Pandemia na era da cibernética

Modelagem do movimento urbano em diversas metrópoles nos Estados Unidos revela padrões de comportamento de diferentes grupos sociais e pode ajudar no desenvolvimento de políticas de saúde pública mais equitativas durante a atual pandemia

Desde 1992, o Gil já cantava: “Antes longe era distante / Perto, só quando dava / Quando muito, ali defronte / E o horizonte acabava / Hoje lá trás dos montes, den de casa, camará”. Na música Parabolicamará, Gil utilizou a imagem da antena parabólica para simbolizar a interconectividade do mundo digital e a difusão da parabólica pelo Brasil, influenciando não apenas a paisagem urbana, mas também os padrões de comportamento social. O desconhecido podia agora ser acessado por meio digital, do conforto e segurança do lar. As distâncias, antes quase intransponíveis, podiam agora ser virtualmente percorridas em questão de segundos. E a antena parabólica foi apenas o começo dessa era de globalização digital: internet, computadores portáteis, celulares, carros e casas inteligentes permeiam o cotidiano de todos nós, criando o que McLuhan chamou, quase que profeticamente, trinta anos antes da invenção da internet, de aldeia global.

O desenvolvimento de aplicativos digitais capazes de não apenas reunir, mas também transmitir dados entre si, levou Kevin Ashton, em 1999, a propor o conceito de Internet das Coisas (do inglês, Internet of Things). Esse conceito ressalta que, para além da interconectividade entre pessoas, o mundo digital gerou, em paralelo, a interconectividade entre objetos físicos, dispositivos, sistemas e serviços. Hoje, podemos, dos nossos celulares e de praticamente qualquer lugar, controlar a temperatura da nossa casa, cozinhar o jantar, ou até mesmo estacionar nossos carros. Na era digital, a portabilidade de dispositivos como o celular nos permite carregar a internet a qualquer lugar, e com isso permanecer constantemente conectados. E foi exatamente essa permanente interconectividade que permeia a vida da maioria da população atual que permitiu a realização do estudo que venho aqui dividir com vocês.

Nesse estudo, publicado essa semana na revista Nature, cientistas coletaram dados de localização de celulares de 98 milhões de indivíduos em 10 metrópoles norte-americanas, e utilizaram modelos de mobilidade, associados a modelos epidemiológicos de propagação do vírus, para entender a relação entre os padrões de deslocamento de diferentes grupos sociais para pontos de interesse, como restaurantes, lojas, supermercados e instituições religiosas, e os padrões de disseminação do vírus causador da COVID-19, o SARS-CoV-2. O modelo gerado foi capaz de predizer com acurácia os padrões observados de disseminação do vírus até então, sugerindo ser um bom modelo para testes de estratégias de re-abertura e reestabelecimento das atividades econômicas e sociais.

Ao utilizar o modelo para testar planos de reabertura e contenção da propagação do vírus, os cientistas observaram que a magnitude da redução da mobilidade é tão importante quanto o momento em que essas medidas são implementadas. Por exemplo, caso a região do metrô de Chicago não tivesse observado uma redução de ~54% de mobilidade durante o primeiro mês da quarentena, o número de casos poderia ter aumentado em mais de 6 vezes o número atual. E se a redução da mobilidade tivesse iniciado uma semana mais tarde, o número de casos seria quase duas vezes maior do que o observado. O modelo de dinâmica de movimento social desenvolvido nesse estudo sugere também que uma pequena minoria dos pontos de interesse é responsável pela grande maioria das infecções, possibilitando a identificação de eventos de super propagação. A ideia de eventos de super propagação (do inglês superspreader events) de COVID-19, no entanto, não é nova. O acúmulo de dados a respeito da pandemia de COVID-19 levou cientistas a proporem a ideia de que eventos de super propagação explicam os padrões de disseminação do vírus SAR-CoV-2. Eventos de super propagação são eventos nos quais um ou poucos indivíduos contaminam um número significativo de pessoas em um único encontro. É possível que um único indivíduo contaminado, em ambiente fechado, resulte na contaminação secundária de milhares de pessoas.

