard, e a seguir fez o doutorado, sob orientação do geneticista Theodosius Dobzhansky (1900-1975), na Columbia University. Posteriormente foi professor em três instituições: Carolina do Norte, Chicago, e a partir de 1973 Harvard, onde permaneceu até sua aposentadoria e onde era professor do “Departament of Organismic and Evolutionary Biology”. Ao longo de toda essa jornada, seu interesse era centrado na evolução e na genética de populações.

A genética de populações tem como objeto compreender como ocorre a transformação do conteúdo genético de populações, ao longo do tempo. Essa transformação é um ingrediente chave do estudo da evolução. Na primeira metade do século 20 a genética de populações experimentou um imenso avanço, com o desenvolvimento de uma poderosa teoria matemática para descrever como a seleção natural poderia aumentar a frequência de variantes genéticas vantajosas, e como eventos aleatórios poderiam modificar populações ao longo do tempo. Apesar dos notáveis avanços teóricos, até a década de 1960 havia uma escassez de estudos empíricos sobre como a composição genética de populações mudava ao longo do tempo. Foi de Lewontin o primeiro estudo que quantificou a variação genética em populações naturais e confrontou os achados com as previsões feitas pelos corpos teóricos existentes.

Em seu trabalho com o geneticista John Hubby, em 1966, mostrou que populações naturais de Drosophila melanogaster possuem muito mais variabilidade genética do que aquela esperada pela “teoria clássica” da genética de populações, segundo a qual a maior parte das mutações seria prejudicial, e, portanto, eliminada pela seleção, resultando em populações com pouca variabilidade. Entretanto, a variabilidade observada também superava aquela que poderia ser mantida por seleção natural. Contrapondo-se à “teoria clássica”, havia a “teoria de equilíbrio”, segundo a qual a variabilidade existente em populações era ativamente mantida pela seleção natural, que favoreceria a diversidade genética.

Mas, de acordo com os achados e cálculos de Lewontin e Hubby, a variabilidade era tão elevada que parecia ser inviável invocar a seleção para mantê-la.

Esse resultado e seu impacto na biologia são emblemáticos do trabalho de Lewontin. Ele parecia nutrir um prazer em, a partir da ciência feita com rigor, mostrar a limitação de teorias vigentes. No caso da variabilidade genética, a dificuldade das teorias “clássica” e “de equilíbrio” gerou frutos: dois anos depois, em 1968, Motoo Kimura publicaria o primeiro estudo apresentando a Teoria Neutra da Evolução Molecular, uma solução elegante para a charada apresentada por Lewontin e Hubby. Para Kimura, a mistura de mutações sem efeito sobre a sobrevivência (as chamadas “mutações neutras”) e a deriva genética moldaria a diversidade genética de populações, sem precisar recorrer à seleção. A teoria de Kimura segue sendo alvo de intensos debates nos dias de hoje, e podemos traçar sua origem ao trabalho de Lewontin.

De modo recorrente, o trabalho de Lewontin abordou problemas para as quais parecia haver “soluções simples”, e lançou desafios. Enquanto a maior parte dos pesquisadores de genética de populações estudava os efeitos da seleção sobre genes individuais, Lewontin investiu no estudo da combinação de genes. Ele sugeriu que o cromossomo inteiro era a unidade de seleção. Ou seja, não seriam versões boas de genes que aumentariam de frequência sob seleção, mas cromossomos inteiros, caracterizados pela combinação de mutações que carregavam. Para abordar essa questão, ele introduziu o conceito de “desequilíbrio de ligação”, uma medida que expressava de modo matematicamente rigoroso a associação entre genes. Esses esforços indicavam que a seleção natural é um processo dependente de contexto: a mutação que é vantajosa em um indivíduo pode ser prejudicial em outro. Isso implica que não há variantes “universalmente melhores”, e que o contexto é essencial na genética. As dinâmicas evolutivas resultam de interações, e não de propriedades absolutas.

Lewontin também desafiou a forma tradicional de enxergar adaptações biológicas, segundo a qual a adaptação representa uma “resposta do organismo” a um “problema apresentando pelo ambiente”, criando uma separação que ele julgava artificial. Para Lewontin, não havia “um ambiente lá fora”; pelo contrário, o organismo ativamente construía seu ambiente (através de comportamentos, deslocamentos, interações) e dessa modificação emergiam as pressões seletivas, as quais resultavam em mudanças evolutivas que, por sua vez, poderiam mudar a forma como a espécie interagia com o ambiente.

