Os modelos na jornada conhecimento

O mundo real é extraordinariamente complexo. Cientistas trabalham com simplificações dessa realidade, que nos ajudam a entendê-lo. Essas simplificações são os modelos.

Como cientistas interessados em biologia, tentamos gerar conhecimento sobre o mundo que nos rodeia. Essa tarefa não é trivial: nosso objeto de estudo é incrivelmente complexo, envolvendo interações entre moléculas que residem em células, entre células que compõem tecidos, entre indivíduos que são formados de tecidos, entre populações que são formadas por indivíduos. Cada nível dessa hierarquia envolve uma multidão de agentes interagindo uns com os outros. A transformação evolutiva envolve interações em todos esses níveis.

Uma ciência que dê conta de toda a informação, nesses múltiplos níveis, poderia soar como algo a ser almejado. Mas é, na realidade, inatingível. Nas palavras do filósofo André Conte-Sponville em Apresentação da Filosofia:

Não há conhecimento absoluto, não há conhecimento perfeito, não há conhecimento infinito. Você conhece seu bairro? Claro que sim! Mas para conhecê-lo totalmente, teria que de ser capaz de descrever cada rua que há nele, cada construção de cada rua, cada apartamento de cada edifício, cada recando de cada apartamento, cada grão de poeira em cada recando, o mais ínfimo átomo de cada grão, o mais ínfimo elétron de cada átomo… Como você poderia? Seria necessária uma ciência acabada e uma inteligência infinita: nem uma nem outra estão ao nosso alcance. [página 56]

Se o conhecimento completo de nosso bairro está além do nosso alcance, o que dizer do desafios de explicar a transformação evolutiva das espécies ao longo do tempo? Da tentativa de entender a geração de toda a diversidade biológica de nosso planeta?

Para estudar sistemas que envolvem interação de tantos elementos, com relações tão complexas uns com os outros, os cientistas têm uma estratégia: decompor a complexidade, tornando-a acessível às ferramentas disponíveis e o conhecimento vigente. A essas simplificações do mundo real, feitas pelos cientistas, chamamos de modelos.

Modelos estão por todos os lados na biologia. A molécula de DNA não possui exatamente a forma de uma dupla hélice regular, mas o modelo proposto por James Watson e Francis Crick capta as características mais importante desse ácido nucleico. A dupla hélice que vemos nos livro-texto é um modelo da estrutura molecular. Um segundo exemplo, também vindo da biologia molecular: o fluxo de transformação molecular na célula, que resulta na produção de proteínas, é muitas vezes resumido na série “DNA -> RNA -> Proteína”. Mas a realidade é mais complexa, havendo moléculas de RNA produzidas a partir da transcrição do DNA que regulam o próprio processo transcricional, invertendo a primeira seta. Novamente, temos um modelo que capta algo sobre o funcionamento da célula, mas não dá conta de toda a diversidade de processos que lá ocorrem.

A biologia evolutiva trabalha com uma lista extensa de modelos, e cada modelo carrega uma série de pressupostos. Os pressupostos são as condições que são necessárias para que o modelo funcione, no sentido de ser capaz de fazer previsões. Vamos a alguns exemplos. Para fazer previsões sobre quais devem ser as frequências populacionais de genótipos (isto é, quais combinações de alelos cada indivíduo irá carregar), temos o modelo de Hardy-Weinberg, que tem como pressupostos que os acasalamentos se dão ao acaso (isto é, não há nenhuma fator genético determinando as probabilidades de formação de casais) e não há seleção, migração ou mutação, e que as populações sob estudo são muito grandes. O modelo de Hardy-Weinberg propositalmente se livra de vários processos biológicos complicadores (como mutação, seleção e migração) para poder fazer uma previsão.