Se a minoria dos pontos de interesse (isto é, restaurantes, lojas, bares, supermercados, academias, instituições religiosas etc.) é responsável pela grande maioria dos casos, uma clara política pública é a reabertura desses pontos com restrição da capacidade máxima de ocupação desses locais. Ao testar cenários de reabertura sem redução da capacidade de ocupação, utilizando o modelo gerado, os cientistas foram capazes de prever um aumento de aproximadamente 32% de infecções na mesma região de Chicago. Ainda, a redução da ocupação reduz significativamente o risco de infecção, sem necessariamente alterar os padrões de mobilidade da região. Nessa mesma região, o modelo prevê que a restrição da capacidade de ocupação em, no máximo, 20% da capacidade total é capaz de reduzir o número de novas infecções em aproximadamente 80%, resultando em apenas 42% na restrição de mobilidade na região, sugerindo que a redução da capacidade de ocupação de pontos de interesse pode ser mais eficaz do que a restrição da mobilidade irrestrita da população.

Além disso, o modelo aponta para o risco relativo de reabertura de determinadas categorias de pontos de interesse, já que nem todos os pontos de interesse estão associados igualmente a eventos de super propagação. Devido ao fato de que apenas uma minoria dos pontos de interesse são responsáveis pela maioria dos eventos de super propagação nas regiões metropolitanas estudadas, entender a relação entre esses pontos de interesse e a propagação do vírus é fundamental, particularmente para locais que usualmente recebem uma grande quantidade de indivíduos, ou nos quais indivíduos tendem a passar longos períodos de tempo.

O modelo ressalta também os padrões de disparidade nas taxas de infecção entre diferentes grupos sociais, resultando na acentuação das desigualdades sociais preexistentes. O modelo corretamente previu maiores taxas de infecção entre grupos socioeconomicamente desfavorecidos, baseando-se apenas padrões de deslocamento dos diferentes grupos. De acordo com os dados de mobilidade, grupos socioeconômicos menos favorecidos não foram capazes de reduzir sua mobilidade tanto quanto grupos sociais privilegiados, e tenderam a frequentar locais de maior aglomeração, resultando assim em maior exposição e um aumento significativo no risco de infecção. O reconhecimento de que grupos sociais já cronicamente desfavorecidos são os mais afetados pela atual pandemia de COVID-19 também não é uma novidade. Desde Abril desse ano, estudos epidemiológicos já apontavam para a disparidade nas taxas de infecção e mortalidade nos Estados Unidos entre grupos socioeconômicos e raciais. Disparidades socioeconômicas semelhantes foram observadas no Brasil, onde as taxas de incidência e mortalidade por COVID-19 foram mais elevadas em unidades federativas com maior desigualdade econômica. Dessa forma, políticas justas de reabertura durante a pandemia precisam considerar o impacto díspar da pandemia nos diversos grupos socioeconômicos para o planejamento de ações que intencionalmente reduzam as taxas de infecção nas comunidades menos favorecidas e mais afetadas. Segundo os autores, são medidas importantes o estabelecimento de limites de ocupação mais restritos em restaurantes, lojas, academias e outros pontos de interesse, a criação de centros de distribuição de alimentos para a redução da densidade populacional em pontos de interesse super propagadores, como lojas e supermercados, a oferta ampla e gratuita de testes, principalmente em regiões metropolitanas de alto risco, e a melhoria das políticas públicas de suporte ao trabalhador doente, visando a redução da sua mobilidade durante a doença. Além disso, já sabemos que outras medidas são também efetivas, como o distanciamento social e o uso irrestrito de máscaras. Este último contribui significativamente para o controle da propagação do vírus causador da COVID-19, por reduzir a emissão de saliva e aerossóis das vias respiratórias de indivíduos infectados, porém com sintomas amenos ou moderados.

Infelizmente, perdemos a oportunidade de resolver a pandemia antes da morte de centena de milhares de pessoas em países como os Estados Unidos e o Brasil, mas modelos como os apresentados por Chang e colaboradores podem balizar políticas de saúde pública eficazes na contenção da propagação do vírus, pois permitem testar computacionalmente o impacto das medidas de reabertura em diferentes regiões e grupos sociais antes da efetivação das mesmas, principalmente em países cujos chefes de estado não foram capazes de atuar prontamente no controle inicial e na eliminação da disseminação do vírus. Veja-se, por exemplo, o caso da Nova Zelândia. A Nova Zelândia é o país com a menor taxa de mortalidade por COVID-19 (apenas 4 por 1 milhão de habitantes) entre os 37 países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Em apenas 103 dias, e após um período de quarentena nacional, o país decretou, no início de Junho desse ano, o final da pandemia no território nacional, tendo registrado apenas 1.569 casos e 22 mortes por COVID-19. A impressionante contenção da pandemia na Nova Zelândia, resultado da implementação imediata e severa de medidas de saúde pública informadas pela ciência, foi reconhecida pela Harvard University com o Prêmio Gleistman em liderança e ativismo social de 2020, outorgado à Primeira Ministra Jacinda Ardern, que liderou, de forma exemplar, o país durante a crise.

