As cobras também cospem!

Estudo publicado essa semana na revista Science sugere que a capacidade de cuspir veneno, criando assim um projétil de defesa bastante efetivo, evoluiu por convergência em três grupos distintos de cobras cuspidoras e que essa evolução parece estar intrinsecamente ligada à emergência dos hominíneos na África e Ásia.

É muito tentador pensar na natureza como um lugar idílico, um paraíso onde as plantas e os animais vivem em constante harmonia. Sem dúvidas, a beleza do mundo natural é encantadora e não pretendo aqui argumentar o contrário. Mas, desde Darwin, a ideia de que os organismos vivos estão em constante luta pela sobrevivência, na qual apenas os mais aptos sobreviverão, ou seja, aqueles mais capazes de obter recursos para sua manutenção, se tornou um conceito central no pensamento biológico, e essa noção está na base de um dos mais importantes mecanismos evolutivos, a seleção natural. E quanto mais estudamos o mundo natural, mais nos damos conta de que muito do que achamos fascinante evoluiu em contextos de predação, defesa ou competição. E um desses fenômenos é a evolução da peçonha.

A utilização de peçonha para defesa, competição ou predação é usualmente associada a insetos (como abelhas e vespas), a aracnídeos (como aranhas e escorpiões), ou a répteis (como as cobras). Diferentemente dos animais venenosos, que apenas produzem ou acumulam toxinas, animais peçonhentos possuem também um mecanismo ativo de liberação ou inoculação do veneno. Com poucas exceções, como as aves, exemplos de animais peçonhentos são encontrados em praticamente todos os grupos animais, até mesmo dentre os mamíferos (consulte aqui o Guia de Bolso dos animais peçonhentos do Brasil). Talvez o exemplo de mamífero peçonhento mais conhecido seja o ornitorrinco, espécie na qual os machos possuem, nas patas posteriores, esporões com veneno que são utilizados usualmente para defesa de território ou competição por fêmeas durante o período reprodutivo. Outro exemplo curioso entre os mamíferos é o dos musaranhos. Capazes de transferir o veneno de várias maneiras, os musaranhos usualmente utilizam seu veneno para imobilizar pequenas presas e preservá-las frescas por mais tempo. Já dentre os primatas, o Nycticebus é o único gênero venenoso conhecido até hoje. Nesses primatas, o veneno é produzido por uma glândula no braço e é ativado quando misturado à saliva. Esses animais lambem suas glândulas de veneno, tornando sua mordida venenosa.

Só no Brasil são notificados em torno de 100 mil acidentes com animais peçonhentos por ano, dentre os quais as cobras, aranhas e escorpiões são os principais envolvidos.  Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), anualmente em torno de 2 milhões de pessoas são envenenadas por picadas de cobras, e dentre elas mais de 100.000 morrem por consequência. Entre os sobreviventes, aproximadamente 300.000 pessoas sofrem amputações ou desenvolvem deficiência física permanente como resultado de acidentes ofídicos. Envenenamento por picada de cobra é considerado uma doença negligenciada, como tantas outras que afetam primariamente as regiões tropicais do globo. Mas, ao contrário de outras doenças sérias, o tratamento de pacientes com soro antiofídico é altamente eficaz e capaz de prevenir morte ou sequelas mais graves. 

Em cobras, a utilização de veneno está primariamente ligada à predação, e a composição química desses venenos varia significativamente não apenas entre as diferentes espécies, mas também em populações geograficamente distintas da mesma espécie. Essas diferenças químicas resultam de diversos mecanismos, muitos dos quais estão relacionados a modificações nos padrões de expressão gênica nas glândulas de veneno ou em modificações nas proteínas do veneno em si, e não necessariamente a diferenças nas sequências dos genes que codificam para essas proteínas tóxicas. Desde 1996, a explicação mais aceita para as diferenças na composição dos venenos de populações geograficamente distintas de cobras da mesma espécie é a dieta. E essa explicação, apoiada por muita evidência empírica, faz sentido: as cobras utilizam o veneno primariamente para predação, imobilizando e digerindo a presa. E a população de presas varia na sua susceptibilidade ao veneno em diferentes regiões. Isso sugere que a variação geográfica da composição do veneno reflete a seleção natural de cobras mais eficientes em se alimentar das presas locais.

