Gêneros sexuais

Fazer parte de um grupo social não anula, e sim fortalece o indivíduo

Imagem de: https://www.elsevier.com/connect/editors-update/the-importance-of-sex-and-gender-reporting

Uma criança de dez anos deveria ter o direito de decidir acerca de intervenções cirúrgicas ou hormonais visando conduzi-la a um futuro transexual? Um homem trans que se auto-declara mulher está roubando o lugar de fala de outras mulheres? Discussões acerca dos direitos de um indivíduo europeu que se transforma cirurgicamente em coreano, e se declara coreano, são comparáveis a discussões acerca de identidades transexuais? Todas estas questões contemporâneas explodem nos barris de pólvora nuclear das redes sociais, e talvez um pouco mais de luz e um pouco menos de fumaça radioativa nos ajude a buscar razoabilidade neste debate.

Escolha e seleção sexual

Ano passado publiquei um manifesto em defesa de um mundo sexualmente menos binário. Sexo e gênero, assim como corpo e mente, não se separam em um indivíduo, não são duas coisas, mas uma apenas. Nossa natureza humana não é biológica e nem cultural, porque estas esferas não se separam no indivíduo. Natureza e cultura, dentro de um indivíduo, só se separam na sala de aula, quando didaticamente professores falam a partir de seu conhecimento disciplinar: um biólogo/médico/veterinário fala sobre sexo, um antropólogo/psicólogo/filósofo/sociólogo fala sobre gênero. Na vida concreta os indivíduos são um só, seu corpo é sua mente, sua mente é seu corpo. Decorre disso que as escolhas sexuais de um indivíduo constituem seu sexo tanto quanto sua genitália.

Mas, se a escolha é livre, por que temos uma grande maioria de indivíduos heterossexuais, porque o mundo humano parece majoritariamente binário, relegando as dissidências sexuais ao campo das minorias? Uma resposta seria que a cultura, este fenômeno social e histórico que transcende o indivíduo e suas escolhas, a cultura é majoritariamente binária: há papéis sexuais  estereotipados no tecido social, os quais tendenciam as escolhas do indivíduo levando a uma população binária. E por que a cultura seria majoritariamente binária? Uma resposta seria a seleção sexual, a evolução de um corpo/mente binário, mas uma seleção sexual modificada para incluir a cultura.

Como sabemos, para evoluir, tem que haver um sistema de herança (genética, ecológica, cultural) sujeito a erros (mutações, aprendizagens incompletas, inovações culturais). Uma área importante da teoria evolutiva é a seleção sexual, uma parceira teórica da seleção natural. A seleção de mutantes (genéticos, comportamentais, culturais) direciona o processo evolutivo (genético, comportamental, cultural), o qual é um fenômeno que transcende o indivíduo, é um fenômeno que ocorre apenas após sucessivas gerações que congregam populações inteiras de corpo/mentes. Um resultado comum da seleção sexual é o surgimento de estratégias (sexuais) evolutivamente estáveis que, tanto no caso humano quanto na imensa maioria de animais e plantas, resultou no surgimento do sexo e de comportamentos e de culturas binárias (masculinas e femininas).

Finalmente, por que este resultado evolutivo (binariedade sexual) é majoritário? Simples: porque ele é um arranjo muito produtivo, que produz muita descendência e que, dessa forma, vence frequentemente outras estratégias sexuais (não binárias) no suceder das gerações. Agora, se há alguma verdade acerca da vida no planeta Terra, é que ela não é simples: qualquer resposta superficialmente simples esconde o cerne da biologia contemporânea, que é a sua complexidade, boa parte dela oriunda da interação entre níveis de organização, entre o indivíduo e o coletivo, entre os coletivos e a história.