No entanto, se vamos passar a utilizar padrões de movimento social inferidos a partir de dados de celular para propor e planejar políticas públicas, não podemos deixar de discutir questões ligadas à privacidade de cada um de nós. Em muitos casos, informações a respeito dos nossos padrões de mobilidade e comportamento são compartilhadas por aplicativos e dispositivos digitais sem que tenhamos clara consciência do fato. E com o avanço da interconectividade e da Internet das Coisas, esses eventos de compartilhamento de informações pessoais se tornam cada vez mais comuns. Mas, pessoalmente, acredito que precisamos atentar para uma questão ainda mais importante:  é imperativo garantirmos a inclusão digital de todos os setores da sociedade, para que todos estejam representados equitativamente nesses modelos, se é que eles balizarão futuras tomadas de decisão.

Ana Almeida

California State University East Bay

(CSUEB)

Para saber mais:

Chu, Derek K, et al. 2020. Physical distancing, face masks, and eye protection to prevent person-to-person transmission of SARS-CoV-2 and COVID-19: a systematic review and meta-analysis. The Lancet, 395(10242): P1973-1987.

Greenhalgh, Trisha. et al. 2020. Face masks for the public during the COVID-19 crisis. BMJ, 369: m1435

Ornes, Stephen. 2016. Core Concept: The Internet of Things and the explosion of interconnectivity. PNAS, 113 (40) 11059-11060.

Santos, Milton. 2000. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. São Paulo: Editora Record.

Schadt, Eric. The changing privacy landscape in the era of big data. Molecular Systems Biology, 8:612

A evolução é “só uma teoria”?

Biólogos estão acostumados a ter que lidar com um argumento frequentemente invocado para desqualificar a teoria evolutiva: a de que a evolução é “só uma teoria”. Esse é um bordão em diversos textos anti-evolucionistas.

Implícita nessa forma de criticar o conhecimento sobre a evolução está a ideia de que uma “teoria” de algum modo se distingue de um “fato”, por ser mais incerta e conjectural.

No vídeo que compartilhamos hoje, Charbel Niño El-Hani conversa com Diogo Meyer sobre o que está embutido na tentativa de criticar a evolução afirmando que ela é “apenas uma teoria”. Para Charbel, é fundamental investir para que estudantes tenham uma compreensão de como o conhecimento científico é produzido, e da importância central de teorias no processo de explicar o mundo através da ciência. Compreendendo como o conhecimento científico é construído, ficará claro que descrevê-lo como construído com base em “teorias” não o desqualifica.

Mais do que isso, entender como o conhecimento científico é produzido não só ilumina seu potencial de responder questões complexas – através da elaboração de teorias -, como também serve para mostrar os limites do conhecimento científico, e o fato de que a ciência convive com outras visões de mundo, de utilidade diferente e de inserção em diferentes domínios das atividades humanas.

A conversa chama a atenção para importância de investir na formação de jovens cientistas, buscando equilibrar a grande ênfase dada em ensinar extensos conteúdos, com a muito menos explorada via de ensinar como o próprio conhecimento científico é produzido.

Mais além do dilema entre aprender e fazer no tratamento da COVID-19, fica a necessidade de aprender fazendo

Quando enfrentamos uma nova doença e/ou buscamos medicamentos e vacinas, ensaios clínicos são estritamente necessários, como parte do processo meticuloso, cuidadoso de que dependemos para saber se as pílulas que tomamos ou as injeções que nos aplicam são eficazes e seguras, já discutido aqui em Darwinianas. Efetividade e segurança devem ser bem evidenciadas, porque medicamentos, como qualquer outra substância, podem fazer por vezes mais mal do que bem. Quando se prescrevem medicamentos que não foram ainda suficientemente testados, sob os quais ainda há dúvidas sobre sua efetividade ou segurança (pior ainda: quando há evidência de carecem desses atributos), dois princípios fundamentais da prática médica estão sendo negligenciados: In dubio abstine (quando em dúvida, abstenha de tratar) e Primum non nocere (antes de qualquer coisa, não cause mal).

