Lenta e hesitantemente passamos a admitir que plantas aprendem. Elas se habituam a estímulos inofensivos, de forma semelhante a nós mesmos, que paramos de prestar atenção a um ruído intermitente que não nos afeta em nada, e isto caracteriza um tipo óbvio, embora simples, de aprendizagem. Mais que isso, no entanto, elas são capazes de se comunicar umas com as outras, informando a suas colegas ao lado que estão sendo, por exemplo, comidas por uma infestação de lagartas, o que faz com que suas vizinhas passem a produzir substâncias defensivas em suas folhas, tornando-as tóxicas ou impalatáveis às lagartas. Elas também passam às suas vizinhas substâncias nutritivas através de uma rede de fungos no subsolo que conectam as raízes de uma planta às de outra, e se antecipam à bonança de nutrientes no solo, produzindo raízes em locais ainda ruins, mas promissores, locais nos quais esteja havendo gradual melhoria na qualidade do solo. Toda esta complexidade, que a ciência está apenas começando a compreender, parece desafiar nosso entendimento do que vem a ser a própria cognição. Afinal, plantas pensam? Elas se comunicam, trocando figurinhas umas com as outras, e aprendem com isso? Se a resposta for francamente positiva, ficamos cada vez mais tentados a dizer que plantas, apesar de não possuirem um sistema nervoso, seriam inteligentes, e se isso é verdade, o que seria afinal uma cognição assim tão ampliada?
Inteligência fora do mundo animal não se restringe a plantas. Há múltiplos exemplos curiosíssimos de respostas inteligentes em organismos muito simples. Bactérias se deslocam em direção a uma concentração crescente de alimento; redes interligadas de amebas podem resolver problemas complexos, como escolher uma dieta balanceada a partir de múltiplas fontes simultâneas e heterogêneas de alimento, ou até mesmo encontrar saídas em labirintos. Coletividades geniais também são comuns em espécies de pequenos invertebrados sociais: o formigueiro é frequentemente mais racional que as formigas que o compõem e, além disso, ele consegue escolher as melhores e mais próximas fontes de alimento mesmo quando individualmente as formigas não tenham feito escolha alguma.
Muito se tem discutido sobre o que significariam estes surpreendentes feitos cognitivos em coletividades de minúsculos animais ou microorganismos, e o que eles têm a nos ensinar sobre a nossa própria inteligência. Há cerca de um mês um grupo de autores defendeu que estes casos configuram o que eles chamaram de cérebros líquidos. Ao contrário dos cérebros normais, nos quais os componentes (neurônios) são como pontes fixas por onde trafegam impulsos nervosos móveis, os cérebros líquidos se caracterizariam por ter componentes móveis (amebas, formigas, abelhas) que transportam a informação de um lado para o outro do sistema (ou seja, a rede de amebas, o formigueiro, a colmeia). Assim, cérebros líquidos seriam aglomerados organizados de indivíduos que se comunicam uns com os outros, e que resolvem problemas complexos (balancear a dieta, navegar em um labirinto, encontrar alimento) ao atuar como grupos organizados. A ideia destes autores seria avaliar que tipo de computação é melhor desempenhada por um cérebro líquido (com componentes móveis), e que tipo de problemas são melhor resolvidos por cérebros sólidos tradicionais (como o seu ou o meu), e de quebra investigar se não haveria por aí, mundo afora, outros ainda desconhecidos tipos de arquitetura mental, que não fosse nem sólida, nem líquida. Quem sabe não existam também cérebros vaporosos, ou talvez gelatinas inteligentes? Brincadeiras à parte, o fato é que a ideia de cérebros líquidos realmente está abrindo o caminho para visões alternativas acerca da cognição.
Por exemplo, há alguns poucos anos um cientista da computação britânico, Richard Watson, demonstrou in silico (quer dizer, em simulações computacionais) que um ecossistema teria capacidades análogas àquilo que denominamos aprendizagem. O quê? Já não bastavam as plantas, agora você vem aqui de cara lavada dizer que a Mata Atlântica aprende? Então me diga aí, vai: quem é mais inteligente, a Mata Atlântica ou a Caatinga? E então porque raios a Mata Atlântica ainda não aprendeu a evitar os seres humanos, que há mais de quinhentos anos vêm tentando sem sucesso extingui-la por completo? Não, definitivamente os ecossistemas não parecem lá muito sábios, e esta ideia é para lá de estapafúrdia. Realmente a ideia parece estranha, mas em vista da cognição coletiva de formigueiros esta estranheza toda pode começar a se transformar em dúvida. Então, em que sentido seria válida a comparação entre os processos ligados à aprendizagem em cérebros sólidos tradicionais, como o seu e o meu, e aqueles ligados à aprendizagem in silico, nos cérebros líquidos da Mata Atlântica?
