Glória a Darwin nas alturas

Gostaria de falar hoje para aqueles que abraçam a ciência, aqueles que entendem que a ciência é fonte de crescimento econômico. Gostaria de falar para aqueles mais exigentes, que raciocinam em seu dia a dia, que buscam fundamento em fatos, experimentos, na história, na análise criteriosa. Isso inclui todas as ciências humanas, exatas e biológicas, toda a filosofia e a epistemologia, e todas as pessoas instruídas e de bom senso: é muita gente. Quero falar com pessoas razoáveis e inteligentes, porque não quero aqui ficar defendendo o óbvio, não quero ter que me postar a defender Darwin quase dois séculos depois de ele ter convencido a humanidade de que a vida é uma grande árvore de parentescos. Quero sim é honrar Darwin, e nada melhor para honrá-lo que desafiá-lo permanentemente, pois é assim que a ciência funciona.

O pilar central da teoria evolutiva é a seleção natural. Spencer cunhou a expressão “a sobrevivência do mais forte”, adotada por Darwin. Muitos esquecem, no entanto, que Spencer e Darwin tinham visões distintas sobre o significado de seleção natural. Para Darwin, a seleção natural é principalmente um processo que atua lentamente através de gerações sucessivas. Para que esta seleção natural darwiniana funcione, deve haver uma população de indivíduos que variem entre si com relação a uma característica (indivíduos com miopia ao lado de indivíduos com hipermetropia), devem existir mutações aleatórias nesta característica (olhos mutantes com astigmatismo ou visão normal), e deve haver herança desta característica (filhos devem herdar dos pais tais características da visão). Assim, as características mais aptas (os melhores olhos) vão se fixando por seleção natural, que vai gradualmente criando as adaptações a partir de uma massa de variações inicialmente amorfa, como um artista que cria da pedra amorfa as mais perfeitas esculturas. Ao focar na capacidade criativa da seleção natural, muitos darwinistas insistiam que características isoladas, como um olho, uma asa, ou uma garra, evoluiriam cada uma delas para um funcionamento perfeito: para uma melhor visão, para um voo ou uma captura cada vez mais eficazes. O que evolui nesta perspectiva são as partes do corpo. Para entender isso melhor, imagine cada parte do corpo como uma das cartas de um baralho, algumas mais rotas, outras riscadas, outras ainda em perfeito estado. Um indivíduo é um baralho completo, e há muitos indivíduos formando uma população de baralhos. Quando um indivíduo se reproduz, seu filho é uma mistura do pai e da mãe: é como se gerássemos um novo baralho (o filho), escolhendo dentre as cartas do baralho pai e do baralho mãe, só que o filho pode também conter cartas novas (mutações), que diferem das de seus pais. Como todos da população se reproduzem normalmente, temos um grande embaralhamento acontecendo a cada geração, e a seleção natural vai escolhendo, geração após geração, sempre as partes do corpo (cartas) que melhor desempenham sua função. Assim, como as melhores mutações (as melhores cartas) favorecem a sobrevivência, ao final de sucessivos embaralhamentos as características serão perfeitas: não haverá mais cartas rotas ou marcadas na população.

Já para Spencer, é o indivíduo, e não uma população amorfa, que é o foco da seleção. Se eu digo que me adaptei a uma nova situação, estou usando a palavra adaptação da forma que Spencer a usava. Ao invés de focar, como muitos darwinistas da síntese moderna, em características isoladas, como um olho, uma asa, ou uma garra, Spencer acreditava que a integração entre as várias partes de um organismo era o principal desafio para a sobrevivência. Para continuar na metáfora do baralho, podemos dizer que para Spencer o fundamental não é ter cartas perfeitas sem marcas ou riscos: o mais importante é termos uma boa cartada, é termos na mão o zap e o sete de copas (para os truqueiros), ou uma quadra de ases (para quem joga pôquer), ou uma sequência de ás a rei (para quem gosta de buraco). A qualidade de cada carta (cada parte do corpo) é menos relevante, pois é o conjunto (a quadra de ases, mesmo que o ás de copas esteja meio riscado) que dirá se o indivíduo será o mais apto (vencerá) na luta pela sobrevivência. Para Spencer, a seleção natural escolhe as melhores cartadas, não as melhores cartas: os melhores indivíduos, não os melhores caracteres.