Mas, enquanto a maioria das cobras utiliza veneno para predação, três grupos de cobras, chamadas de cobras cuspidoras, são capazes de utilizar o veneno como um projétil de defesa. E um estudo publicado essa semana na revista Science revelou os mecanismos evolutivos que explicam a repetida evolução desse comportamento nesses grupos aparentados de cobras, as Elapidae. Curiosamente, esse comportamento evoluiu de maneira independente nas cobras cuspidoras africanas (Naja: subgênero Afronaja), nas cobras cuspidoras asiáticas (Naja: subgênero Naja) e nas cobras cuspidoras da espécie Hemachatus haemachatus. O comportamento de cuspir o veneno parece não ter papel na captura de presa, mas sim na defesa da cobra contra predadores. Essas cobras são capazes de projetar o seu veneno a uma distância de até 2.5 metros e buscam atingir o olho do agressor. O veneno dessas cobras é capaz de causar intensa dor ocular, inflamação e até cegueira, e parece bioquimicamente distinto do veneno de outras Elapidae.

Os resultados dos métodos de filogenética molecular e calibração com fósseis sugerem que o comportamento de cuspir se originou na linhagem africana em torno de 6,7-10,7 milhões de anos atrás, enquanto na linhagem asiática o comportamento de cuspir se originou em torno de 2,5-4,2 milhões de anos atrás (Figura 1a). Os pesquisadores não foram capazes de determinar com precisão a origem desse comportamento no terceiro grupo. Por meio de transcriptômica e proteômica das glândulas de veneno, os pesquisadores caracterizaram as proteínas presentes no veneno de cada um dos grupos de cobras cuspidoras, assim como de espécies de cobras não-cuspidoras. Curiosamente, a composição do veneno de todas as cobras estudadas é dominada por toxinas do grupo 3FTX, enquanto em muitas das espécies estudadas as fosfolipases A2 são o segundo grupo de proteínas em abundância. Apesar das similaridades entre os venenos, a composição dos venenos das cobras cuspidoras é distinta não apenas das cobras não-cuspidoras, mas também entre si (Figura 1b).

Figura 1: Evolução do comportamento de cuspir nas Elapidae. (A) Evolução independente do comportamento de cuspir nos três grupos de cobras cuspidoras (setas vermelhas) e a datação desses eventos nos três grupos. (B) Comparação da composição dos venenos de várias espécies cuspidoras e não cuspidoras de elapideas. A composição dos venenos das cobras cuspidoras diferencia-se não apenas das cobras não-cuspidoras, mas também entre si, com exceção de uma única espécie de cobra cuspidora, a Naja philippinensis (*), cujo veneno é puramente neurotóxico. [Fonte: modificado de Kazandjian e colaboradores (2021), Science]

O veneno das cobras cuspidoras é abundante em um tipo particular de proteína 3FTX com efeito citotóxico, um dos principais componentes ativos desses venenos, apesar de a ação isolada desse componente do veneno ser incapaz de recapitular o efeito citotóxico do veneno como um todo, sugerindo assim uma ação sinergética entre componentes distintos. Para entender em maior detalhe a função dos diferentes componentes dos venenos de cobras cuspidoras, e da sua capacidade de causar dor intensa, os pesquisadores realizaram testes de ativação de neurônios sensoriais com as diferentes frações do veneno. Os resultados apontam para a ação sinérgica entre o componente citotóxico e as fosfolipase A2. Na presença dessas fosfolipases, o efeito citotóxico dos 3FTX é significativamente amplificado. E, ao estudar a fosfolipase A2 no veneno das elapideas, os pesquisadores descobriram que fosfolipase A2  é significativamente mais abundante nos venenos das cobras cuspidoras quando comparado ao das cobras não-cuspidoras. Além disso, as fosfolipase A2 de cobras cuspidoras são, em geral, mais ativas do que aquelas das cobras não-cuspidoras. E, curiosamente, apesar das semelhanças funcionais entre as fosfolipase A2 das cobras cuspidoras, essas proteínas apresentam claras diferenças entre os três grupos de cobras cuspidoras.

