Pensando sobre nossas relações com a natureza e aprendendo com o pensamento ameríndio

Valores relacionais são elementos centrais em nossa relação com a natureza. Eles têm sido entendidos a partir de tipologias de modos de relação humano-natureza, uma das quais abordarei nessa postagem. Farei um contraponto entre modos característicos do mundo moderno e contemporâneo, como os modelos de dominação e de isolamento, e outras visões que diluem a distinção entre mundo social e natural, em especial, o modelo de troca ritualizada, característico do pensamento ameríndio. Ao fazê-lo, questionarei como e o que podemos aprender a nos defrontarmos com essa forma de entender a natureza tão distinta da nossa.

Cacique Raoni Metuktire (Kapot, Mato Grosso, c. 1932), liderança indígena que subiu rampa do planalto em janeiro de 2023, junto com Lula, ao ser empossado presidente do Brasil pela terceira vez. Foto de Valter Campanato/ABr, CC BY 3.0 BR <https://creativecommons.org/licenses/by/3.0/br/deed.en&gt;, via Wikimedia Commons, https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Cacique_Raoni_(2013).jpg  

Valores intrínsecos, instrumentais e relacionais na conservação

Um dos aspectos centrais nas reflexões sobre práticas e políticas de conservação da natureza diz respeito aos nossos valores e às nossas atitudes frente à natureza. A partir dos anos 1980, na esteira do crescimento dos movimentos ambientalistas, a reflexão a este respeito foi, na maior parte do tempo, estruturada em torno da dicotomia entre valor intrínseco e valor instrumental. A biologia da conservação teve origem naquela década, sendo inicialmente concebida como uma ciência orientada para uma missão. Os biólogos da conservação sustentavam, em sua maioria, que a natureza e os seres vivos deveriam ser conservados por seu valor intrínseco, ou seja, pelo valor que eles têm simplesmente porque são o que são, porque são intrinsecamente valiosos, e não apenas porque têm valor como meio para que se faça alguma outra coisa.

Naquela mesma década, contudo, a pauta ambientalista foi sendo absorvida pelo sistema capitalista de produção e consumo, que buscou uma conciliação entre seu modus operandi e as demandas de conservação, através de fóruns internacionais de tomada de decisão, capitaneados pela ONU, que culminaram com a introdução do conceito de desenvolvimento sustentável. Este conceito, que rendeu bem mais desenvolvimento do que conservação desde então, foi introduzido no relatório Brundtland e consolidado a partir da Rio 1992. Este processo resultou no reforço do valor instrumental da natureza e dos seres vivos e não-vivos, que, no fundo, acompanha o projeto da modernidade desde sua origem – e, inclusive, remonta a tempos mais antigos, como podemos ver em várias religiões ocidentais que também atribuem valor à natureza e aos demais seres principal ou exclusivamente devido aos benefícios que trazem a nós, humanos.  Com a expansão do neoliberalismo, os valores instrumentais ganharam peso cada vez maior, dominando o cenário político e também o cenário científico, a partir de noções como as de desenvolvimento sustentável e de serviços ecossistêmicos. Se ainda persistiu um debate acadêmico em torno da dicotomia valor intrínseco-valor instrumental, nos mais variados meios sociopolíticos o valor instrumental predominou vigorosamente.

Contudo, surgiu recentemente, no campo da conservação, uma tendência conceitual que busca superar a dicotomia intrínseco-instrumental a partir da ideia de valores relacionais, que não operam isolados como valores, mas são elementos de modos de relação humano-natureza. Valores relacionais podem ser instrumentais e podem ser não-instrumentais, o que supera a dicotomia, ao incorporar a ideia de contribuição para os humanos como um elemento apenas dos valores relacionais, que ganha maior ou menor saliência a depender do modo de relação humano-natureza.

Modos de relação humano-natureza

A ideia de valores relacionais levou à construção de tipologias de modos de relação humano-natureza. Não descreverei aqui diferentes tipologias, com os modos de relação que identificam, mas apenas enfocarei alguns modos abordados pelo pesquisador brasileiro Roldan Muradian e pelo pesquisador basco Unai Pascual, em um artigo importante a este respeito.

Dois modos de relação identificados por estes autores são bem característicos do mundo europeu e do mundo colonizado que resultou de sua expansão. Um deles é o modelo de dominação, no qual há uma distinção clara entre mundo social e mundo natural, e, logo, entre humano e natureza, e a natureza é tratada como subordinada aos humanos, algo que atravessa das religiões dominantes no mundo europeu até o sistema político e de produção e consumo capitalista, que se afirmou desde a modernidade. A partir desse modelo, a natureza é entendida como uma ameaça que deve ser colocada sob controle, para servir aos humanos.

Outro modelo é o de isolamento, que mantém a distinção entre mundo social e natural, mas, para além disso, com a crescente urbanização, desacopla de tal maneira os humanos da natureza que esta última termina por tornar-se invisível. Há uma indiferença em relação à natureza e um entendimento de que ela não seria importante, malgrado nossa completa dependência dela. Mas há tantas mediações intervindo nessa dependência que a natureza se torna, para muitos habitantes dos meios urbanos, algo praticamente inexistente. Este é um modo de relação que tem sido favorecido pela ausência de experiências de natureza, especialmente entre os moradores de centros urbanos.

Esses dois modelos se contrapõem a outros que me interessam particularmente nessa postagem, porque diluem a distinção entre mundo social e natural, por exemplo, os modelos da devoção e de troca ritualizada.

No modelo de devoção, característico de culturas e religiões orientais, a natureza é entendida como uma divindade e colocada em posição hierarquicamente superior aos humanos, com uma percepção da natureza como sagrada e como meio para uma transcendência que pode unificar-nos a ela.

O modelo de troca ritualizada, por sua vez, é característico do pensamento ameríndio, que, apesar de sua diversidade, exibe também uma unidade nos diferentes povos originários das Américas, em virtude de sua origem comum (em sua maioria).

Modelo de troca ritualizada e pensamento ameríndio

No modelo de troca ritualizada, todos os seres da natureza são tratados como iguais, sem excetuar os humanos. Todos os seres da natureza são tratados como capazes de agência, de interagirem uns com os outros nos mesmos termos, como diferentes gentes. Em vez de uma visão uninaturalista e multiculturalista, dominante na modernidade ocidental e herdada por nós, há entre os ameríndios uma visão uniculturalista e multinaturalista. Todos os seres são gentes e têm suas linguagens, mas todas as linguagens usam as mesmas palavras, embora estas se refiram de maneira diferente às coisas no mundo. A mesma palavra que para nós significa sangue, para a onça significa cauim (uma bebida alcoólica tradicional dos povos ameríndios, feita através da fermentação alcoólica da mandioca ou do milho). É por isso que onde vemos lama, a anta vê sua maloca cerimonial, onde dança em seus rituais.