Essa ênfase sobre interações, seja entre genes ou entre organismo e ambiente, permeiam seu modo de pensar, e também sua visão sobre como cientistas se comportam, sujeitos às pressões do ambiente (social e político) no qual vivem.

Junto com Stephen Jay Gould, em 1979, ele também fez uma crítica à tendência de atribuir à seleção natural o poder de explicar todos os traços que aparentavam ser eficientes para realizar uma função. Num eloquente trabalho, argumentaram que abordagens quantitativas e testes de hipótese seriam necessárias para distinguir entre traços que de fato foram moldados pela seleção e aqueles que apenas parecem ter sido, mas têm sua origem explicada por outros processos. Esse trabalho teve um imenso impacto e ajudou a definir uma agenda mais quantitativa para o estudo da adaptação, que seria desenvolvida nas décadas seguintes.

Lewontin também exercia uma intensa atividade de comunicação com o público não especializado, posicionando-se de modo crítico sobre temas científicos contemporâneos. Divergindo da visão ingênua da ciência como atividade pura, e de cientistas como agentes neutros em busca da verdade, Lewontin trazia o conceito da ideologia para o mundo da ciência. Isso o levou a produzir uma série de ferozes críticas à sociobiologia, campo que desenvolvia modelos sobre como a seleção natural explica comportamentos. Para o biólogo Edward O. Wilson, a pessoa que o havia recrutado para Harvard e o principal nome do campo da sociobiologia, essa nova disciplina iria suplantar a sociologia (e as ciências humanas em geral) a partir do desvendar da genética do comportamento. Nada poderia ser mais antitético às ideias de Lewontin, segundo as quais “o contexto é o que importa”, do que livrar-se da sociologia e buscar nos genes as explicações para nossa organização social. Para Lewontin, a sociobiologia era reducionista ao extremo, pois cristalizava a visão de que genes determinam comportamentos complexos. Ele enxergava uma relação entre tal reducionismo genético e o surgimento de uma “nova direita” na Inglaterra e nos Estados Unidos da década de 1980, para a qual a noção da predestinação das pessoas com base nos genes que elas possuem seria um conveniente argumento para sustentar a desigualdade social, assim como a impossibilidade de combatê-la.

Para Wilson, tais críticas eram indevidas, pois a sociobiologia havia sido desenvolvida sem agenda política. Para Lewontin, por outro lado, a posição de Wilson  era ingênua e ilustrava a relutância de cientistas em compreender que, “quer eles saibam ou não, cientistas sempre tomam posições”. Segundo Lewontin, a noção de Wilson de que havia genes determinando comportamentos e a relutância em enxergar implicações políticas desse pressuposto seriam em si a adoção de uma posição política, que favoreceria políticas conservadoras. Sua crítica ao determinismo biológica foi extensa e ganhou forma no livro “Not in our genes”, em que atacou o uso de testes de QI e a interpretação de que doenças psiquiátricas possuem bases predominantemente genéticas.

Para Lewontin, o posicionamento político explícito não era uma falha, mas uma necessidade. Seu trabalho sobre raças humanas ilustra essa postura: numa análise quantitativa da composição genética de diversas populações humanas, Lewontin mostrou que há uma variabilidade surpreendentemente alta entre indivíduos de uma mesma raça. Mostrou ainda que, contrariamente à intuição de muitos, a diferença genética entre indivíduos de raças diferentes não era muito diferente daquela entre indivíduos da mesma raça. Isso o levou a defender uma rejeição completa do conceito de raça, por ele ser “desprovido de significado biológico” e “destrutivo de relações sociais e humanas”. Esse trabalho teve imenso impacto e reformulou a forma como estudamos, enxergamos e discutimos a variabilidade de nossa espécie até os dias de hoje.