É possível também que o ato de elevar o corpo acima do chão, associado à expansão lateral do corpo, tão comumente associado às imagens de najas (Figura 2), tenha sido uma etapa importante, ou um comportamento precursor, na evolução do comportamento de cuspir. Assim, a semelhança no comportamento, na morfologia, e até mesmo na similaridade entre as propriedades funcionais dos venenos das cobras cuspidoras é mais um exemplo de convergência evolutiva.

Figura 2Naja naja exibindo comportamento conhecido como ‘hooding’, no qual a cobra levanta o corpo do chão e expande lateralmente o corpo. [Fonte: Pavan Kumar N, WikipediaCC BY-SA 3.0]

Mas a razão pela qual a habilidade de cuspir veneno evoluiu independentemente nesses três grupos de cobras, ao invés da injeção  do veneno através da mordida, como acontece com a maioria das outras espécies de cobras peçonhentas, ainda não é completamente compreendida. No entanto, os autores propõem uma hipótese fascinante para explicar esse fenômeno. A evolução das cobras cuspidoras africanas ocorreu pouco depois da divergência dos hominínios da linhagem dos bonobos e chimpanzés, o que coincide com a emergência do bipedismo, o crescimento do cérebro, o uso de ferramentas e a ocupação das savanas. De forma semelhante, a evolução desse comportamento no grupo de cobras cuspidoras asiáticas coincide com a chegada do Homo erectus na Ásia. Assim, a evolução independente do comportamento de cuspir nesses três grupos de cobras pode ser mais um dos legados de Lucy.

Ao longo dos últimos 75 milhões de anos, a evolução dos primatas, principalmente sua neurobiologia e seu comportamento, parece ter sido influenciada pela evolução das cobras, e vice-versa. E a luta pela existência imposta pela evolução dos hominínios tanto na África como na Ásia pode ter sido a principal força motriz da evolução desse comportamento nas cobras cuspidoras. E, quem diria que cuspir seria um comportamento favorecido pela seleção natural e tão arraigado na história dos nossos ancestrais!

Ana Almeida

California State University, East bay

Para saber mais:

Ferraz CR. Et al. 2019. Multifunctional Toxins in Snake Venoms and Therapeutic Implications: From Pain to Hemorrhage and Necrosis. Frontiers in Ecology and Evolution. https://doi.org/10.3389/fevo.2019.00218

Headland TH, Greene HW. 2011. Hunter-gatherers and other primates as prey, predators, and competitors of snakes. PNAS 108(52): E1470-E1474.

Stayton C.T. 2015. What does convergent evolution mean? The interpretation of convergence and its implications in the search for limits to evolution. Interface Focus 5: 20150039. http://dx.doi.org/10.1098/rsfs.2015.0039.

Ward-Smith H, Arbuckle K, Naude A, Wüster W. 2020. Fangs for the Memories? A Survey of Pain in Snakebite Patients Does Not Support a Strong Role for Defense in the Evolution of Snake Venom Composition. Toxins 12(3), 201; https://doi.org/10.3390/toxins12030201

Westhoff G, Tzschätzsch K, Bleckmann H. 2005. Spitting behaviour of two species of spitting cobras. Journal of Comparative Physiology A 191: 873–881.

Os disfarces de um estranho no ninho

Aves que colocam seus ovos em ninhos de outras espécies mimetizam os filhotes da espécie hospedeira.

Mamíferos e aves se assemelham na capacidade de produzir energia térmica para manter a temperatura corporal constante, mas diferem no modo reprodutivo. Enquanto os embriões da maioria dos mamíferos se desenvolvem dentro do útero ou de marsúpios, todas as aves colocam ovos.  Para que os embriões recebam o calor necessário para seu desenvolvimento, as aves incubam seus ovos em contato com a pele. Isso implica construir ninhos, passar vários dias sentados sobre os ovos e longos períodos em jejum. E a tarefa não termina depois da eclosão, pois filhotes de muitas espécies necessitam receber calor e alimentos durante semanas até se tornarem independentes.