Muitas vezes, as pessoas pensam na visão de natureza dos ameríndios como se fosse a de um mundo em harmonia. Mas harmonia é um conceito nosso por demais. O mundo que os ameríndios percebem e experienciam parece bem mais complicado do que isso. Porque se todos os seres são gentes, toda relação no mundo natural é uma relação social, com toda a complexidade que uma sociedade traz, ainda mais povoada por gentes tantas e tão diversas. Ali as relações devem ser cuidadosas e é desse cuidado que segue o que nós, mais uma vez usando categorias que são nossas, chamamos por vezes de sustentabilidade da vida dos povos ameríndios. As trocas ritualizadas têm um papel central no modo de relação com a natureza desses povos exatamente porque elas mediam, de maneira fundamental, todo o cuidado que é preciso ter em todas essas relações. Ao nos referirmos a trocas ritualizadas, estamos tratando de situações nas quais humanos atribuem capacidade de agência a entidades naturais e, a partir disso, se envolvem em relações com elas que são regidas por códigos ritualizados de igualdade, equilíbrio e reciprocidade.

Considerem, por exemplo, os Runa, povo ameríndio da Amazônia equatoriana, com quem o antropólogo Eduardo Kohn trabalhou, tendo publicado sobre eles o livro Como pensam as florestas. Nas trocas ritualizadas desse povo ameríndio com a natureza em que vivem, eles entendem as florestas como seres pensantes. Em princípio, temos aí uma alteridade radical, como chamam os antropólogos as diferenças tão radicais na percepção e no entendimento do mundo, no que os filósofos chamam de ontologia, que se torna difícil traduzir de uma visão a outra. Para a modernidade ocidental, nós e possivelmente alguns outros poucos animais somos seres pensantes. Uma floresta, jamais!

Aprendendo a partir da diferença radical

Eu tenho trabalhado com um arcabouço teórico acerca das relações entre formas de conhecimento que tem como um de seus elementos perguntar como podemos aprender a partir de situações de diferença, de alteridade radical. E a resposta que temos dado é que aprendemos quando essas diferenças radicais desafiam nossos modos de percepção e entendimento, desafiam de tal modo, com tanta intensidade, que inauguram visões que, se impossíveis antes, agora são por nós ao menos contempláveis, dignas de atenção.

Isso foi exatamente o que aconteceu comigo quando me deparei com a ideia das florestas pensantes. Pus-me a pensar sobre como o próprio modo como entendemos a nós mesmos e ao nosso pensamento é marcado pelos modelos de relação humano-natureza ocidentais modernos. Descartes propôs, no nascimento do racionalismo moderno, que o ponto primeiro de toda a compreensão residia na afirmação “Penso, Logo Existo”. Mas, ora, isso é o contrário da ideia de que todos os seres da natureza devem ser tratados como iguais, sem excetuar os humanos. O pensamento seria a marca de nossa existência e somente isso, a mente – atributo da alma –, nos tornaria humanos. No mais, seríamos uma máquina, e todos os seres vivos, não tendo almas e mentes, não seriam iguais, mas inferiores, máquinas somente. Estamos aí muito longe da ideia de um mundo povoado por gentes tantas e tão diversas, marca central do pensamento ameríndio. Aliás, estamos longe também de outras ideias que informam modos de viver outros, como a ideia de Ubuntu, central em grande parte do pensamento africano, “Eu sou, porque nós somos”. Não, eu não sou porque nós somos, diria o moderno, eu sou porque eu penso. Mas, ora, isso é tão próprio de como nós, ocidentais modernos, pensamos o mundo todo a partir de nosso próprio umbigo, afirmando-se o homem desde a Renascença como centro do mundo, dentro de um contexto de crescente individualismo.

Ao longo da modernidade, tipicamente entendemos desta maneira o pensamento e a cognição (os processos mentais pelos quais adquirimos conhecimento e entendimento através do pensamento, da experiência e dos sentidos). Aliás, nós os entendemos também muito sob a influência de Descartes. Pensamento e cognição teriam o cérebro como sua sede e, a partir do cérebro, nós perceberíamos nosso corpo e o ambiente ao redor, criando representações deles no interior do cérebro. É bem assim que entendemos a nós mesmos, filhos e filhas que somos da modernidade ocidental.

Mas, vejam bem, eu me ponho a pensar, provocado pelo pensamento ameríndio, e aí, ao me ver desafiado a considerar as florestas pensantes, me encontro comigo mesmo, no sentido de que me vejo de repente numa posição que tem sido minha, dado que há muito rejeito o entendimento do pensamento e da cognição como se estivessem limitadas ao cérebro. Mas não me encontro idêntico ao pensamento ameríndio. Não! Ele me desafia a dar um passo a mais, antes para mim impensável. E é aí mesmo que está o aprendizado!

Entendo a cognição e o pensamento nos termos de uma corrente das ciências cognitivas que é chamada de “cognição situada”. Desde esta perspectiva, não é o cérebro apenas, ou mesmo em si, que é a sede do pensamento e da cognição. Pensamento e cognição são fundamentalmente incorporados, o que significa que pensamos e conhecemos não apenas com o cérebro, mas com todo o corpo. Ter uma mente não é, nesses termos, como ter um nariz, mas é como andar. Assim como andar, ter uma mente é relacionar-se com o mundo de certa maneira. E esta relação não é do cérebro com o mundo. É do corpo todo com o mundo. São os nossos sentidos, são os nossos movimentos, é a nossa pele…. É o corpo todo…

Mas é mais do que isso. Pensamento e cognição são também embebidos no mundo. Quando pensamos e conhecemos, exteriorizamos parte de nosso trabalho cognitivo no mundo. Nós ordenamos o mundo ao nosso redor para que possamos pensar e conhecer mais e melhor. Organizamos nossas gavetas para facilitar a escolha das roupas, exteriorizamos nossa memória em anotações espalhadas pelas casas, rotulamos o mundo com nossas palavras para facilitar saber o que é comida e o que é veneno, o que é predador e o que é presa…. Levamos isso aos últimos extremos, com mega-ordenações do mundo que exteriorizamos como se fossem representações, criando sistemas inteiros de pensamento, religiosos, científicos e outros…

Mas muitas vezes acabamos perdendo de vista que não se trata somente de perceber e representar o mundo. Trata-se de um conjunto de ações, de práticas, nas quais, incorporados e embebidos no mundo, pensamento e cognição emergem como modos de relação. Não se trata então de representar o mundo, mas de agir de certa maneira para produzir pensamento e cognição, relacionar-se de forma tão recorrente com o mundo em que exercemos nossas práticas de significação que até parece que estamos continuamente mobilizando mapas de nosso cérebro para entendê-lo. Mas não temos esses mapas como algo fixado em nossos cérebros. Vamos sempre mapeando o mundo enquanto andamos, ou enquanto navegamos por ele.

Esse modo de entender o pensamento e a cognição é dito anti-representacionalista porque dá sempre prioridade à ação e à prática situadas no mundo, que sempre são um navegar de nosso corpo embebido nas coisas. É que, como somos seres que aprendemos, a gente tende a navegar de modo recorrente, tão recorrente que até imaginamos que vivemos dentro de nosso cérebro, como o homúnculo cartesiano. Mas não é ali que vivemos. É no corpo embebido no mundo que vivemos.