A cloroquina e seus derivativos, como a hidroxicloroquina, fornecem bom exemplo de por que ensaios clínicos são um requisito inquestionável do uso seguro de medicamentos. A margem de segurança desses medicamentos é relativamente estreita, especialmente por causa de seus efeitos cardiovasculares adversos, ou seja, a diferença entre uma dose com poder terapêutico e uma dose tóxica é relativamente pequena. Overdose de hidroxicloroquina é, além disso, de difícil tratamento, e não há antídoto conhecido. A hype em torno dessa droga levou a prejuízos a pessoas que se automedicaram com ela durante a atual pandemia, como mostram relatos de overdoses, hospitalização e mortes em contextos tão distintos quanto os da Nigéria e dos Estados Unidos. É uma trágica ironia que apenas quatro dias antes de um homem morrer por overdose de cloroquina no Arizona, o atual presidente norte-americano tenha dito, a respeito da hidroxicloroquina: “a coisa boa é que ela tem sido usada por um longo tempo, de maneira que, se as coisas não saírem como planejado, sabemos que ninguém será morto por ela”. Esses fatos mostram claramente a necessidade de maior prudência no uso dessa droga, tornando bastante evidente que, mesmo que ela venha a mostrar efeito no tratamento de determinada doença, quão importante é estabelecer, através de ensaios clínicos bem conduzidos, qual dosagem, extensão do tratamento, forma de administração utilizar.

Ensaios clínicos são fundamentais, pois, para que se torne possível uma prática médica responsável. Além disso, como os recursos necessários para realizar um ensaio clínico de boa qualidade são muitos, em termos da equipe necessária, das horas de trabalho, da logística e dos insumos materiais, ensaios pré-clínicos também são importantes, porque se evita que se dispenda muitos recursos na investigação de drogas com pouca chance de terem sucesso ou de serem seguros. Os ensaios pré-clínicos incluem estudos in vitro (em placas de cultura, tubos de ensaio etc.) e estudos em animais (os quais implicam uma série de aspectos éticos dos quais não poderei tratar nesse texto). No que diz respeito aos ensaios clínicos, uma vez que um medicamento tenha mostrado eficácia em doses seguras em ensaios pré-clínicos, a melhor opção é realizar ensaios clínicos controlados e randomizados (RCTs, randomized controlled trials), caso isso seja possível. Esses são ensaios nos quais terapias são comparadas com controles, como tratamento padrão ou placebo, e pacientes são alocados aleatoriamente nos grupos que receberão diferentes tratamentos.

Experiências anteriores em epidemias, por exemplo, as de Ebola, produziram um elevado nível de concordância na comunidade acadêmica de que pesquisa sólida, convincente, pode e deve ser feita mesmo durante emergências de saúde pública, bem como que RCTs constituem a abordagem mais ética e confiável para identificar-se rapidamente tratamentos efetivos e propiciar que a maioria das pessoas seja beneficiada, e não prejudicada, conforme requerido pelo princípio Primum non nocere.