Aproximadamente 1% das espécies de aves evitam todo esse trabalho. Elas colocam seus ovos nos ninhos de outras espécies, que incubam e alimentam filhotes que não são seus. Esse comportamento, chamado de parasitismo de ninhada, está presente em quatro grupos e evoluiu ao menos seis vezes. A marreca-de cabeça-preta (Heteronetta atricapilla), presente no sul do Brasil, coloca seus ovos em ninhos construídos próximos a lagoas por outras espécies de patos, gaivotas, frangos-d’água e garças. Como todos os patos, ela é uma espécie precocial: seus filhotes são capazes de caminhar, nadar e se alimentar sozinhos logo depois de nascerem. Portanto, o cuidado parental das espécies parasitadas pela marreca-de-cabeça-preta termina com a eclosão dos filhotes. Os estranhos deixam o ninho invadido logo depois de nascerem e não são alimentados pelos pais adotivos (vídeo 1).

Os cucos e alguns dos seus parentes na América do Sul (sacis e peixes-fritos) recebem mais que a incubação dos seus hospedeiros. Eles são altriciais e parasitam ninhos de outras espécies altriciais, especialmente de passarinhos. Filhotes altriciais nascem sem penas, com olhos fechados e permanecem no ninho. Portanto, os filhotes de cucos são cuidados durante semanas pelos pais adotivos até que possam voar e se alimentar sozinhos. Os filhotes de algumas espécies de cucos eclodem antes que os filhotes do hospedeiro e, ainda com olhos fechados, empurram os outros ovos para fora do ninho, recebendo sozinhos o cuidado dos pais hospedeiros (vídeo 1).

Vídeo 1

Os indicadores (Família Indicatoridae), parentes dos tucanos e pica-paus, presentes na África e Ásia, e famosos por seu comportamento cooperativo com mamíferos para obter mel, colocam seus ovos em ninhos de espécies altriciais construídos em cavidades de árvores ou barrancos. Os filhotes de indicadores nascem com um dente de queratina na ponta do bico, que usam para romper os ovos ou matar os filhotes da espécie parasitada e, assim como muitos cucos, não dividem o ninho com os filhotes da espécie hospedeira.

O último grupo com espécies parasitas são os Passeriformes. Aqui surge outro nível de complexidade, pois essas espécies aprendem de seus pais o canto que usam em suas relações sociais e reprodutivas. Na maioria dos passeriformes, o macho canta para cortejar a fêmea, que tem preferência pelo canto que aprendeu no ninho. O chupim e outras quatro espécies do gênero Molothrus (Icteridae) parasitam os ninhos de dezenas de espécies de aves no continente americano. Na primavera é comum ver tico-ticos alimentando filhotes de chupim nas cidades e nos campos do Brasil (vídeo 2). No entanto, por razões que não são ainda compreendidas, eles não aprendem o canto dos pais adotivos.

Video 2

Por último, um outro grupo de Passeriformes conhecidos como viúvas ou indigobirds (família Viduidae), formado por 20 espécies endêmicas do continente africano, parasitam espécies da família Estrildidae. A maioria das viúvas é fiel a uma única espécie hospedeiro e, ao contrário dos chupins, aprendem o canto da espécie hospedeira. Quando adultas, as viúvas fêmeas só se reproduzem com machos que imitam o canto da espécie hospedeira, gerando um isolamento reprodutivo. Por exemplo, Vidua macroura parasita ninhos de  bico-de-lacre (Estrilda astrild, introduzido no Brasil no século XIX) e as fêmeas adultas de V. macroura escolhem machos que reproduzem o canto do bico-de-lacre. Essa conduta resulta em um mecanismo de especiação simpátrica, iniciado cada vez que uma espécie de viúva acidentalmente coloca o ovo no ninho de uma espécie de hospedeiro diferente, pois os filhotes aprenderão o canto da nova espécie e, quando adultos, machos e fêmeas terão predileção por indivíduos que produzem o novo canto.