Estas diferentes concepções de seleção natural foram exploradas em texto recente por David Depew, que mostra que Darwin inclusive se arrepende, em cartas, por não ter dado o devido valor a esta visão de Spencer que coloca o indivíduo, e não apenas a população, no foco do processo evolutivo. Estaria Depew dizendo então que o indivíduo evolui? Não, nada disso. O que evolui é a espécie: o ponto de Depew é que o indivíduo pode ser ativo, pode se ajustar ao ambiente, pode mudar o ambiente. O indivíduo não é apenas selecionado, ele seleciona, ele tem um papel no processo evolutivo, pois ele cria através de suas atividades o material sobre o qual a seleção natural poderá trabalhar. Este ponto é fundamental. Para que a seleção natural seja a força criativa (a artista) do processo evolutivo, as mutações, as novas variações, devem ser aleatórias. Se as mutações são aleatórias, burras, se os variantes atiram para todos os lados e portanto não visam atingir alvo algum, não visam resolver o problema biológico (enxergar melhor, capturar melhor, etc.), e se mesmo sendo assim aleatórias as variações, após inúmeras gerações os sobreviventes acertam o alvo sistematicamente, ou seja, após inúmeras gerações uma solução otimizada para o problema surgiu (olhos que evoluíram para enxergar melhor), repito, se os indivíduos não sabem o que fazem mas ao final da seleção natural todos acertam a resposta, a força criadora não está nos indivíduos, e sim na própria seleção natural, que seria de fato a criadora das adaptações, a artífice deste processo evolutivo. Agora, se os variantes não são aleatórios, se os variantes já estão ativamente resolvendo os problemas biológicos novos da melhor maneira possível (estão todos já de cara tentando acertar o alvo), então não é a seleção natural que está criando as soluções, pois os próprios indivíduos que já estão adaptados. Neste caso são os indivíduos que criam as soluções: seja por tentativa e erro, seja por aprendizagem social, os indivíduos encontram boas soluções para o problema adaptativo, e são sobre soluções já razoáveis que a seleção natural vai finalmente trabalhar.

Sei que muitos biólogos vão querer brigar comigo. Poxa, deu tanto trabalho fazer as pessoas entenderem que a seleção natural é a força criadora da evolução, que não há nenhum outro criador inteligente, e vem você agora querer, literalmente, embaralhar novamente as ideias? Entendo perfeitamente esta preocupação. Entendo, curto, e compartilho. Mas … a evolução precisa evoluir. As pessoas instruídas já são capazes de entender que pode haver criação sem um criador divino. A biologia venceu esta batalha, apesar de haver bebês chorões esperneando ainda por aí. Como disse no início, não estou escrevendo aqui para pessoas que defendem absurdos como a terra plana, o negacionismo do clima, o desígnio inteligente, a leitura direta (“sem interpretação”) das escrituras sagradas, ou seja, não estou buscando falar com gente que nega a ciência no facebook pela manhã, e pela tarde vai à sua consulta médica, para resolver cientificamente seus problemas de saúde. Estou me dirigindo aqui a pessoas que entenderam a revolução que aconteceu lá atrás no século XVII, gente que sabe que só lançamos foguetes e manipulamos genes graças às ciências (humanas, exatas, biológicas, todas elas). A estas pessoas sensatas pergunto: como fazer a biologia avançar?

Acho que os evolucionistas precisam abandonar a metáfora da chave e da fechadura. Explico. Frequentemente, ao explicar seleção natural, dizemos que o ambiente é uma fechadura, e os organismos vão lentamente evoluindo até encontrarem a chave que abre a porta e resolve aquele problema biológico específico. A adaptação (a carta no baralho, na metáfora explorada acima) seria uma chave que lentamente evolui para abrir a fechadura (p.ex., capturar o alimento). Falamos isso, porque entendemos que existe uma chave ideal para abrir aquela fechadura. No entanto, na natureza, chave e fechadura se co-determinam. As propriedades do ambiente estão conectadas às propriedades dos organismos que nele vivem primeiramente em um sentido bem direto, dado que os organismos constróem ou modificam seu próprio ambiente seletivo. Em um sentido mais refinado, sabemos que não compartilhamos todos um mesmo ambiente efetivo. Cada espécie animal vive em um bolha perceptual, e realça do ambiente algumas propriedades. Se cada espécie vive em um ambiente efetivo diferente, qual é este ambiente externo que está selecionando todas as espécies? Se são os organismos que criam inteligentemente seu ambiente seletivo, onde está esse ambiente externo aos organismos, onde está esta fechadura que não se molda, estas pressões seletivas que não são selecionadas? As relações entre organismo e ambiente precisam ser reformuladas, e quando encontrarmos uma formulação adequada para o entrecruzamento entre ontogenia e evolução, entre aprendizagem e pressão seletiva, a ideia atual de seleção natural estará ultrapassada: mas ainda assim permaneceremos todos evolucionistas.