Evolução e indivíduo

Já antevejo enraivecidos os dissidentes do sexo binário: ai, que chatice, estes cientistas são sempre assim, tergiversam, enrolam, escamoteiam, mas no final sempre pintam um mundo azul e rosa, azul e rosa, azul e ai, que chatice! Concordo. Explicações simples demais facilitam a compreensão, mas muitas vezes preservam a aparência ordenada, ao jogar para baixo do tapete os detalhes sórdidos de um mundo vasto, variado e variante. Detalhes sórdidos esquecidos até aqui: as culturas não binárias têm muita visibilidade, e estão em todo lugar, na moda, no cinema, na música, nas redes sociais, de modo que é bem difícil, até mesmo inadequado, afirmar que o mundo heterossexual suplanta, na cultura, o mundo não binário. Mais detalhes sórdidos esquecidos: o conhecimento biológico contemporâneo não sugere seres vivos binários, pois há muita diversidade nos sistemas de determinação sexual: há hermafroditismo, há determinação do sexo pelo ambiente – temperatura, fatores sociais -, bem como há uma grande diversidade de sistemas genéticos de determinação sexual. Além disso, há muita variação biológica dentro do que denominamos homem, ou mulher: variação no tamanho dos órgãos genitais, na intensidade dos fluxos e picos hormonais, na abundância e distribuição da pelagem, havendo até mesmo variação genética dentro de um indivíduo, que pode ter partes do corpo com genética masculina, e partes com genética feminina. Detalhes sórdidos finais: a explicação acima (no tópico acima) se dá basicamente em um nível: temos o processo evolutivo direcionando as estratégias sexuais. Dessa forma ignoramos o indivíduo e suas escolhas como parte da explicação, não esboçamos uma articulação entre estes dois níveis (o da evolução e o do indivíduo), e nem mesmo incluímos outros importantes atores intermediários, como as instituições (igrejas, governos, associações). Vamos agora focar nesses detalhes sórdidos finais.

As instituições humanas criam para os coletivos uma história, dão aos coletivos uma permanência para além de sua organização momentânea. Tais instituições, por terem capacidade de se manter no tempo, criam por assim dizer um corpo social, um novo nível de organização que se interpõe entre o indivíduo e o ambiente. Percebemos dolorosamente o poder das instituições quando matamos uma abelha e o enxame inteiro revida: mexeu com um, mexeu com todos. Colmeias, formigueiros, vespeiros e igrejas surgem assim como um novo ator, social, e os processos evolutivos (fundados em heranças genéticas, ecológicas, e culturais) não lidam mais apenas com indivíduos, mas também com grupos, e a grande visibilidade da cultura não-heterossexual pode emergir da força do grupo, da rede ampliada de contatos afiliativos ao redor de indivíduos e instituições não-binárias ou homossexuais.

Agora, antes mesmo de pensarmos no papel da organização social, há um detalhe ainda mais fundamental, que é o entendimento da relação entre os processos evolutivos e o indivíduo. Indivíduos não evoluem: espécies evoluem. Isso porque a evolução se dá com base em sistemas de herança (genes, cultura) que estão ou bem muito dentro, ou bem muito fora dos indivíduos. A ideia poderosa de que somos atravessados por feixes históricos, por gerações sucessivas de genes bem sucedidos, ou por gerações sucessivas práticas culturais, parece dar mais existência para estes feixes históricos que nos atravessam do que para nós mesmos. Eu, indivíduo, seria apenas um saco de genes, ou apenas um elo na cadeia que perpetua um conjunto de práticas culturais. Estes feixes que vêm do passado, atravessam nossa curta existência, e nos abandonam, são eles que evoluem, e para eles somos algo transitório e irrelevante. É por isso que, na escala dos processos evolutivos, parecemos impotentes, e é daí que vem a ideia de que biologia é destino, a impressão de que somos marionetes de nossos genes, porque são eles que evoluem, não nós, e eles evoluem nos manipulando para seus interesses egoístas, para sua irrefreável sanha de perpetuação.