Uma crítica recorrente a Lewontin é a de que suas posições, inclusive as científicas, eram “politicamente motivadas”. É provável que Lewontin não discordasse dessa afirmação, pois ele via tal politização como inevitável, e achava que explicitá-la era a forma mais apropriada de agir. Cada vez mais entendemos que a boa ciência não é aquela livre de valores, mas sim aquela que é transparente quanto a esses valores. A politização certamente moldou a ciência de Lewontin, e talvez ajude a entender alguns dos erros que ele cometeu em sua jornada. No estudo de seleção, hoje julgamos que tratar genes como unidades da seleção é uma estratégia bastante útil (ainda que longe de esgotar a complexidade do processo de seleção natural). Em contraste,  supor que a seleção é um mecanismo que atua sobre cromossomos inteiros, como Lewontin argumentava, parece ser menos justificado. Sua ênfase no contexto no qual operam os genes estava correta, mas o levou à rejeição de um modelo (a de seleção sobre genes individuais) que tinha grande poder explicativo. Sua visão sobre raças humanas revelou-se correta, mas ele errou ao dizer que não há nenhuma informação “taxonômica” nos genes. Hoje sabemos que as sutis diferenças genéticas entre “raças” que ele documentou permitem identificar o local de origem das pessoas, como é rotineiramente feito pelos testes de ancestralidade, tão largamente usados. Sua crítica à Sociobiologia foi um necessário desafio ao determinismo genético, ainda muito presente entre nós. Porém, para muitos, foi feita uma caricatura do que o estudo evolutivo do comportamento pretendia trazer.

“Errar” ou “acertar” é certamente uma distinção importante na vida de um cientista. Porém, para além de seus erros e acertos, um cientista pode também inocular colegas com dúvidas, com questionamento sobre ideias arraigadas; pode trazer métodos rigorosos para se debruçar sobre problema antigos. Um cientista pode jogar luz sobre as pressões políticas que motivam investigações, assim como as implicações políticas dos resultados obtidos. Lewontin foi um cientista assim. O que poderia ser mais inspirador?

Diogo Meyer

Universidade de São Paulo

Para saber mais:

Nossa Família Cresceu

Descobertas recentes, como a do Homem Dragão (imagem) e o Homem de Nesher Ramla, trazem novas e desafiadoras perguntas sobre a origem de nossa espécie.

A visão clássica sobre a evolução de nossa espécie (Homo sapiens) considerava nossa origem no oriente africano subsaariano há cerca de 200 mil anos, seguida por uma dispersão acompanhada por diversificação dentro da África por mais de 100 mil anos. Há 60 mil anos teríamos então começado nossa jornada para os demais continentes, onde teríamos coexistido com uma espécie-irmã, os neandertais (Homo neanderthalensis), na Europa. Esses nossos parentes mais famosos, teriam se diferenciado de um ancestral comum ao nosso há cerca de 400 mil anos, enquanto nossa espécie seria derivada dessa mesma espécie comum que ainda habitava a África. Estudos indicam que essa espécie ancestral comum seria relacionada ao Homo erectus, que se originou na África há cerca de 1,8 milhões de anos, e coexistiu com humanos e neandertais até sua extinção, há cerca de 100 mil anos (Figura 1).

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Figura 1. Origem, dispersão e coexistência das espécies Homo (Fonte).

Desde os anos 2000, foram incluídos no gênero Homo diferentes espécies que viveram no Pleistoceno médio e tardio, tais como H. floresiensis, descoberto em 2003 na Indonésia, os denisovanos identificados em 2010 na Sibéria, o H. naledi, descrito 2015 no sul da África; e o H. luzonensis, encontrado em 2019 nas Filipinas. Em 2010, com a possibilidade do estudo de genomas de espécimes extintos, a visão clássica sobre nossa origem foi substituída por uma mais ampla, que considera que as espécies derivadas de Homo erectus em diferentes continentes, como humanos, neandertais, e o então novo membro de nossa família, homem de Denisova, teriam não só coexistido, mas também cruzado e deixado descendentes (Figura 2). Nossa espécie, como única sobrevivente dessa tríade, carrega em seu genoma fragmentos do DNA de nossos primos extintos. Essas introgressões de material genético de outros Homo levou a uma série de vantagens adaptativas, principalmente na resposta a patógenos e na adaptação a grandes altitudes. Ao mesmo tempo, várias regiões do genoma humano apresentam ausência total desses fragmentos, o que poderia indicar uma seleção contra certas características predominantes em nossos correlatos. Interessantemente, a maioria dos genes encontrados nesses desertos de fragmentos de hominídeos extintos estão relacionados com reprodução e desenvolvimento do sistema nervoso.

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Figura 2. Árvore filogenética mostrando as relações entre as espécies de Homo, e os cruzamentos entre humanos, neandertais e denisovanos. Embora a figura não represente uma miscigenação entre denisovanos e neandertais, ela é evidente em estudos genéticos recentes (ver https://darwinianas.com/2018/10/09/denny-a-menina-meio-neandertal-meio-denisovana/) (Fonte: The Economist).