Mas se seguimos por esse caminho e prestamos bem atenção ao lugar para onde estamos indo, olha que nós nos descobrimos já não tão distantes dos ameríndios! Estamos diluindo as fronteiras humano-natureza, humano-mundo! É verdade, com muita dificuldade, não com a naturalidade dos ameríndios. Mas isso é porque somos ocidentais modernos e desafiar essa visão da gente como um ser que vive, individual e isoladamente, dentro de nossa própria cachola é desafiar tudo que nós somos. Não é fácil. Mas este é exatamente o passo que somos instigados a dar quando levamos realmente a sério o pensamento ameríndio, por mais hesitante que este passo ainda seja.

Queria dar ainda uma palavra final, que é sobre construção de conhecimento. Quem constrói o conhecimento? Na visão ocidental moderna, a resposta é que, em princípio, nós construímos. Mas não apenas isso, porque há também, entre os modernos, os empiristas ingênuos, que consideram que o mundo está de alguma forma pré-rotulado, pré-conhecido, e o que nos cabe é descobrir os conhecimentos que lá estão. Afinal, é o conhecimento construção social e apenas isso? Ou é o conhecimento algo que descobrimos no mundo? O que penso é que estas não são perguntas a serem respondidas. Elas são perguntas a serem dissolvidas, porque se baseiam numa dicotomia a ser superada.

Se mudamos para uma visão de nosso ser, com seu pensamento e sua cognição, como sempre incorporado e embebido no mundo, podemos chegar à conclusão de que a construção do conhecimento se dá de todos os lados da relação. O conhecimento é co-construído por nós, humanos, com nossos corpos inteiros, e esse mundo que nos embebe. Assim, como nós, ativamente, executamos práticas que produzem significados sobre o mundo, o mundo não se apresenta a nós como uma tela branca em que podemos pintar o que quisermos. Não, o mundo é prenhe de significados. Assim, ele também é agente construtor do nosso próprio conhecimento sobre ele. Afinal, não haveria de ser diferente se nosso pensamento e nossa cognição estão embebidos no mundo! Eles são modos de relação através dos quais nós e o mundo construímos um modo de perceber e entender as coisas.

Não há dúvida de que eu começo sempre longe dos Runa e dos demais ameríndios, ocidental moderno que sou, mas, levando-os realmente a sério, eis que me encontro comigo mesmo no caminho, mas transformado pela aprendizagem que se seguiu de considerar a diferença radical não como fonte de rejeição, mas como fonte de ideias novas, tão novas para mim que há algum tempo atrás poderiam até parecer impensáveis.

Charbel N. El-Hani

(Instituto de Biologia/UFBA)

Produzido a partir de texto elaborado para oficina de imersão na natureza do projeto educacional Macaw Experiências de Natureza, na Reserva Legal Camurujipe, em 05/01/2023

PARA SABER MAIS

El-Hani, C. N. (2022). Bases teórico-filosóficas para o design de educação intercultural como diálogo de saberes. Investigações em Ensino de Ciências 27(1): 1-38.

Kohn, E. (2021). Como piensan los bosques. REUDE.

Muradian, R. & Pascual, U. (2018). A typology of elementary forms of human-nature relations: a contribution to the valuation debate. Current Opinion in Environmental Sustainability 35: 8-14.

Roth, W.-M. & Jornet, A. (2013). Situated cognition. WIREs Cognitive Science 4: 463-478.

Seguem os prejuízos da politização dos debates sobre tratamento e prevenção da COVID-19

Ainda em 2020 evidências mostraram de modo consistente que a hidroxicloroquina não é um tratamento efetivo para a COVID-19. Isso não diminuiu o debate em torno dessa droga, que tem gerado muito burburinho. Um dos resultados foi a interrupção prematura de estudos sobre o uso dessa droga na prevenção da COVID-19. Quais lições devemos tirar desse episódio?

Verdade versus pós-verdade. Cartoon de Martin Shovel. Disponível em: https://twitter.com/martinshovel/status/804968341471457280?lang=en

Há alguns dias, comecei a receber de diversos amigos e colegas, que sabem de meu interesse sobre os debates em torno dos estudos sobre um possível papel da (hidroxi)cloroquina no tratamento e na prevenção da COVID-19, uma revisão sistemática e meta-análise recente sobre o uso profilático desse medicamento, ou seja, na prevenção dessa doença. A razão de meu interesse reside no fato de que o caso da (hidroxi)cloroquina é um prato cheio para uma estratégia de ensino que uso em meus cursos na UFBA, combinando questões sociocientíficas e aprendizagem baseada em problemas. Isso porque muitos estudos que testaram essa droga foram marcados por inúmeros problemas metodológicos e é possível detectar a interferência de interesses e valores em sua condução, sem falar da ampla controvérsia sociopolítica.

Questões sociocientíficas são problemas ou situações controversas e complexas vivenciadas por sociedades contemporâneas nas quais o conhecimento científico tem papel fundamental nas origens, na compreensão e/ou na busca de soluções. Além disso, uma questão sociocientífica é passível de transposição para a sala de aula, como uma ferramenta de ensino e aprendizagem, favorecendo a discussão de relações entre ciência, tecnologia, sociedade e ambiente, bem como de aspectos éticos dos problemas sociais e da pesquisa científica. A caracterização do que é uma questão sociocientífica já sugere, de imediato, por que o caso da (hidroxi)cloroquina desperta interesse para uso em tal abordagem pedagógica.

O que mais me despertou a atenção, contudo, foi o relato de que o artigo que me foi enviado estava circulando em determinados grupos como referência fundamental a favor de um papel da (hidroxi)cloroquina na prevenção da COVID-19, inflamando ânimos já muito excitados na controvérsia fortemente carregada de conotações políticas em torno desse medicamento.

O problema é que o artigo em questão não apresenta de fato evidências a favor de um papel da hidroxicloroquina na prevenção da COVID-19. O que ele conclui é que as evidências disponíveis ainda são insuficientes para excluir um papel profilático desse medicamento no caso dessa doença. A diferença é muito importante: falta de evidências suficientes é algo muito diferente de evidência a favor de uma tese que se pretende defender. Além disso, o artigo já se inicia com uma conclusão que contradiz expectativas muito defendidas, com um ardor tão grande que gera muito calor e pouca luz: “A hidroxicloroquina não é um tratamento efetivo para COVID-19 estabelecida”. Esta, sim, é uma conclusão já muito bem estabelecida a partir das evidências disponíveis. Ora, tudo isso deveria ser bastante claro. Afinal, estas são conclusões que saltam aos olhos quando lemos o artigo.

Como, então, as pessoas não viram isso? A primeira razão que me vem à cabeça é muito óbvia, provavelmente correta: elas nem leram o artigo e convenceram-se das supostas conclusões disseminadas por determinado grupo apenas por memes e mensagens nas redes sociais. Quanto a esta razão, a indicação é simples e direta: informem-se em fontes de qualidade, busquem – se possível – inclusive verificar as fontes originais, certifiquem-se de que não estão sendo enganados por fake news, antes de sair defendendo conclusões visceralmente.