Hilton Japyassú (UFBA)

Para saber mais:

Depew, DJ (2017). Natural selection, adaptation, and the recovery of development (pp.37-67). In: Huneman, P. & Walsh, DM. (2017). Challenging the modern synthesis: adaptation, development, and inheritance. Oxford: Oxford University Press.

Pocheville, A. & Danchin, É. (2017). Genetic assimilation and the paradox of blind variation (pp. 111-136). In: Huneman, P. & Walsh, DM. (2017). Challenging the modern synthesis: adaptation, development, and inheritance. Oxford: Oxford University Press.

Love, AC. (2017). Evo-devo and the structure(s) of evolutionary theory (pp. 159-187). In: Huneman, P. & Walsh, DM. (2017). Challenging the modern synthesis: adaptation, development, and inheritance. Oxford: Oxford University Press.

Imagem produzida por ocasião do aniversário de 135 anos da morte de Charles Darwin.

Falta diversidade no estudo da genética humana

O estudo das bases genéticas de doenças humanas tem se concentrado em populações de origem europeia. Esse foco estreito deixa de fora grande parcela da humanidade. Isso enfraquece a nossa compreensão sobre a base genética de doenças humanas. É preciso injetar diversidade no estudo da genômica humana.

O nosso conhecimento sobre a genética humana aumentou vertiginosamente nas últimas décadas. Grande parte dessa transformação deve-se à possibilidade de gerar dados para genomas inteiros, algo cada vez mais barato e feito em amostras progressivamente maiores, muitas vezes envolvendo milhares de indivíduos.

O que aprendemos de novo? Os estudos genômicos permitiram identificar  variantes genéticas que estão associadas a traços de interesse, como por exemplo uma maior predisposição a doenças. Para alcançar tal conhecimento, a estratégia mais usada é a da “análise de associação genômica ampla” (do inglês genome-wide association analysis, abreviado por GWAS). Essa análise consiste em comparar genomas de dois grupos, um com a doença (os “casos”) e outro sem (os “controles”). Se houver uma variante genética que é muito mais comum nos casos do que nos controles, dizemos que ela está “associada” com a doença. Essa associação é um achado estatístico, mas não necessariamente implica que a variante encontrada é “causal”, no sentido de afetar uma função de um modo que explica a doença. Para se inferir se uma mutação tem um efeito causal sobre uma doença são necessários estudos adicionais, comparando o funcionamento da variante genética nos indivíduos com e sem a doença. Continue Lendo “Falta diversidade no estudo da genética humana”

A fonte da juventude

Cientistas apresentam terapia capaz de reverter o relógio biológico em nove voluntários saudáveis.

No início desse ano, li um livro intitulado “Juventude eterna, pra quem?”, escrito por uma amiga de longa data, Maria Falcão. A história começa no ano de 2112, e busca, através da ficção científica, discutir algumas das implicações da incansável busca humana pela juventude eterna. O livro narra as diferentes perspectivas dos personagens envolvidos em um experimento revolucionário: o implante de um chip capaz de parar o processo de envelhecimento, resultando assim na juventude eterna. Não vou entrar em mais detalhes da história, caso vocês se interessem pela leitura, mas uma pergunta inquietante que permeia o livro ficou comigo até hoje, ainda sem resposta: caso tivéssemos acesso a um dispositivo capaz de barrar o envelhecimento, tal qual o chip descrito no livro, o que eu faria? Optaria pela juventude eterna? Continue Lendo “A fonte da juventude”

As duas origens do sistema nervoso

O movimento dos animais depende de células musculares conectadas por tendões ao esqueleto, ou pele, e de neurônios que as coordenam através de impulsos elétricos. Esses dois tipos celulares permitem toda a variedade de comportamentos que reconhecemos como tipicamente animais, desde rastejar a escrever estas linhas. Para a surpresa dos zoólogos, trabalhos recentes indicam que neurônios e células musculares evoluíram duas vezes, independentemente. Continue Lendo “As duas origens do sistema nervoso”