A COVID-19 não estabelece qualquer exceção em relação aos princípios e ideias expressas acima. Não há dúvida de que qualquer pessoa racional deve compreender as dificuldades de fazer pesquisa sob enorme pressão para identificar rapidamente tratamentos efetivos para a doença e nas condições desafiadoras colocadas por instituições de saúde, como hospitais, superlotados, nos quais trabalhadores da saúde lutam contra uma doença nova e mortal, que afeta números muito grandes de pacientes e coloca a eles próprios em risco. No entanto, como escrevem Alexander e colaboradores, “essas circunstâncias infelizes e sem precedentes não transformam dados frágeis em resultados convincentes”. A despeito das dificuldades da crise atual, é importante dirigir os esforços na direção de RCTs bem planejados e éticos, prospectivos e não retrospectivos (ou seja, atuando no tratamento de pacientes, e não revisando tratamentos já feitos), e de larga escala, envolvendo múltiplos centros e grandes quantidades de pacientes em diversas regiões do mundo. Para além disso, diretrizes devem ser usadas no planejamento dos estudos clínicos, orientando o modo como serão recrutados pacientes, como será feita a randomização e o uso de duplo-cego, quais resultados do tratamento serão mensurados e como etc. Somente com tal padronização, a combinação do conhecimento obtidos em diferentes ensaios clínicos poderá ser feita com poder estatístico suficiente para estabelecer de modo convincente a efetividade e segurança de determinada profilaxia ou tratamento, ou para comparar a efetivamente de diferentes abordagens terapêuticas. Daí a importância de a OMS ter buscado ordenar a busca por tratamentos para a COVID-19, publicando orientações gerais para a condução de RCTs. A realização de estudos confiáveis se torna sine qua non quando vemos a evidência ser soterrada sob a veemência e a desinformação em virtude do forte movimento de algumas lideranças políticas na defesa de medicamentos para cuja efetividade e segurança não há evidência suficiente.

É preocupante ver na literatura sobre tratamento da COVID-19, a larga multiplicação de estudos observacionais, nos quais se investiga o efeito de uma droga ou de outra intervenção, sem manipulação ou intervenção. Apesar de fornecerem informação relevante e complementar àquela produzida por RCTs, esses estudos não fornecem evidência suficientemente confiável para a tomada de decisões sobre o tratamento de pacientes. A questão não é – que se entenda bem – que estudos observacionais não deveriam ser feitos, mas que eles têm ganhado precedência inclusive em situações nas quais isso não é suficientemente compreensível. Por exemplo, há estudos observacionais sobre tratamentos para COVID-19 que recrutaram grandes números de pacientes e, ainda assim, não utilizaram grupos controle, nem mesmo comparando o tratamento experimental com tratamento padrão (standard of care), uma vez que há questões éticas envolvidas no uso de placebo numa circunstância como a presente. Ademais, parece importante evitar a proliferação de estudos clínicos pequenos, sem poder estatístico suficiente para gerar qualquer conclusão sólida, ou estudos que apenas comparam duas intervenções terapêuticas distintas, sem utilizar controles. Ambas as situações têm ocorrido com frequência ao longo da pandemia.

Estudos observacionais são úteis, mas tendem a superestimar a contribuição de um tratamento. No caso da COVID-19, é importante não perder de vista que a maioria dos pacientes apresentam doença leve a moderada e, nesses casos, o tratamento padrão tenderá a aliviar os sintomas respiratórios e sinais vitais. Ademais, remissão espontânea da COVID-19 pode chegar a 90% dos casos ou mais. Como se poderia, então, alcançar conclusões sólidas acerca das contribuições de possíveis tratamentos numa doença com tais níveis de remissão espontânea sem o uso de amostras suficientemente grandes e grupos controle? A resposta é, simplesmente, que não se pode, com tal desenho experimental, chegar a qualquer conclusão convincente acerca da efetividade e segurança de uma dada intervenção terapêutica. Em tal desenho experimental, é um erro óbvio atribuir uma eventual cura aos efeitos do medicamento, ou resultados negativos à doença.

Da necessidade de “aprender fazendo” na crise da COVID-19

Contudo, ao pensar nas terapias para a COVID-19, é importante considerar como a pandemia abriga um conflito entre a pesquisa acadêmica nas ciências biomédicas e a prática da medicina clínica. Nesta última, médicos fazem uso não apenas de medicina baseada em evidência, mas também de tratamentos que por vezes não são baseados na evidência clínica mais rigorosa, mas em plausibilidade biológica, dados pré-clínicos ou evidência clínica limitada. Não é difícil apreciar como a opção por estes últimos tratamentos é incrementada numa situação como a da atual pandemia, para a qual não há ainda tratamento aprovado e poucos medicamentos gozam de evidência favorável mais sólida. Na altura em que escrevo esse texto, há somente dois medicamentos apoiados por evidências mais convincentes, para tratamento de doentes graves de COVID-19: dexametasona e remdesivir. Nos casos leves a moderados, por sua vez, não há ainda qualquer terapia bem apoiada. No entanto, é exatamente nestes últimos casos que a prescrição de drogas ainda carentes de evidência suficiente quanto à sua efetividade se torna menos recomendável, uma vez que os benefícios terapêuticos tendem a ser proporcionais à severidade do caso, enquanto os riscos de um dado tratamento tendem a ser relativamente mais constantes. Assim, a relação risco-benefício de um tratamento tende a ser menos favorável em casos mais leves do que em casos mais severos.