Contudo, o que gostaria de examinar aqui é uma razão mais interessante, ainda que mais hipotética no atual estado de coisas. Suponhamos que uma pessoa se dispõe a ler o artigo original, ou, ao menos, um relato fidedigno dos seus achados. Será que há condições em que ela chegaria a conclusões diferentes daquelas que saltam aos olhos no artigo, por exemplo, de que ele apresenta evidências favoráveis ao uso da hidroxicloroquina na prevenção da COVID-19? Uma condição que poderia resultar nessa situação é o chamado “raciocínio motivado”, um fenômeno psicológico no qual as pessoas elaboram e avaliam argumentos e/ou examinam dados e evidências de forma enviesada, buscando alguma interpretação que se acomode a e/ou favoreça alguma crença preexistente. Outra condição, contudo, consiste na dificuldade de as pessoas entenderem como o trabalho científico é realizado, como os argumentos científicos são construídos, que fatores intervêm na construção e defesa de tais argumentos, entre outros elementos.

Antes de seguirmos com esse argumento, devemos, no entanto, examinar o artigo que me foi enviado, para considerar o que é ali relatado.

Uma revisão sistemática e meta-análise de estudos sobre o uso da hidroxicloroquina para prevenção da COVID-19

A publicação que estamos examinando relata os resultados de uma meta-análise de ensaios clínicos randomizados e controlados (randomized controlled trials, RCTs) que investigaram a efetividade da hidroxicloroquina na prevenção da COVID-19. Nessa meta-análise, foram incluídos 11 RCTs, sete que investigaram o uso da hidroxicloroquina como meio de evitar contrair a doença antes de exposição conhecida a um indivíduo infectado (profilaxia pré-exposição), e quatro que investigaram o uso desse medicamento após tal exposição (profilaxia pós-exposição). Todos os sete ensaios clínicos voltados para profilaxia pré-exposição eram testes que usaram placebo (ou seja, uma substância ou tratamento inerte, que não apresenta interação com o organismo) como controle e método duplo-cego (nos quais nem pesquisadores nem participantes sabem, durante o teste, quais tratamentos foram atribuídos a cada participante, se placebo ou medicamento). Todos eles foram realizados com trabalhadores da área da saúde que estavam sujeitos a exposição a COVID-19 em seu ambiente de trabalho, mas não apresentavam exposição conhecida a pacientes infectados. Os quatro ensaios clínicos voltados para profilaxia pós-exposição foram realizados com pessoas assintomáticas que haviam entrado em contato com casos confirmados de COVID-19. Estes ensaios têm, contudo, uma fragilidade importante: o tempo entre a exposição a contatos infectados e o início do tratamento foi tão longo que eles podem confundir-se com testes de tratamento precoce da doença com hidroxicloroquina. Assim, os resultados destes últimos ensaios devem ser considerados com maior cautela.

Os critérios de inclusão na meta-análise possibilitaram eleger apenas estudos capazes de produzir evidências de maior qualidade, na medida em que foram admitidos apenas testes controlados e randomizados, com indivíduos cuja infecção pelo coronavírus SARS-CoV-2 havia sido confirmada por PCR (com poucas exceções que, quando excluídas da análise, não afetaram de modo relevante os resultados), e que haviam sido publicados em periódicos arbitrados ou estavam disponíveis como preprints (ou seja, antes de sua publicação em periódico).

Dois autores do estudo avaliaram independentemente os riscos de vieses nos ensaios clínicos. Isso é importante para controlar, na meta-análise, o grau de interferência nos resultados dos ensaios devido a fragilidades no desenho metodológico. Esta avaliação identificou ensaios clínicos com fontes moderadas de viés ou interferência nos resultados, em virtude de dados incompletos sobre a infecção dos participantes e a exclusão de participantes do estudo após terem sido atribuídos ao grupo que recebeu hidroxicloroquina como medida preventiva ou ao grupo controle.

É importante estar atento aos resultados obtidos na meta-análise. Como escrevem os autores, “o benefício da hidroxicloroquina como profilaxia para a COVID-19 não pode ser descartado com base na evidência disponível de ensaios randomizados”. Portanto, a conclusão é de que as evidências disponíveis ainda são insuficientes para excluir um papel profilático da hidroxicloroquina, o que é algo inteiramente distinto de oferecer evidências a favor de um papel dessa droga na prevenção da COVID-19. A razão pela qual as evidências são insuficientes reside na quantidade pequena de ensaios clínicos que puderam ser completados. A principal preocupação dos autores é de que os ensaios randomizados e controlados disponíveis produziram achados que não são estatisticamente significantes, mas isso não deve ser interpretado no sentido de que eles teriam produzido evidências convincentes da falta de efetividade do medicamento na prevenção da COVID-19, mas apenas de que esses estudos não produziram evidências suficientes para uma decisão consistente acerca da hipótese. Em contraste com o uso da hidroxicloroquina no tratamento da COVID-19, cuja ineficácia foi estabelecida de modo convincente ainda no segundo semestre de 2020, como os autores do próprio artigo afirmam já em sua primeira frase, ainda há bastante incerteza sobre os benefícios dessa droga na prevenção ou profilaxia da doença.

Esta incerteza se mostra claramente nos resultados obtidos na meta-análise feita pelos autores. Embora os ensaios clínicos voltados para profilaxia pré-exposição resultem, quando analisados conjuntamente, numa estimativa de risco cerca de 28% menor de contrair COVID-19 no grupo de participantes que recebeu hidroxicloroquina, qualquer efeito entre 5% e cerca de 45% de redução no risco é altamente compatível com os dados colhidos nesses ensaios. Quanto aos ensaios voltados para profilaxia pós-exposição, tanto uma redução substancial quanto um aumento moderado no risco de contrair COVID-19 uma vez administrada hidroxicloroquina se mostrou altamente compatível com os dados obtidos. Não há dúvida, então, de que as evidências disponibilizadas pelos ensaios incluídos na meta-análise são insuficientes para qualquer conclusão mais segura sobre os benefícios, a ausência de benefícios ou os riscos de usar hidroxicloroquina na prevenção da COVID-19. Ou seja, há mais incerteza do que segurança nas conclusões que podemos obter quanto ao uso dessa droga na profilaxia da doença, como a ampla variação nas estimativas de risco obtidas mostra.

A situação poderia ser diferente se os 30 ensaios clínicos planejados no começo da pandemia para investigar uso profilático de hidroxicloroquina tivessem sido realizados, em vez dos 11 somente que foram reunidos na meta-análise. A maioria desses ensaios não foi completada, contudo, porque as comunidades médica e científica chegaram à conclusão de que esse medicamento não tinha efetividade na prevenção da COVID-19 e de que testes adicionais não seriam necessários após os achados de apenas dois desses ensaios terem sido publicados. Essa conclusão prematura envolveu uma confusão entre ausência de efeito e ausência de significância estatística: concluiu-se que a hidroxicloroquina não tinha efeito profilático na COVID-19 quando a conclusão correta era de que as evidências obtidas nos ensaios clínicos disponíveis possibilitavam estimativas de efeito do medicamento na prevenção da doença que eram demasiadamente imprecisas. Os resultados desses ensaios apoiavam, assim, a necessidade de mais testes de um possível papel profilático do medicamento, e não a tese de que não era mais preciso realizar estudos a este respeito.