Os filhotes de viúva não matam seus companheiros de ninhos e dividem a atenção dos pais adotivos com os filhotes originais. Passarinhos reconhecem suas crias e as alimentam orientados por desenhos na boca que variam em forma e cor, às vezes lembrando flores. Também se orientam por vocalizações e movimentos estereotipados para pedir comida, um comportamento chamado de súplica ou begging, como os chupins no vídeo 2.  Um estudo publicado na edição de novembro da revista Evolution mostrou que os filhotes de viúvas mimetizam essas características dos filhotes dos seus hospedeiros (figura 1).

Aves que colocam seus ovos em ninhos de outras espécies mimetizam os filhotes da espécie hospedeira.
Figura 1: Filhotes de espécies de parasitas mimetizam a morfologia e o comportamento de espécies hospedeiras.

O estudo propõe que, depois de uma fase de isolamento reprodutivo comportamental, ocorre a seleção de morfologias e comportamentos miméticos. Os pais hospedeiros alimentam mais aqueles invasores que se parecem com suas próprias crias, resultando, depois de várias gerações, em filhotes quase idênticos.

Todas as espécies de viúvas fiéis aos seus hospedeiros se originaram há menos de um milhão de anos em uma radiação evolutiva que mostra como comportamento, cultura e seleção podem atuar combinados em processos evolutivos: as variações comportamentais na escolha da espécie hospedeira leva à adoção de uma nova cultura vocal que é seguida da seleção de morfologias miméticas.

Joao Francisco Botelho (PUC Chile)

Para Saber Mais:

Jamie, G.A., Van Belleghem, S.M., Hogan, B.G., Hamama, S., Moya, C., Troscianko, J., Stoddard, M.C., Kilner, R.M. and Spottiswoode, C.N. (2020), Multimodal mimicry of hosts in a radiation of parasitic finches*. Evolution, 74: 2526-2538.

Sorenson MD, Sefc KM, Payne RB. Speciation by host switch in brood parasitic indigobirds. Nature. 2003;424(6951):928-31.

Ecologia Política como práxis para entender a Crise Ambiental

Em meio ao agravamento da crise ambiental que vivemos, a Ecologia Política se apresenta como uma ferramenta para enfrentar não só os problemas ambientais, mas também a constante despolitização que é comum à pauta verde.

“Ecologia sem luta de classes é jardinagem”. A célebre frase de Chico Mendes tem sido dita em vários momentos e contextos desde recentemente, refletindo o aumento da atenção midiática à pauta ambiental, principalmente com questões como a Greve Mundial pelo Clima e as apropriações ou retrocessos das pautas socioambientais dos governos e/ou partidos de extrema direita. Entre os sentidos que podemos atribuir à afirmação de Chico Mendes, acredito ser válido dar uma maior ênfase ao sentido de que não adianta termos um avanço na atenção ambiental se esquecermos sua dimensão política, bem como ao sentido de questionarmo-nos a quem a pauta verde pode servir quando defendida acriticamente.

Mas como uma pauta que em si é crítica à degradação ambiental poderia ser defendida acriticamente? Uma das maneiras disso acontecer é justamente assumir que os problemas ambientais existiria isolado de outros, não tão claramente associados às questões ambientais. Isso ocorre, por exemplo, quando o problema ambiental é resumido á degradação ambiental, sem considerar suas relações com comunidades humanas, sua economia e autodeterminação, ou quando se considera que a causa da crise é apenas a perda da biodiversidade ou o aquecimento global, ignorando-se os interesses socioeconômicos que levam a essas questões ambientais. Uma consequência dessa visão acrítica é que as soluções propostas se tornam dependentes apenas de boa vontade política e da aplicação de técnicas ambientais corretas. “Sejamos resilientes”, “ouçamos os cientistas ambientais” e/ou “acionemos os tomadores de decisão para aplicar o conhecimento necessário” e isso seria suficiente para superaremos a crise. Porém, é justamente quando tomamos como técnica a solução para um problema complexo e de natureza fundamentalmente política que estamos lidando acriticamente com o problema, ou, pelo menos, de forma parcialmente acrítica.