Reconhecer os dilemas envolvendo a pesquisa biomédica e a prática clínica em circunstâncias como as que hoje vivenciamos é muito diferente, pois, de uma defesa imprudente de terapias como se fossem balas mágicas, pílulas salvadoras, ignorando os riscos envolvidos no uso de tratamentos cuja efetividade e segurança não estão ainda suficientemente estabelecidas. Uma solução para esses dilemas não segue de uma negligência quanto à necessidade de evidência de alta qualidade para a recomendação mais confiável e eventual aprovação de abordagens profiláticas e terapêuticas da COVID-19. Para os clínicos, não é pequeno o desafio de fazer julgamentos e tomar decisões na ausência de evidência suficiente, malgrado o suporte dado por seu próprio conhecimento e experiência. Numa situação como esta, torna-se ainda mais fundamental considerar de maneira crítica, ponderada a evidência disponível, como base para avaliar os riscos e benefícios das opções feitas no tratamento de cada paciente. Tanto pesquisadores quanto trabalhadores da saúde devem ter a responsabilidade de se manter verdadeiramente informados, de pensar com clareza e de se comunicar com inteligência, evitando ser influenciados por, quanto mais comprometer-se com fake news e desinformação, tão frequentes na infodemia que anda lado a lado com a pandemia, menos ainda ser fontes de tal desinformação.

Recentemente Derek C. Angus publicou um artigo de opinião que remete ao dilema entre medicina clínica e pesquisa biomédica em contextos como o da crise atual. Ele trata esses dilemas em termos de um trade-off entre prospecção (exploration) e explotação (exploitation). A prospecção diz respeito a ações realizadas para gerar novos conhecimentos e diminuir a incerteza através de investigação, a uma opção por “dever aprender” (“must learn” option) a respeito de uma situação. Por sua vez, a explotação corresponde à ação com base no conhecimento, nos hábitos, nas crenças correntes, a despeito da incerteza, a uma opção por “fazer agora” (“just do it” option) o que parece necessário para enfrentar a situação. O conflito entre medicina clínica e pesquisa biomédica discutido acima resulta, em última análise, da interpretação dicotômica dessas duas opções: ou fazemos algo (tratamos o paciente) ou aprendemos algo (testamos o medicamento). Torna-se um desafio chave para os avanços na terapia da COVID-19, então, superar essa dicotomia, reconhecendo – como argumenta Angus – que trade-offs entre prospecção e explotação são, em geral, melhor resolvidos por uma estratégia que permite fazer e aprender ao mesmo tempo. E este não é o caso somente da medicina clínica, mas uma dificuldade que encontraremos em outros campos, a exemplo do trade-off entre aprender via pesquisa ecológica e atuar na tomada de decisão ambiental.

Se nos deslocarmos do conflito, da polarização entre fazer e aprender para uma integração entre ação e aprendizagem, poderemos ser capazes de maximizar tanto resultado de curto termo, por exemplo, aumentando as chances de recuperação de pacientes em estados mais graves, quanto de longo termo, avançando na descoberta, no teste rigoroso e na disseminação de novos tratamentos. Para além dos tempos excessivamente polarizados que vivemos, ou das atitudes negacionistas face à ciência ou mesmo ao conhecimento em termos mais gerais, a construção de uma abordagem integrada para fazer e simultaneamente aprender também é restringida pela organização institucional da pesquisa biomédica e dos cuidados à saúde. Cada uma dessas tarefas é feita separadamente, com a prática clínica (o fazer) e a pesquisa clínica (o aprender) ocorrendo mais frequentemente em instituições distintas, envolvendo diferentes agentes e procedimentos, e sendo também financiadas separadamente. Daí resulta que diferentes profissionais são prioritariamente responsáveis por cada um dos polos do trade-off, cada qual confiando em sua própria base de conhecimentos profissionais, critérios, métodos, práticas, e comprometidos com seus próprios valores e interesses. Esta é uma situação que alimenta o conflito entre prática clínica e pesquisa biomédica, potencializando o trade-off entre aprender e fazer. E não são baixos seus custos, na medida em que, de um lado, a aquisição e disseminação de conhecimento crucialmente importante se tornam mais lentas, e, de outro, pacientes são submetidos a tratamentos que podem exibir relações risco-benefício inaceitáveis na exata medida em que a pressão para “fazer algo” é amplificada.

