Doenças e adaptação ao meio. O que o organismo faz para restabelecer a própria saúde?

As doenças são fenômenos comuns a todos os seres vivos. Quando elas se apresentam, o organismo mobiliza mecanismos internos que podem permitir manter uma adequada interação com o meio. Nesse sentido, ser saudável não significa só possuir um corpo saudável, mas também sentir-se bem quando agimos num meio socioambiental.

Um médico curando um peixe. Uma parodia de Esther Aarts, disponível em: https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2019/05/pharmaceutical-pollution/586006/

Um fato muito comum na vida dos seres vivos é que eles, às vezes, ficam doentes. Quando as doenças se apresentam, o organismo, por exemplo, o organismo humano, reage com mecanismos fisiológicos que, para remediar eficazmente a condição patológica, tentam ajustar o estado interno ao contexto ambiental externo. Isso permite que o individuo se sinta no melhor estado de saúde possível quando tiver de se relacionar novamente com este contexto.

Tomemos o exemplo de uma doença ocular chamada de “hemianopsia”. Nos casos em que esta doença se apresenta, a hemianopsia envolve a perda da metade do campo visual do sujeito. Uma completa hemianopsia direita, como aponta, por exemplo, David Hubel, implica o escurecimento do centro do campo visual: é como se, observando a palavra “céu” e tentando se concentrar no “é”, não se pudesse ver o “u”, mas apenas o “c” e o lado esquerdo do “e”.

Um aspecto interessante dos mecanismos regulatórios que podem ser observados quando esta doença surge foi salientado pelo filósofo da medicina francês Georges Canguilhem em “Visão como modelo do conhecimento”, um manuscrito inédito de 1956-57 que pode ser consultado, junto com outros textos inéditos de Canguilhem, na École Normale Supérieure de Paris.

Canguilhem salienta que, apesar da doença de que sofrem e, por conseguinte, do escurecimento total da parte central de seu campo visual, vários pacientes hemianópicos parecem não perceber nenhuma sensação de cegueira quando interagem com um interlocutor ou com os objetos externos.

Na verdade, um dos comportamentos típicos dos pacientes afetados por hemianopsia é o seguinte: ao invés de manter um olhar reto quando observam um objeto ou um interlocutor, eles olham de lado, mantendo a cabeça levemente reclinada. Nos sujeitos saudáveis, umas das partes do olho que permitem a visão se chama de fóvea. Como nos sujeitos hemianópicos a ação da fóvea está comprometida, o que se observa é que, em seus olhos, cria-se muitas vezes uma outra fóvea na metade intacta da retina, isto é, uma espécie de “nova fóvea”, que substitui a ação da fóvea danificada. Esta nova fóvea responde às necessidades do sujeito de focalizar os objetos externos ao seu redor. E o que é importante destacar é que a posição dela não é fixa, não é estática dentro da retina, mas muda de acordo com as necessidades e as intenções do sujeito, dependendo do ponto no espaço exterior que ele quer observar. Em suma, para restabelecer um certo estado de saúde, o organismo em questão lida com a patologia através de mecanismos fisiológicos que reorganizam os componentes orgânicos da retina, e isso a fim de manter, mesmo em condições anatomicamente anormais, uma interação eficaz com o contexto exterior.

São, portanto, o ambiente e a forma como um organismo específico interage com ele o que determina, entre outras coisas, os processos de adaptação e o estado de saúde dos organismos.

Estes argumentos de Canguilhem são similares a algumas teorias recentes da filosofia da biologia e da medicina, por exemplo, as teorias de Cristian Saborido e colaboradores sobre a mau-função orgânica. Saborido e colaboradores apontam que estabelecer o que é patológico num organismo, isto é, o que é uma “mau-função”, não deriva meramente de um cálculo estatístico, ou de uma simples observação dos estados fisiológicos do organismo. Estabelecer a existência de uma mau-função num paciente significa avaliar a relação concreta entre o organismo em questão e seu meio socioambiental. Por exemplo, uma síndrome de Gilbert não envolve nenhuma mau-função naqueles pacientes que se sentem saudáveis, na medida em que eles não percebem obstáculos durante as próprias atividades diárias (como sensações de cansaço), apesar de um aumento excessivo ou descontrolado da bilirrubina, um pigmento contido na bílis. Por um lado, a mau-função é algo objetivamente relacionado com a fisiologia de um organismo. Mas, por outro lado, se o organismo não perceber nenhum obstáculo durante sua interação com o contexto externo, pode-se dizer que ele não apresenta mau-funções e, por conseguinte, que ele é saudável.

Isso se deve àqueles mecanismos internos de regulação adaptativa aos quais Canguilhem também fazia referência. No caso da síndrome de Gilbert, estes mecanismos podem compensar com sucesso um excesso de bilirrubina, razão pela qual o sujeito se sente saudável durante sua interação com o meio. Em termos gerais, quando as condições ambientais mudam, o sistema adaptativo do organismo desencadeia ações para modular adequadamente o seu funcionamento. Neste caso, pode-se falar de regulação adaptativa, que é desencadeada pela forma como um ser vivo específico interage concretamente com um meio. Isso também é análogo ao que Canguilhem salientava relativamente ao processo generativo da “nova fóvea” que se desenvolve nos sujeitos hemianópicos. Para Canguilhem, com efeito, este tipo de fóvea surge (também) das necessidades ou intenções especificas de um indivíduo em um meio determinado, permitindo a este indivíduo agir adequadamente no meio e, assim, fazendo-o sentir-se saudável.

Ser saudável, como nos dizem os filósofos da medicina Canguilhem e Saborido, não significa apenas ter um corpo fisiologicamente saudável. Um corpo saudável previne tanto quanto possível a ocorrência de doenças, mas quando elas acontecem, o organismo desenvolve reações adaptativas internas que podem permitir manter uma interação adequada com o ambiente. Em resumo, ser saudável significa também sentir-se saudável.

Emiliano Sfara

(Pós-doutorando, Instituto de Biologia/UFBA)

PARA SABER MAIS:

Canguilhem, G. (1956-57) La vision comme modèle de la connaissance. Este manuscrito pode ser consultado no CAPHÉS (Centre d’Archives en Philosophie, Histoire et Édition des Sciences) em Paris, colocação: GC. 13. 2.

Canguilhem, G. (1966), O normal e o patológico, trad. port. 2009, Forense Universitária, Rio de Janeiro.

Hubel, D. (1988). Eye, brain and vision, New York, W. H. Freeman & Co.

Saborido, C. et al. (2016). Organizational malfunctions and the notions of Health and Disease. In Giroux (ed.), Naturalism in the Philosophy of Health, History, Philosophy and Theory of the Life Sciences, 17, 101-120.

Saborido, C. (2012). Funcionalidad y organización en biología. Reformulación del concepto de función biológica desde una perspectiva organizacional. Tese de doutorado. University of the Basque Country.