Essa história do gene egoísta, estamos cansados de ouvir desde o ensino médio, e ela é a fonte de desgosto para muitos biólogos evolucionistas atuais, que vivem tentando desfazer esta visão equivocada, tentando mostrar que o gene não é um pedaço de DNA que contém informação, mas um processo que ocorre na célula. Um dos problemas do gene egoísta é que ele ignora o indivíduo, ignora o fato de que eu, de que meu corpo não equivale a meus genes, assim como não equivale à cultura de meu povo, que incorporo. Eu sou um organismo autônomo, que usa os genes a seu favor, assim como usa a cultura da forma que melhor lhe convém. Perceba como isso inverte a lógica: ao invés de nós, nosso corpo, ter como propósito a perpetuação de nossos genes egoístas, devemos dizer que nós é que somos o propósito dos genes (que portanto não são egoístas).

Tendo em vista a autonomia do indivíduo (que não evolui) em relação aos genes (que evoluem) e às práticas culturais (que também evoluem), parece que o que evolui é o contexto no qual os indivíduos tomam suas decisões. O contexto externo (práticas culturais) evolui através das gerações, e também a constituição interna do corpo (seus genes) evolui. As decisões que um indivíduo inteligente toma devem levar em conta suas condições externas e capacidades internas. Não adianta eu decidir andar se eu estiver no meio do mar (condições externas desfavoráveis), ou se eu tiver perdido minhas pernas em um acidente (capacidades internas eliminadas), mas nada disso impede que eu chegue onde quero chegar. Seja nadando, seja colocando pernas mecânicas, o indivíduo continua no comando de sua vida.

Voltando aos gêneros sexuais: os indivíduos são autônomos em suas escolhas sexuais, mas fazem estas escolhas sempre levando em consideração seu contexto externo (os papéis sexuais aos quais estão expostos, as expectativas sociais a seu respeito, as consequências que preveem materializadas após tal ou qual decisão) e suas capacidades intrínsecas (seus órgãos sexuais, sua fisiologia, sua capacidade de alterar o corpo ou seu funcionamento via cirurgias, tratamentos hormonais ou genéticos, sua capacidade de entender e navegar sua rede social). Altere estas condições externas ou estas capacidades intrínsecas e estas novas condições podem alterar a decisão do indivíduo, que não deixa por isso de ser autônoma. Essa autonomia, aliada a variações nas condições externas e capacidades internas, é responsável pelo arco-íris sexual humano. E não esqueçamos que, embora a evolução seja cega com relação ao indivíduo, o indivíduo informado enxerga o processo evolutivo, conhece a teoria da evolução, domina seus princípios, e pode culturalmente descobrir formas de agir sobre a evolução dessas condições externas e capacidades internas, o que abre ainda mais o leque da diversidade sexual humana. E ao final, o que significa isso tudo? O que este mundo informações inteiramente razoáveis sugere para as irracionais guerras culturais que se travam ao redor das opções sexuais de indivíduos? Significa que temos autonomia sobre nosso corpo, mas que, como em tudo, nossa liberdade não é absoluta, posto que é condicionada, posto que ela leva em conta tanto nossas capacidades intrínsecas quanto as forças sociais sob as quais vivemos. Significa que biologia não é destino, que podemos alterar tanto nossas capacidades internas quanto o conjunto de forças sociais, e aqui entendo que de preferência deveríamos fazer isso para aumentar, e não para cercear nossa liberdade de fazermos com nosso corpo o que bem quisermos. Numa democracia, a liberdade de um termina onde começa a liberdade de outro. Alterar meu corpo, mudar minhas preferências sexuais, isso não afeta a liberdade de mais ninguém, e se você se sente menos livre ao ver a vida de outro indivíduo mudar para um rumo que não te agrada, talvez seja a sua vida que precise ganhar um novo rumo: revise-se.

Hilton Japyassu (Instituto de Biologia, Universidade Federal da Bahia)

Para saber mais:

Alcock, J. 2011. O comportamento reprodutivo, in: Comportamento animal: uma abordagem evolutiva. Artmed.

El-Hani, C. N., Queiroz, J., & Emmeche, C. (2009). Genes, information, and semiosis (Vol. 8). Tartu: Tartu University Press.

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