Foi justamente a partir do questionamento a essa atitude acrítica que a Ecologia Política surgiu nos anos 1970-1980, apontando a necessidade de lidarmos com os problemas de cunho ambiental sem ignorarmos sua amplitude, principalmente no que tange a fatores sociais, como poder, exploração, distribuição desigual de acesso à renda e aos meios de produção e influência na economia política.

A Ecologia Política surgiu nessa época fazendo críticas relevantes a outras ciências que lidavam com a questão ambiental, assim como apontando novas tecnologias de análise para uma compreensão de maior amplitude sobre as questões e a crise socioambiental. Para entendermos mais sobre essas críticas e tecnologias, vale a pena abordamos brevemente a história desse campo.

Ecologia Política, sua crítica e compreensão socioambiental.

A Ecologia Política surgiu como campo interdisciplinar entre as décadas de 1970 e 1980. Os primeiros trabalhos nesse campo foram produzidos justamente como críticas aos limites da Ecologia e Antropologia cultural, da Geografia ambiental e dos estudos a respeito de catástrofes. Essas críticas eram focadas em como a abordagem dessas ciências não só não dava conta de entender as relações sociais de forma ampla, limitando-se a uma perspectiva empírica simplista, considerando apenas as consequências e/ou desdobramentos diretos dos fenômenos ambientais sobre a organização social estudada (e vice e versa). Também criticavam as visões neomalthusianas assumidas, ou seja, a de reduzir qualquer problema ambiental a uma questão de excedente populacional, assumindo que esse excedente era a causa da falta de recursos,  dessa forma legitimando políticas excludentes, principalmente quando se avaliavam questões envolvendo camponeses e distribuição de terra nos países de terceiro mundo. A partir disso, a Ecologia Política apontou a necessidade de que, para alcançar um entendimento dos problemas socioambientais, as análises fossem além de uma perspectiva focada apenas nos indivíduos, considerando estruturas econômicas e políticas, ou de uma visão passiva dos sujeitos e objetos de interesse, considerando seus papeis de agentes de resistência e transformação mutua. Assim, os trabalhos desse campo indicavam a necessidade de entender como as questões ambientais estavam relacionadas com questões sociopolíticas, relativas, por exemplo, à distribuição de renda, à exploração de mais valor, ou seja o trabalho socialmente necessário para a manufatura do que recebe o trabalhador, ao acesso a recursos naturais, às relações dos sujeitos com o Estado e as disputas por poder.

Dessa forma, a Ecologia Política traz uma análise do embasamento e das articulações políticas que sustentam e delimitam as questões socioambientais. Seja com foco mais voltado para questões estruturais da economia política marxiana, comum na disciplina nos anos 1970-1980, seja através de análises foucaultianas sobre as relações de poder, comuns nos anos 1990, a Ecologia Politica criou uma série de ferramentas explicativas que não se limitavam a análises empíricas simples, com foco nas respostas que os indivíduos davam, ou considerando os fenômenos de formas isoladas acerca dos objetos e sujeitos de interesse, conforme encontrados em outras disciplinas que se debruçam sobre as questões socioambientais.

Nos últimos anos, esse campo tem se direcionado a ser mais ativo, em vez de limitar-se a uma perspectiva crítica. Obras recentes têm proposto a apropriação de metodologias e intervenções comuns às ciências ambientais, como por exemplo análise de redes, uso de big data, variação de escala e seus efeitos, entre outros, para além das metodologias de diagnóstico que a Ecologia Política desenvolveu. Considero essa uma mudança muito necessária, em vista não só do agravamento das questões socioambientais, como também de sua globalização.

O Antropoceno, a Pós-Política e a Crise Ambiental

Há uma defesa nos últimos anos de que vivemos em uma nova era geológica, marcada pelo impacto que os humanos (ou talvez mais precisamente o capitalismo e a sociedade ocidental) tem aplicado sobre a terra. Comparável às forças geológicas naturais, essa nova era geológica tem sido denominada Antropoceno. Basicamente, essa era marca o desenvolvimento ocidental e o capitalismo global como uma força geológica, que mudou o equilíbrio biogeoquímico, indicando que os fenômenos naturais não podem ser mais entendidos sem levar em consideração a influência humana. Resumidamente, vivemos em uma era em que devemos considerar os fenômenos ambientais como socioambientais, e onde a estrutura socioeconômica ifluencia diretamente a existência das crises socioambientais.