A emergência de um consenso sobre a ineficácia da hidroxicloroquina na prevenção da COVID-19 foi considerada surpreendente pelos autores da meta-análise, porque os dois ensaios nos quais este consenso se baseou encontraram um risco menor de contrair a doença entre as pessoas às quais foi administrada hidroxicloroquina. Contudo, como as amostras dos dois estudos eram pequenas, os resultados não foram suficientes para excluir seja o benefício seja o prejuízo de tomar essa droga como medida profilática. Mas por que será que houve este salto para uma conclusão negativa sobre o uso da hidroxicloroquina como prevenção da doença na ausência de evidência suficiente? Não há dúvida de que todo o barulho em torno do emprego dessa droga no tratamento da COVID-19, motivada pelo uso político dos achados de ensaios clínicos que produziram evidência frágil e insuficiente a favor de seu papel terapêutico, foi decisivo para que se saltasse a tal conclusão com evidência muito menor do que aquela que estabeleceu, convincentemente, a falta de efetividade da droga como medida terapêutica. Assim, esse uso político causou prejuízos, ao impedir a geração de evidências suficientes e estimativas precisas acerca do uso da hidroxicloroquina na gestão da pandemia antes de vacinas estarem disponíveis. Isso ocorreu porque a convicção sobre a falta de efetividade da hidroxicloroquina na prevenção da doença diminuiu substancialmente a velocidade de recrutamento de pessoas para os ensaios clínicos ainda em andamento que visavam testar esse uso da droga.

Os autores da revisão sistemática e meta-análise que estamos discutindo estavam realizando um ensaio clínico para testar o uso da hidroxicloroquina na prevenção da COVID-19 e, como ocorreu em outros estudos, enfrentaram sérias dificuldades para recrutar pacientes para participar do estudo. Na extrema politização do debate em torno do uso dessa droga no tratamento da doença, foi ignorado o fato de que, ainda em 2020, já havia evidência suficiente para mostrar que a hidroxicloroquina não tem papel na terapia da doença, e isso levou, paradoxalmente, a dificuldades em estudos que buscavam testar outro papel para a droga na gestão da pandemia. Estas são águas passadas, uma vez que a disponibilidade de vacinas eficazes para a COVID-19 reduz a necessidade de medidas farmacológicas de prevenção. Contudo, é importante aprender com esse evento, de modo a aprimorar a geração e interpretação de evidências antes que enfrentemos a próxima emergência de saúde pública, climática e/ou ambiental.

Quais seriam as lições?

Quais as lições a ser derivadas desse episódio? Mais alguma lenha na fogueira dos conflitos e discursos sobre (hidroxi)cloroquina nas redes sociais? Esta parece ser a lição que muitos têm derivado. Mas certamente não é a lição correta, porque reforça a fonte do problema analisado no artigo, que mostra como a politização extrema dos debates em torno da (hidroxi)cloroquina tem sido prejudicial. Em vez de deslocar os juízos sobre o uso de um medicamento para controvérsias sobre opiniões nas redes sociais, teria sido mais apropriado aguardar as conclusões de estudos feitos por comunidades científicas relevantes (como as de pesquisadores biomédicos, epidemiologistas, virologistas etc.), desde que tivessem a qualidade esperada nas práticas científicas aceitas por essas comunidades. Certamente não é o caminho para alcançar julgamentos de melhor qualidade usar o artigo que estamos discutindo para alimentar ainda mais debates mal-informados sobre a (hidroxi)cloroquina, mal-informados tanto no sentido do entendimento do conhecimento científico em si mesmo quanto em termos do modo como este é produzido e validado. Um caminho mais preferível é utilizar esse artigo para entender o impacto negativo das controvérsias em torno do medicamento, que tiveram e seguem tendo lugar especialmente nas redes sociais; o papel fortemente político dessas controvérsias (nas quais não é a busca de conclusões seguras, mas sobretudo a construção de discursos que favoreçam a posição politica de certos grupos que tem sido almejada); e a necessidade de aguardar conclusões mais seguras da comunidade científica sobre o que está sendo pesquisado, antes de criar um acalorado debate que gera mais fogo do que luz.

Como argumenta Bruno Latour, em Políticas da natureza, se não temos boas razões para questionar uma conclusão científica, ela deve ser tomada como um ponto de partida para deliberação (notem: não como um ponto final, porque há mais envolvido na deliberação social do que apenas resultados consolidados pela pesquisa científica). Mas, antes disso, é preciso que haja espaço para que tais boas razões sejam alcançadas. Um debate que busca usar resultados científicos ainda não-consolidados para defender posições em embates sociopolíticos cria, por assim dizer, um curto circuito no processo que poderia levar-nos a ter segurança sobre as conclusões científicas, antes de nos metermos a deliberar. Deliberamos, então, sobre bases insuficientes, no que tange ao conhecimento científico disponível, e isso pode levar-nos a cometer grandes equívocos. Os processos naturais não querem saber, contudo, de nossas confusas e acaloradas controvérsias sobre terrenos pantanosos: eles seguem seu curso… E, em seu curso, podem muito bem aumentar nossas incertezas. Necessitamos entender melhor o conhecimento científico e o modo como ele é produzido, bem como a maneira como argumentos científicos são construídos. Como temos defendido desde os primeiros dias de Darwinianas, é urgente que a educação científica e a comunicação pública da ciência se tornem mais capazes de oferecer aos cidadãos melhores ferramentas para compreender como se dão a construção e a validação dos conhecimentos científicos, de como achados da ciência são mobilizados na argumentação, e de como relações entre ciência, tecnologia, sociedade e ambiente intervêm na elaboração e defesa de argumentos que se utilizam de achados científicos.

Charbel N. El-Hani

(Instituto de Biologia/UFBA)

PARA SABER MAIS

García-Albéniz, X., del Amo, J., Polo, R., Morales-Asencio, J. M. & Hernán, M. A. (no prelo). Systematic review and meta-analysis of randomized trials of hydroxychloroquine for the prevention of COVID-19. European Journal of Epidemiology.

Latour, B. (2019). Políticas da natureza. São Paulo: Editora UNESP.

Vacinação de crianças contra COVID-19: A importância de superar a hesitação

É natural que pais hesitem em vacinar filhos e filhas contra a COVID-19. Buscar informação de qualidade e vacinar-se contra a infodemia, os boatos, as teorias da conspiração e o negacionismo são os caminhos para superar essa hesitação. A síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica associada à COVID-19 é uma boa razão para isso.

Cartaz informando sobre Síndrome Inflamatória Multissistêmica em crianças. Disponível em: https://www.hps.holyoke.ma.us/2021/04/29/multisystem-inflammatory-syndrome-in-children-mis-c/

Em 29 de dezembro de 2021, havia 281 808 270 casos confirmados e 5 411 759 mortes por COVID-19 em todo o mundo, conforme dados oficiais da OMS. No Brasil, os mesmos dados registravam 22 246 276 casos confirmados e 618 534 mortes. Estes são valores subestimados, pelo baixo número de testes diagnósticos realizados, bem como pelas dificuldades em identificação de casos e razões de óbito em vários países do mundo. A apresentação da doença também contribui para sua subnotificação, uma vez que cerca de 80% dos pacientes mostram apresentações menos graves, às vezes até assintomáticas. Seja como for, não há como negar a seriedade desse quadro de saúde pública, no mundo ou no Brasil.