Em tal situação, otimizar a relação entre fazer e aprender e, assim, negociar com sucesso o conflito entre medicina clínica e pesquisa biomédica se torna urgente. Para médicos clínicos e pesquisadores biomédicos, coloca-se a necessidade de integrar seus trabalhos e adaptar suas estratégias e abordagens uns aos outros. Três desafios para essa integração são identificados por Angus.

Primeiro, se de um lado a alocação aleatória de pacientes em diferentes grupos num ensaio clínico (randomização) é fundamental para estabelecer vínculos causais bem apoiados entre tratamentos e efeitos, essa randomização pode ser muito desconfortável na prática médica. É  verdade que um médico que simplesmente deseja prescrever uma droga a um paciente, em vez de aceitar uma alocação aleatória, pode não estar servindo ao melhor interesse de seu paciente, uma vez que a droga pode, ao fim e ao cabo, exibir uma relação ruim entre risco e benefício. Contudo, não se deve ignorar o profundo desconforto que pode ser vivenciado por médicos clínicos diante da alocação aleatória de pacientes, dada a angústia de lidar com uma pandemia como a que estamos atravessando. Este é um aspecto central dos dilemas mencionados acima: embora uma médica possa eventualmente reconhecer que a evidência a favor de determinado tratamento é incerta, ela ainda assim pode sentir-se compelida a prescrevê-lo, caso acredite que as chances de benefícios são maiores do que os riscos de prejuízos. Enquanto as consequências para o paciente por quem a médica é e se sente responsável podem ser imediatas e notáveis, os benefícios da aprendizagem a ser alcançada num ensaio clínico e as consequências do atraso na geração de conhecimentos necessários caso não sejam recrutados pacientes podem parecer, para ela, abstratas e remotas, difíceis de serem avaliadas e para além de suas responsabilidades.

É evidente, contudo, que há problemas com a inferência feita, uma vez que os resultados podem ser imediatos e notáveis também de uma maneira maléfica ao paciente, sendo a inferência colocada em xeque diante dos princípios In dubio abstine and Primum non nocere. Além disso, se o medicamento não traz prejuízo mas também não traz benefício, podemos dessa maneira perder a oportunidade de aprender, mantendo-se a prescrição de um medicamento sem efetividade, enquanto outras drogas não são consideradas ou testadas. A solução, portanto, não é confiar simplesmente em inferências que, mesmo mal apoiadas, tragam alívio à pressão cotidiana sofrida pelos trabalhadores da saúde, mas, antes, incorporar não somente sua angústia e urgência, mas também – e especialmente – seus conhecimentos e suas práticas no planejamento e na execução de ensaios clínicos que busquem um compromisso entre aprender e fazer. Trabalho colaborativo e integrado entre médicos clínicos e pesquisadores biomédicos pode propiciar uma plataforma para acomodar suas diferentes demandas, conhecimentos e práticas.

Um segundo desafio diz respeito ao fato de que, quando um ensaio clínico é implementado, as atividades necessárias para sua execução incluem muitos passos que interferem nos procedimentos clínicos e desviam a atenção das médicas de outras ações clínicas importantes. Portanto, um ensaio planejado de modo a integrar-se mais facilmente à prática clínica será mais atraente para médicas que desejem colaborar com a pesquisa clínica, favorecendo a integração de fazer e aprender.

Um terceiro desafio reside na dificuldade de estabelecer um plano unificado, devido ao caos que se instalou na realização de ensaios clínicos durante a pandemia. Há tantos testes de possíveis medicamentos para tratar a COVID-19 em andamento que é fácil concordar com os muitos apelos a uma maior coordenação entre os estudos. Médicos e hospitais, que já estão sobrecarregados pela própria pandemia, sofrem pressão adicional devido às muitas solicitações para participação em ensaios clínicos. O resultado são ensaios clínicos competindo uns com os outros por financiamento e recrutamento de pacientes, entre outros aspectos. Há, além disso, um conflito em andamento entre ideias rivais sobre quais terapias deveriam ser testadas e quais abordagens seriam mais apropriadas para a realização dos ensaios, às vezes com a discussão chegando a uma defesa de flexibilização da metodologia que pode mostrar-se excessiva, trazendo riscos de que sejam produzidas evidências sem utilidade ou que conduzam a equívocos. Em circunstâncias tão fragmentadas, é improvável que se consiga a integração entre pesquisa e prática clínicas que tornaria possível aprender e fazer ao mesmo tempo.