Primeiramente vamos aos resultados da equipe de Richard Watson. Ele construiu redes de neurônios virtuais que eram capazes de tarefas de aprendizagem relativamente simples e comuns nos dias de hoje, tais como reconhecer as digitais de um indivíduo, reconhecer o dono da conta bancária através de imagens de sua retina, reconhecer a face de um indivíduo mesmo em uma foto nublada, etc. Vivemos hoje em um mundo onde máquinas virtuais estão rodando algoritmos, programas de computador com capacidades cada vez mais surpreendentes de aprendizagem. Outro dia, comemorando o 334o aniversário do nascimento de Johann Sebastian Bach, o grande músico do barroco alemão, o Google® colocou em sua tradicional página de busca um teclado musical no qual podíamos digitar as notas que bem quiséssemos; ao terminar nossa “composição”, o programa de computador do Google nos brindava com um arranjo completo de nossa composição no estilo inconfundível de Bach, com direito a escolher entre allegro, andante, adagio, entre outros andamentos musicais. Haja inteligência artificial para me transformar em um Bach da música! Pois bem, Watson apenas programou estas capacidades de aprendizagem em redes neurais artificiais. Mas programou também um outro modelo, o de um ecossistema virtual com quatrocentas espécies interagindo entre si, competindo por recursos que tinham uma determinada distribuição pré-estabelecida no espaço. Evoluindo a comunidade de 400 espécies virtuais, Watson percebeu que as espécies passam a ter a mesma distribuição que a distribuição inicial, pré-estabelecida, dos recursos (do alimento). Nada novo aqui: as espécies, até mesmo as virtuais, vão atrás do alimento, e comunidades evoluídas sob uma distribuição agregada de recursos (poucos lugares com muito alimento, e muitos lugares com pouco alimento), passam a ter também uma distribuição agregada de suas interações ecológicas (passam a viver próximas umas das outras). Agora vem o detalhe importante desta pesquisa. Ao expor esta comunidade de 400 espécies, que evoluiu para uma forma de vida agregada, a uma nova distribuição de recursos (por exemplo, a recursos agora uniformemente distribuídos no ambiente), a comunidade continuava a apresentar um padrão de distribuição agregada, mostrando ter uma memória da original distribuição agregada de recursos. Vou repetir: o ecossistema apresentou memória. Isto é muito, muito estranho, quando dito assim desta maneira nua e crua. Agora vamos tentar entender o resultado. Quando as 400 espécies foram selecionadas (evoluíram) sob uma distribuição agregada de recursos, estas espécies, forçadas a conviverem entre si nas manchas esparsas de recursos, evoluíram interações preferenciais umas com as outras, algumas em simbiose, outras em comensalismo, outras com formas mais indiretas de partição de recursos; enfim, evoluíram uma gama de interações que sustentava aquela comunidade em uma configuração agregada e ótima. Após evoluir por centenas de gerações, após fixar-se no cérebro de cada uma das espécies um conjunto de interações preferenciais, fica difícil modificar estas preferências. Assim, quando oferecemos uma distribuição de recursos inteiramente nova (homogênea) a uma comunidade previamente adaptada a uma vida agregada, em um primeiro momento suas espécies basicamente continuam a reproduzir as interações ótimas (agregadas) que foram selecionadas no passado evolutivo recente. Como cada espécie tem uma memória de suas preferências, o ecossistema como um todo continua a funcionar como antes, apesar da mudança nos recursos alimentares. Há uma inércia no sistema ecológico, e esta inércia é fruto das memórias entrelaçadas das diversas espécies do sistema.
Pois bem, o que será que podemos concluir deste conjunto de pesquisas? Florestas aprendem? Ecossistemas são inteligentes? Acho que a resposta mais cautelosa deve ser: é possível que sim, é possível que ecossistemas sejam cérebros líquidos. É possível porque simulações com espécies virtuais mostram que isto pode acontecer. Mas ao mesmo tempo temos que ser cautelosos porque nem tudo que pode acontecer acontece. As simulações, os modelos mostram expectativas não apenas plausíveis, mas acima de tudo lógicas e altamente prováveis, e farão previsões corretas quando colocamos em nossos modelos premissas corretas e relações causais fundamentais, mimetizando adequadamente as principais dependências presentes nos sistemas reais, naturais. É por isso que a ciência não vive apenas de modelos ou de teorias: ela precisa de testes empíricos, de observações advindas do mundo real, para que nos certifiquemos de que aprendemos, com nossos modelos teóricos, acerca de aspectos fundamentais do mundo natural. As previsões dos modelos devem se materializar parcial ou integralmente em observações concretas de um mundo real.
De uma coisa podemos ter certeza: se plantas e animais aprendem, e se aprendem com as interações recíprocas que vivenciam na paisagem ecológica, os ecossistemas não se ajustam apenas no longo tempo evolutivo, pois têm através da aprendizagem um ajuste fino, uma capacidade de alteração rápida e recíproca, que os torna cada vez mais reativos, cada vez mais vivos. Quem viver, verá.
Universidade Federal da Bahia
Para saber mais
Abramson, C. I., & Chicas-Mosier, A. M. (2016). Learning in plants: lessons from Mimosa pudica. Frontiers in psychology, 7, 417.
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Dussutour, A., Latty, T., Beekman, M., & Simpson, S. J. (2010). Amoeboid organism solves complex nutritional challenges. Proceedings of the National Academy of Sciences, 107(10), 4607-4611.
Gagliano M, Renton M, Depczynski M, Mancuso S (2014) Experience teaches plants to learn faster and forget slower in environments where it matters. Oecologia 175:63–72
Gagliano, M., Abramson, C. I., & Depczynski, M. (2018). Plants learn and remember: lets get used to it. Oecologia, 186(1), 29-31.
Power, D. A., Watson, R. A., Szathmáry, E., Mills, R., Powers, S. T., Doncaster, C. P., & Czapp, B. (2015). What can ecosystems learn? Expanding evolutionary ecology with learning theory. Biology direct, 10(1), 69.
Shemesh, H., Arbiv, A., Gersani, M., Ovadia, O., & Novoplansky, A. (2010). The effects of nutrient dynamics on root patch choice. Plos One, 5(5), e10824.
Solé, R., Moses, M., & Forrest, S. (2019). Liquid brains, solid brains
Imagem repassada a partir do sítio https://www.biology-questions-and-answers.com/the-ecosystem.html
Muito bom o texto e o tema super interessante. Parabêns Hilton!
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