O nosso país tem 2,8% da população mundial, que é de 7.7 bilhões de pessoas. Assim, considerando o número de mortes registrado nos dados oficiais da OMS, 11,4% de todas as mortes por COVID-19 tiveram lugar no Brasil, um percentual muito acima da proporção da população mundial que vive em nosso território. Por sua vez, 7,9% de todos os casos confirmados ocorreram no país. É óbvio que o impacto da COVID-19 em nosso país é enorme, sendo até difícil exagerá-lo: cerca de uma em cada nove pessoas que morreram de COVID-19 veio a óbito em território brasileiro, o que vale também para uma em cada 12 pessoas acometidas pela doença.

Em 28 de dezembro de 2021, um total de 8 687 201 202 doses de vacinas contra a COVID-19 haviam sido administradas. A vacinação evitou milhões de casos, assim como de hospitalizações, e salvou centenas de milhares de vidas. No Brasil, o número de mortes pela doença caiu 94% em novembro, em comparação com o pico de mortes em março, em grande medida devido à imunização em massa.

É óbvio, assim, que as vacinas tiveram grandes efeitos não somente sobre a saúde pública e individual, mas também sobre os custos sociais e econômicos associados às hospitalizações e mortes pela pandemia, como tem sido mostrado ao redor do mundo. Um exemplo pode ser encontrado nesse relatório norte-americano. Estes são, no entanto, apenas os aspectos quantificáveis relativos à vacinação. Há efeitos profundos que não podem ser tão facilmente quantificados: os idosos que voltaram a poder celebrar aniversários e feriados com netos e netas, as crianças que puderam retornar presencialmente às escolas, as pessoas com comorbidades que tiveram seus medos diminuídos, toda uma série de trabalhadores que puderam voltar às suas atividades, e assim por diante. Não vacinar-se ou dificultar que as pessoas sejam vacinadas pode ser considerado, assim, uma irresponsabilidade social. Afinal, nossos direitos individuais terminam onde começam a prejudicar a coletividade.

Recentemente, chegou enfim a vez de podermos vacinar nossas crianças! Contudo, muitos pais ainda hesitam em vacinar filhos e filhas contra a COVID-19, apesar das evidências indicando a segurança das vacinas e uma efetividade de 90,7% na prevenção da doença. Isso mesmo diante de dados que indicam que, até dezembro de 2021, mais de 12.000 crianças e adolescentes morreram em todo o mundo devido à doença, ou que, no Brasil, a mortalidade de crianças por COVID-19 é maior do que a mortalidade total devida a outras doenças tratadas com vacinas. Isso reforça a urgência da imunização, conforme aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para a faixa etária entre 5 e 11 anos.

Nos Estados Unidos, um levantamento recente, realizado pela Kaiser Family Foundation (KFF), mostrou que somente 27% dos pais de crianças entre 5 e 11 anos de idade estão ansiosos para imunizar filhos e filhas contra a doença, enquanto 30% afirmam que não os vacinarão. Em muitos outros países, incluindo o Brasil, vemos resistência semelhante.

Estes dados contrastam com a ampla adesão à vacinação nesses mesmos países. O Brasil sempre foi reconhecido mundialmente pela ampla vacinação de suas crianças contra uma diversidade de doenças, da poliomielite ao sarampo. Nos Estados Unidos, mais de 90% das crianças com idade até 24 meses são imunizadas contra várias doenças. A administração de vacinas recomendadas pelas autoridades de saúde foi durante muito tempo – embora não ao longo de toda a sua história – uma medida de prevenção que goza de grande confiança, assim como usar capacete para andar de bicicleta ou motocicleta, ou usar cinto de segurança nos automóveis.

O que há de diferente, então, com a vacina contra a COVID-19? Parte da resposta reside na politização da vacinação contra a doença, parte nas campanhas de desinformação a seu respeito – claramente vinculadas ao oportunismo com que o assunto tem sido explorado na arena política. A exaustão decorrente dos custos pessoais, econômicos e mentais da pandemia também contribui para que as pessoas cedam espaço à desinformação. Contudo, há também o aspecto de que os pais estão familiarizados com vacinas como as do sarampo, da poliomielite, da rubeóla etc., enquanto as vacinas contra a COVID-19 foram produzidas há aproximadamente um ano apenas. Este aspecto se soma à extensão em que muitos pais se encontram submersos numa onda de desinformação e mesmo de campanha ativa visando produzir desconfiança quanto a estas vacinas. Eles escutam e leem pessoas dizendo que as vacinas foram desenvolvidas apressadamente, sem ter na devida conta que as etapas de desenvolvimento e verificação da efetividade e segurança das vacinas aprovadas foram devidamente seguidas. A maioria das pessoas tem dificuldade de entender o processo de desenvolvimento e investigação de vacinas, o que é aproveitado para produzir mensagens negacionistas. Há, em suma, um sério problema de alfabetização em saúde alimentando as suspeitas em relação às vacinas contra a COVID-19. É um desafio a ser enfrentado pelos professores de ciências – e também de outras disciplinas escolares – e pelos pesquisadores que se dedicam a estudar a educação científica.

A infodemia tem sido tão importante quanto a pandemia nesses dois anos em que convivemos com a COVID-19. Entende-se por “infodemia” uma abundância excessiva de informação, seja acurada ou não, que torna mais difícil que as pessoas encontrem fontes confiáveis e orientação consistente.  Nos tempos atuais, em que mídias e redes sociais são usadas pelas pessoas em enorme escala, sendo muito aproveitadas para disseminar desinformação, a infodemia se tornou um problema muito grave. Este não é, contudo, um problema novo, que surgiu com a COVID-19. No próprio campo da saúde pública, esse fenômeno já foi observado. Por exemplo, durante a epidemia de Ebola na República Democrática do Congo em 2019, informações equivocadas, divulgadas em mídias sociais, estiveram associadas a violência, perda de confiança em agentes públicos, perturbações sociais e ataques a trabalhadores da saúde. Em vários países, a capacidade de trabalhadores da saúde de tratar pacientes e comunicar-se com as pessoas sobre o manejo de epidemias e medidas de controle necessárias foi prejudicada por teorias conspiratórias, como a de que eles estariam deliberadamente espalhando vírus.

De qualquer modo, tem sido assombrosa a quantidade de rumores, má informação e teorias da conspiração espalhadas pelos mais diversos meios na atual pandemia. Em uma análise de plataformas online, Islam e colaboradores identificaram 2.311 relatos de rumores, estigmatização e teorias da conspiração relacionadas à COVID-19, circulando em 87 países e 25 línguas, apenas entre 31 de dezembro de 2019 e 5 de abril de 2020. Entre esses relatos, 82% eram falsos, 9%, corretos, e 8% não eram exatamente falsos, mas levavam a compreensões equivocadas.