Contudo, mesmo com essa concepção da intervenção humana em fenômenos não humanos, vivemos uma época de avanço constante de uma despolitização, principalmente marcada pela pós-política. Essa forma de despolitização sustenta que disputas políticas são deletérias e que as questões deveriam ser resolvidas mediante a aplicação de boas técnicas, por uma espécie de tecnocracia apta. E é interessante notar o quanto essa concepção é comum em meio a movimentos ambientalistas ou pesquisadores das ciências ambientais.

Essa concepção pós-política parte de uma postura equivocada de que boa ciência é isenta de valores, e por vezes acaba por reforçar concepções que favorecem o status quo contemporâneo, ao defender medidas focadas em concepções inerentes ao paradigma neoliberal (eficácia, adaptabilidade, austeridade etc.). Quando examinamos a gerência das crises ambientais sendo feita dessa forma, vemos um crescente uso de medidas que resultam em exclusões sociais ou dos cientistas ambientais do debate e em derrotas na aplicação das politicas publicas, resultando em agravamento das questões socioambientais nas últimas décadas, principalmente quando focamos nas políticas ambientais dos países de terceiro mundo.

Claro que não se nega a importância do bom conhecimento empírico e teórico, bem como de boas técnicas para lidar com a crise ambiental; porém, não se pode ignorar que grande parte das crises que vivemos tem origem e manutenção decorrentes de movimentos políticos voltados para a aplicação e manutenção de um sistema específico de produção e consumo. Ao se propor ir além, considerando como se dão os processos socioambientais em sua totalidade, a Ecologia Política cria um arcabouço de maior compreensão do papel dos agentes envolvidos em tais processos, de suas disputas e contradições em relação à manutenção e resolução das questões socioambientais. Esse arcabouço permite acessar com mais precisão o papel limitante das estruturas socioeconômicas das quais esses agentes fazem parte, e a partir dele podemos ter um vislumbre de como avançar nessas questões socioambientais e como resolvê-las em seus quadros cada vezes mais graves. E é justamente esse o papel que a Ecologia Política se propõe.

A Práxis Ecopolitica

A Ecologia Política é antes de tudo um campo de estudo, uma cátedra acadêmica que busca entender melhor as relações entre os muitos agentes sociais e o meio ambiente. Porém, ela se propõe a ir além, a fomentar uma práxis que vise não apenas entender essas questões, mas fazer parte da solução das mesmas.

Dessa forma, os ecólogos políticos buscam que sua compreensão seja temperada por uma prática informada e que seja capaz de informar. Pesquisa-ação, pesquisadores participantes, e intelectuais orgânicos são algumas das formas e formações a que o campo se propõe, articulando assim não só técnicas para superar as contradições e crises socioambientais, mas também se somando às ações para essa superação.

Em meio ao agravamento das crises ambientais, das previsões de pandemias cada vez mais comuns e das consequências draconianas da acumulação de renda, é mais do que necessário que não nos detenhamos apenas em entender o mundo. Nosso objetivo deve ser, mais do que nunca, mudá-lo; afinal, o nosso futuro pode depender disso. E é nessa linha que a Ecologia Política, enquanto práxis, busca se mover.        

Breno Pascal de Lacerda Brito

(Instituto de Biologia/UFBA. INCT em Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares em Ecologia e Evolução)  

PARA SABER MAIS:

BRYANT, R.; BAILEY, S. Third World Political Ecology. e-book ed. New York: Taylor & Francis, 2005.

FERNANDES, S. Pós-Política. In: Sintomas Morbidos: A Encruzilhada da Esquerda Brasileira. São Paulo – SP: Autonomia Literaria, 2019. p. 214–254.

FORSYTH, T. Critical Political Ecology: The Politics of Environmental Science. Lodon: Routledge, 2003. PERREAULT, T.; BRIDGE, G.; MCCARTHY, J. (EDS.). The Routledge Handbook of Politcal Ecology. New York, NY: Routledge, 2015.

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