Recentemente, novos achados paleontropológicos e genômicos têm mudado ainda mais a história da nossa espécie, principalmente em relação ao período e dinâmica da expansão fora da África, e subsequente contato com outras espécies de Homo, e ao período de origem dentro da África. Em relação ao período e local de origem do H. sapiens, uma série de crânios encontrados em Marrocos, ou seja, no noroeste africano ao norte do Saara, desloca em 100 mil anos para o passado e em milhares de quilômetros ao ocidente o que poderia ser considerado o berço dos humanos modernos. Por outro lado, estudos com DNA mitocondrial completo apontam para uma origem mais recente, e no sudoeste africano, tornando o quebra cabeça de nosso passado maior e mais incompleto.

No final de junho de 2021, nossa família aumentou outra vez, com a publicação de dois achados importantes: partes de crânios que parecem ser um mosaico entre neandertais e Homo arcaicos, encontrados do Oriente Médio, e um crânio extremamente robusto, muito similar aos Homo antigos, encontrado na China, ambos datados entre 120 e 140 mil anos antes do presente, e trazendo com suas descobertas mais perguntas do que respostas.

O indivíduo encontrado no Oriente Médio, chamado de homem de Nesher Ramla (ainda sem definição de espécie), apresenta mandíbula e dentes similares aos neandertais e crânio relacionado a espécies mais arcaicas (Figura 3). Esses ossos encontrados parecem estar relacionados a uma série de esqueletos incomuns encontrados na mesma região, abrangendo um período de 400 mil anos. Surpreendente, esses indivíduos de 120 mil anos parecem ter desenvolvido ferramentas muito parecidas com as dos humanos do mesmo período. E o mais importante: esse achado deslocaria a origem dos neandertais do norte da Europa para o Oriente Médio. O crânio chinês foi originalmente encontrado em 1930, mas só agora estudado em profundidade. Esse indivíduo, classificado como Homo longi (ou Homem Dragão), foi nomeado fazendo referência ao local em que foi encontrado, na Província de Heilongjiang, Long Jiang, que significa Rio do Dragão. O crânio encontrado é notavelmente grande quando comparado com outros indivíduos da mesma época, sendo maior que os dos humanos atuais (Figura 4), e apresentando potencialmente grande volume cerebral. No entanto, a classificação de uma espécie com base em apenas um registro ósseo é incomum e controversa. Os autores inferem que esse indivíduo seria uma espécie mais próxima de nossa espécie do que dos neandertais. Além disso, há controvérsias também sobre a grande variedade de espécies agrupadas como relacionados ao H. sapiens desde 2000, que poderia dificultar a classificação correta do Homem Dragão. Uma outra explicação mais viável para a presença desse espécime nessa região em um período tão remoto seria que esse indivíduo estaria relacionado com os primeiros neandertais que migraram para a Ásia, e que mais tarde poderiam ter originado o misterioso Homem de Denisova, do qual nenhum crânio completo ainda foi encontrado.

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Figura 3. Fragmentos ósseos do homem de Nesher Ramla, encontrados no Oriente Médio, datados em 140 mil anos. (Fonte: dailymail.co.uk)

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Figura 4. Crânio do Homem Dragão comparado com humano. (Fonte: cameroncolony.com)

As respostas sobre nossas origens ainda são escassas, e as perguntas têm se tornado mais complexas conforme novas espécies vem sendo encontradas e novos dados genômicos conseguem ser gerados. No entanto, algo importante a ser aprendido é que nossa história é muito mais intrincada do que se pensava e fortemente relacionada a diversas espécies que não prosperaram. Provavelmente, diferentes hominídeos se diferenciaram em diferentes regiões e muitos deles se relacionaram em si, tornado a linearidade na nossa origem cada vez menos crível. Éramos uma grande família que tomou diferentes ramos evolutivos ao longo do tempo e espaço.

Tábita Hünemeier

IB/USP

PARA SABER MAIS:

Walter Neves, Rui Murrieta e Miguel Rangel Junior (2015) Assim caminhou a humanidade. Editora Palas Athena, 320pp.

Adam Rutherford (2020) Livros dos Humanos: A história de como nos tornamos quem somos. Editora Record, 252pp.

Imagem: Reconstrução feita a partir do crânio do Homem Dragão.Fonte: https://ichef.bbci.co.uk/news/976/cpsprodpb/4E36/production/_119022002_realpic1jpeg.jpg