Na infodemia que acompanha a COVID-19, encontramos afirmações que são ultrajantemente falsas sendo disseminadas, as quais desafiam nossa capacidade de entender como alguém em sã consciência poderia ser capaz de acreditar nelas. Por exemplo, de que gargarejar água salgada morna, ingerir prata coloidal ou aquecer as passagens nasais seriam tratamentos eficazes da doença. De que o SARS-CoV-2 poderia ser transmitido através de telefones celulares. De que não há por que se preocupar com a doença, dado que seria apenas a gripe comum que teria sido renomeada como “coronavírus”. Que beber água sanitária ou álcool, beber chá com urina ou esterco de vaca ou urina de camelo com cal poderia matar o vírus. Que borrifar cloro por todo o corpo poderia prevenir a infecção pelo coronavírus. Que cocaína poderia curar a doença. Que seria possível autodiagnosticar a COVID-19 prendendo a respiração por mais de 10 segundos, entre muitos outros boatos registrados por Islam e colaboradores. Diante dos absurdos, podemos até rir. Contudo, esses boatos não são inofensivos. De modo algum! Apenas para dar um exemplo, o rumor de que o consumo de álcool altamente concentrado poderia desinfetar o corpo e matar o coronavírus causou a morte de aproximadamente 800 pessoas, enquanto 5.876 pessoas foram hospitalizadas e 60 ficaram inteiramente cegas após beber metanol.

Há, contudo, confusão e desinformação sobre a COVID-19 que não têm essa natureza bizarra, mas mostram as dificuldades de as pessoas compreenderem diferentes aspectos da doença, bem como de sua prevenção e de seu tratamento. Muito da hesitação em relação à vacinação se deve mais a estas dificuldades do que à influência dos movimentos anti-vacina, barulhentos como eles sejam. Não que devamos ignorar esses movimentos, que têm crescido e atuado com força política, contribuindo para diminuir a confiança em fontes oficiais no campo da saúde, especialmente entre pessoas politicamente conservadoras. Mas é preciso distinguir entre negacionistas e pessoas, inclusive pais, que mostram hesitação frente às vacinas, mas não são negacionistas. É preciso fazer isso para dialogar e disponibilizar informações que possam esclarecer diferentes aspectos que lhes trazem dúvidas. Enquanto espalhar desinformação sobre vacinas e outros assuntos é algo fácil de se fazer no atual mundo dominado pelas mídias sociais, combater a desinformação é um grande desafio, exigindo que frequentemente conversemos com cada pessoa, exercitemos a escuta ativa, tenhamos atenção com as preocupações pessoais e respondamos às perguntas de modo informado e consciencioso.

A tecnologia de produção de vacinas usando RNA mensageiro oferece um exemplo do tipo de dúvidas que as pessoas têm sem que sejam negacionistas ou algo semelhante. Muitas pessoas acreditam que esta seria uma nova tecnologia desenvolvida durante os anos da pandemia. Assim, soma-se à resistência das pessoas face a estas vacinas a usual hesitação diante de novas tecnologias. Contudo, esta é uma tecnologia que existe há quase duas décadas, sendo importante conversar com as pessoas a seu respeito, dando acesso a informações confiáveis a seu respeito.

A distinção entre negacionistas, antivaxxers e pessoas que apenas estão naturalmente hesitando diante da decisão de vacinar filhos e filhas é realmente importante. Considere-se, por exemplo, que muitos pais que mostram preocupação em vacinar suas crianças já estão eles próprios vacinados contra a COVID-19. Em levantamento feito nos Estados Unidos, país que tem grandes contingentes de pessoas que têm evitado a vacinação, 39% dos pais já vacinados disseram que esperarão mais informações de que as vacinas estão realmente funcionando com segurança nas crianças para então vacinar filhos e filhas. Além disso, 13% dos pais já vacinados afirmaram que não vacinarão as crianças com menos de 11 anos.

Uma das preocupações frequentes dos pais é a de que as vacinas poderiam ter sérios efeitos colaterais ou consequências a longo prazo para suas crianças, incluindo temores quanto à futura fertilidade de de filhos e filhas. No entanto, resultados de testes clínicos mostraram a segurança do uso em crianças pequenas de vacinas contra a COVID-19 que estão sendo aprovadas ao redor do mundo. Por exemplo, um estudo publicado recentemente não encontrou quaisquer efeitos adversos sérios da aplicação da vacina BNT162b2 da Pfizer e BioNTech em 1517 crianças de 5 a 11 anos de idade que completaram a vacinação. A conclusão desse teste clínico foi que as vacinas são seguras e efetivas nessa faixa etária. À medida que os países vão vacinando cada vez mais adolescentes e crianças contra a doença, temos quantidades crescentes de dados atestando sua segurança. Já faz um ano que vacinas têm sido administradas a milhões de pessoas e efeitos colaterais sérios, como, por exemplo, trombose, têm sido muito raros. Não foi encontrada qualquer evidência vinculando vacinação contra COVID-19 a infertilidade. De modo geral, não foram observados quaisquer efeitos adversos a longo termo. Isso não espanta. Dados históricos relativos a diversas vacinas mostram que os efeitos adversos ocorrem principalmente dentro de seis semanas após a vacinação. Consequências a longo prazo da vacinação são, assim, improváveis.

Nos Estados Unidos, por exemplo, até dezembro desse ano 15,6 milhões de adolescentes de 12 a 17 anos haviam recebido pelo menos uma dose de vacina e os efeitos colaterais observados foram, em sua vasta maioria, de natureza suave: dor no local da vacina por um ou dois dias, e dor de cabeça e fadiga que também se resolvem dentro de dias. Sintomas semelhantes aos de um resfriado, como febre e náusea, também ocorrem às vezes, mas resolvem-se de maneira igualmente rápida. Foi observado um risco ligeiramente mais elevado de miocardite – inflamação do músculo cardíaco – em adolescentes que receberam a vacina BNT162b2. Contudo, devemos lembrar que não há medicamento sem efeito colateral. O que importa é a relação entre risco e benefício. De um lado, a chance de desenvolver miocardite em decorrência da vacina é bastante baixa: é uma condição rara entre os vacinados. É seguro dizer, então, como fez o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, que os benefícios das vacinas contra a COVID-19 baseadas em RNAs mensageiros superam os riscos, incluindo o risco de miocardite pós-vacinação, para todas as faixas etárias elegíveis para recebê-las.

Em suma, as vacinas contra COVID-19 têm se mostrado seguras. Podemos dizer sem medo de estarmos errados que a COVID-19 hoje é, em grande medida, uma doença que pode ser prevenida através de vacinação. Contudo, a emergência da variante Omicron, com implicações para a proteção pelas vacinas e a transmissão e severidade da doença ainda largamente desconhecidas, mostra a necessidade de avançar mais com a vacinação, de modo a aumentar a equidade do acesso global a esse recurso fundamental para controlar a pandemia. Não é suficiente que um país cuide da vacinação de sua população. O esforço deve ser coordenado e global, sob pena de a COVID-19 não ser controlada e continuar ceifando milhares de vidas em todo o mundo. O fato de que fechar fronteiras foi a resposta de países desenvolvidos à capacidade da África do Sul de detectar uma variante preocupante do SARS-CoV-2 indica o quanto estamos longe de tal resposta global justa e equitativa.

Apesar dos benefícios da vacinação contra a COVID-19, a hesitação permanece alta em muitos países, e em relação à vacinação de crianças tende a ser multiplicada. Diante disso, é importante que os pais busquem fontes seguras de informação e, ao mesmo tempo, vacinem-se contra a infodemia, os boatos, as teorias da conspiração e o negacionismo.