Não obstante esses desafios, podemos testemunhar no cenário da pesquisa sobre a COVID-19 avanços na direção de uma otimização da relação entre aprender e fazer. À guisa de exemplo, o ensaio clínico SOLIDARITY, coordenado pela OMS, caminha na direção de uma maior integração entre aprender e fazer. Este é um grande ensaio clínico multicêntrico, randomizado, utilizando uma abordagem pragmática e adaptativa, que está sendo realizado em 13 países (incluindo o Brasil), envolvendo milhares de pacientes. Um ensaio “pragmático” busca mimetizar, ao máximo possível, as condições reais das populações alvo e dos contextos clínicos, sendo planejado para dar conta das necessidades de tomadores de decisão sobre a saúde (por exemplo, gestores públicos) e o tratamento clínico (por exemplo, médicos). Num ensaio “adaptativo”, pode-se interromper o teste de drogas que mostram, ao longo do ensaio, falta de efetividade ou trazem preocupações importantes quanto à sua segurança, assim como pode-se adicionar novos medicamentos que pareçam promissores. Inicialmente, foi proposto o teste de quatro tratamentos potenciais no ensaio SOLIDARITY, todos em comparação com tratamento padrão (no grupo controle): remdesivir; lopinavir e ritonavir + interferon-β; apenas lopinavir e ritonavir; e cloroquina/hidroxicloroquina. Em virtude de seu desenho adaptativo, os dois últimos tratamentos foram descontinuados nesse ensaio.

O ensaio SOLIDARITY foi planejado para ser tão simples e rápido quanto possível, mas ainda assim produzir evidência confiável, ajustando suas estratégias e abordagens às condições de funcionamento de instituições de saúde e às práticas da medicina clínica. Por essa razão, ele não foi planejado como um ensaio de duplo-cego, de modo a alcançar um equilíbrio entre o rigor da pesquisa clínica e a necessidade de respostas rápidas e possíveis de serem alcançadas nas circunstâncias objetivas tanto de países de alta quanto de média e baixa renda. Tem sido previsto que esse ensaio clínico será capaz de diminuir o tempo necessário para avaliar os resultados dos tratamentos em teste em até 80%, em comparação a RCTs típicos. Para usar uma metáfora de Angus, ensaios clínicos como o SOLIDARITY armam uma grande tenda internacional e incorporam a liderança e o compromisso que podem nutrir um ambiente integrado, no qual se possa, assim se espera, aprender fazendo com sucesso. Nesses tempos de irracionalidade galopante, esta já é, em si, uma notícia a ser comemorada.

Charbel N. El-Hani

(Instituto de Biologia/UFBA)

PARA SABER MAIS

Angus, D. C. (2020). Optimizing the trade-off between learning and doing in a pandemic. JAMA 323(19): 1895-1896.

Cañás, M. & Urtasun, M. A. (2020). La evidencia en tiempos de coronavirus (COVID-19). Revista Evidencia 23(2): e002057.

Goodman, J. L. & Borio, L. (2020). Finding effective treatments for COVID-19: scientific integrity and public confidence in a time of crisis. JAMA 323(19): 1899-1900.

London, A. J., Omotade, O. O., Mello, M. M. & Keusch, G. T. (2018). Ethics of randomized trials in a public health emergency. PLOS Neglected Tropical Diseases 12(5): e0006313.

Vijayvargiya, P., Garrigos, Z. E., Almeida, N. E. C., Gurram, P. R., Stevens, R. W. & Razonable, R. R. (2020). Treatment considerations for COVID-19: a critical review of the evidence (or lack thereof). Mayo Clinic Proceedings 95(7): 1454-1466.

Imagem de abertura:

https://en.unesco.org/covid19/educationresponse/learningneverstops

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