Vamos a um segundo modelo. Para prever como as frequências alélicas mudam ao longo do tempo, evolucionistas desenvolveram modelos de deriva genética (o processo de mudanças aleatórias de frequências alélicas). O modelo mais conhecido para esse processo é chamado de  Wright-Fisher (em homenagem aos dois pesquisadores que o desenvolveram), e tem como pressupostos que não há seleção, mutação ou migração, e que os organismos tem gerações discretas (isto é, os indivíduos adultos de uma geração morrem assim que nascem os descendentes que irão compor a próxima geração). O modelo de Wright-Fisher nos dá informações importantes sobre o quanto a composição genética entre populações pode mudar na ausência de seleção, sobre como o tamanho populacional influencia a magnitude de mudanças. Para fazer essas previsões, ele trabalha com uma visão simplificada dos processos que ocorrem em populações.

Ao transitar do complexo mundo real para a dimensão de modelos simplificadores, há perdas e ganhos. O que perdemos? Inevitavelmente, o modelo deixa de fora parte da complexidade do mundo real. Nossos modelos estão aquém da realidade, e processos que ocorrem no mundo real ficam excluídos da representação que optamos por usar.

Por outro lado, os modelos nos trazem importantes conquistas. Graças a eles, temos um ponto de entrada para um problema complexo: os modelos de Hardy-Weinberg e Wright-Fisher são capazes de descrever dinâmicas de populações sob certos pressupostos. Se examinamos uma população real e descobrimos que os genótipos estão nas frequências previstas pelo modelo de Hardy-Weinberg, ou que a magnitude de mudanças genéticas entre gerações é similar à prevista pelo modelo de Wright-Fisher, dizemos que há apoio empírico ao modelo, e nos convencemos que as fórmulas associadas a esses modelos servem para descrever aspectos do mundo real. O modelo terá se revelado útil para descrever a natureza. Repare que a aderência dos modelos aos dados reais não quer dizer que todos os pressupostos são observados no mundo real. Significa apenas que, se o mundo real difere dos pressupostos, essas diferenças não são suficientes para fazer as previsões do modelo deixarem de funcionar.

Mas modelos são também muito úteis quando os dados empíricos não se encaixam nas expectativas dos modelos. Populações em que frequências alélicas são muito diferentes daquelas previstas por Hardy-Weinberg provavelmente violam os pressupostos de um modo marcante (por exemplo, pois algum genótipo é favorecido por seleção natural ou algum tipo de cruzamento é muito mais comum em relação aos demais). Populações cujas frequências alélicas mudam mais rapidamente do que previsto pelo modelo de deriva genética provavelmente devem apresentar propriedades diferentes dos pressupostos do modelo (por exemplo, o alelo que está se tornando comum rapidamente é favorecido pela seleção natural).

Meu esforço em escrever esse ensaio é para enfatizar que o fato do modelo representar uma simplificação da natureza não deve ser visto como uma limitação, mas sim uma necessidade. Modelos simplificadores são o que dispomos para iluminar processos complexos. Podemos, com o tempo, acrescentar camadas de complexidade a modelos (há modelos que acrescentam mutações e migração ao modelo de deriva), caso descubramos que eles não descrevem bem a natureza.

A beleza dos modelos é que eles ocupam o espaço que conecta a nossa ignorância sobre o mundo e o desejo de construir um saber completo. Modestamente, eles geram conhecimento, mas sem tentar abraçar a imensa complexidade dos sistemas biológicas de uma só vez. Nas palavras de Conte-Sponville:

Entre a ignorância absoluta e o saber absoluto, há lugar para o conhecimento e para o progresso dos conhecimentos. Bom trabalho para todos!

Diogo Meyer (USP)

Para saber mais:

André Comte-Sponville. Apresentação da Filosofia. Editora Martins Fontes, 2003.

Sarah P. Otto & Troy Day. A Biologist’s Guide to Mathematical Modeling in Ecology and Evolution. Princeton University Press, 2007.

Sobre o modelo de Hardy-Weinberg: https://www.nature.com/scitable/definition/hardy-weinberg-equilibrium-122

Futuyma, D. J. Evolutionary Biology, 3rd ed. Sunderland, MA: Sinauer Associates, 1998.

Imagem: Watson e Crick discutem o modelo cristalográfico de dupla hélice para o DNA construído a partir de imagens de difração de raio-x (esquerda).

 

 

 

 

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