Para adicionar mais uma boa razão para isso, vale a pena finalizarmos com algumas considerações sobre a síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica associada à COVID-19. Esta é uma condição em que diferentes partes do corpo se inflamam, incluindo o coração, os pulmões, os rins, o cérebro, a pele, os olhos ou órgãos gastrointestinais. Suas causas ainda não são conhecidas, mas sabe-se que muitas crianças acometidas pelo SARS-CoV-2 ou mesmo que tiveram contato com pessoas com COVID-19 têm apresentado essa síndrome. Esta é uma condição que pode tornar-se muito grave e inclusive ser fatal, embora a maioria das crianças diagnosticadas com essa síndrome se recupere com os cuidados médicos devidos.

Vacinar nossas crianças é importante, também, para evitar que possam ser acometidas por essa síndrome. Um estudo recente mostrou que a aplicação de vacinas contra a COVID-19 baseadas em RNA mensageiro está associada a uma menor incidência da síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica em adolescentes. O fato de que os resultados obtidos em testes clínicos com as vacinas contra COVID-19 em adolescentes têm sido replicados em crianças entre 5 e 11 anos de idade sugere que a vacinação provavelmente será também efetiva para a prevenção dessa síndrome entre estas últimas. Claro, teremos de esperar estudos realizados diretamente com crianças nessa faixa etária para consolidar essa conclusão.

As evidências disponíveis mostram que vacinar nossas crianças contra a COVID-19 é uma medida importante para sua segurança, especialmente agora que o retorno às aulas se aproxima. Mais do que informarmo-nos, contudo, ao que parece teremos, como pais, que lutar para que elas tenham acesso a vacinas que podem preservar sua saúde e mesmo suas vidas.

Charbel N. El-Hani

(Instituto de Biologia/UFBA)

PARA SABER MAIS

Cohn, Amanda C., Mahon, Barbara E. & Walensky, Rochelle P. (2021). One Year of COVID-19 Vaccines: A Shot of Hope, a Dose of Reality. JAMA, no prelo.

Levy, Michael et al. (2021). Multisystem Inflammatory Syndrome in Children by COVID-19 Vaccination Status of Adolescents in France. JAMA, no prelo.

Suran, Melissa. (2021). Why Parents Still Hesitate to Vaccinate Their Children Against COVID-19. JAMA, no prelo.

Por que algumas pessoas são mais suscetíveis a casos graves de COVID-19?

Semana passada um avanço importante ocorreu em nosso entendimento de por que algumas pessoas são mais suscetíveis a apresentar quadros graves de COVID-19: autoanticorpos contra diferentes formas de Interferon são uma das explicações.

Desde o início da pandemia da COVID-19, o vírus associado à doença, SARS-CoV-2, infectou pelo menos 211.373.303 pessoas, resultando em 4.424.341 mortes, conforme dados disponibilizados pela OMS em 20/08/2021. Considerando-se subnotificações de casos e mortes pela doença, pode-se estimar que ela causou de 7 a 9 milhões de mortes em todo o mundo. O Brasil é um dos epicentros da doença, registrando até o momento, conforme dados da OMS, 20.556.487 casos confirmados desde o começo da pandemia e 574.209 mortes. Isso significa que cerca de 13% das mortes por COVID-19 aconteceram no país, o que é muito significativo, como podemos perceber ao recordar que 2,8% da população mundial vive no Brasil. Aproximadamente uma em cada 8 pessoas que morreram dessa doença vivia no país. São números desoladores, que devem mobilizar-nos cada vez mais para compreender a doença e tomar as medidas necessárias para evitar contraí-la e disseminá-la.

Um dos aspectos mais importantes é entender por que algumas pessoas exibem maior susceptibilidade a apresentar quadros graves da doença. Há, afinal, uma enorme variabilidade nos quadros clínicos durante a infecção aguda pelo SARS-CoV-2 – Isso sem falar na variabilidade dos quadros de longo termo em pessoas que contraíram a doença, da qual não trataremos aqui. Enquanto 90% das pessoas exibem infecção silenciosa (assintomática) ou suave (paucissintomática), sem necessitar de hospitalização, 10% dos casos requerem admissão no hospital, com pneumonia, e 2% sofrem falência respiratória.

Aos poucos, um quadro mais claro sobre as razões para essa diferença entre quadros suaves e graves vai se formando. Não faz uma semana que um avanço importante foi relatado por Paul Bastard e colaboradores no periódico Science Immunology. Desde os primeiros dias da pandemia, já se sabe que a idade é um dos principais fatores epidemiológicos de risco de hospitalização ou morte por pneumonia causada por COVID-19. O risco desses desfechos da doença dobra a cada cinco anos de idade. Sabe-se também que as frequências de doença crítica e morte são maiores em homens do que em mulheres.

Anteriormente, já havia sido mostrado que erros inatos relacionados à indução e amplificação de Interferons do tipo I poderiam estar associados a pneumonia grave decorrente de COVID-19 em um pequeno conjunto de pacientes. Os Interferons do tipo I constituem um grande grupo de proteínas que atuam na regulação da atividade do sistema imune. Esse achado sugeria, então, que a ação regulatória dessas proteínas é importante para a proteção contra infecção respiratória por SARS-CoV-2. Além disso, estudos anteriores já indicavam que autoanticorpos, ou seja, anticorpos produzidos pelo sistema imune que atacam proteínas do próprio indivíduo, poderiam ter papel relevante no quadro clínico da doença. Em estudo anterior do mesmo grupo de pesquisadores, autoanticorpos capazes de neutralizar dois tipos de Interferon (IFN) – IFN-a2 e/ou IFN-ω – foram detectados no sangue de pelo 10% dos pacientes exibindo pneumonia grave por COVID-19 numa coorte internacional, enquanto não foram encontrados em qualquer um dos pacientes assintomáticos ou com infecção suave. Quando se afirma que um anticorpo neutraliza uma outra substância, o que se está dizendo é que ele inativa (neutraliza) seu efeito sobre o funcionamento de um organismo. Nesse mesmo estudo, foi observada uma grande consistência entre a presença de autoanticorpos e a idade e o sexo como fatores de risco: autoanticorpos contra IFN-a2 e/ou IFN-ω foram encontrados principalmente em homens (95%) e pessoas mais idosas (acima de 65 anos). Os mesmos achados foram replicados em estudos independentes realizados em Amsterdam, Lyon, Madrid, New Haven, San Francisco, bem como em amostras de um banco de plasma de pacientes de COVID-19, indicando claramente um padrão que merecia investigação ulterior, prometendo maior entendimento sobre a variabilidade dos quadros clínicos da doença.

Uma dúvida razoável que se poderia levantar diz respeito à possibilidade de que esses autoanticorpos contra diferentes tipos de Interferon sejam uma consequência da COVID-19 e não uma causa associada à gravidade do quadro clínico. As evidências disponíveis indicavam, contudo, que este não era o caso: autoanticorpos contra Interferons do tipo I haviam sido encontrados em cerca de 0,3% de uma amostra de 1.227 indivíduos da população em geral obtida antes da pandemia, indicando que os autoanticorpos são anteriores à infecção por COVID-19, tendo um possível papel causal na COVID-19 crítica, em vez de terem sido produzidos em decorrência dela.

Diante dessas evidências, Paul Bastard e colaboradores se propuseram a testar duas hipóteses no estudo que relataram semana passada: primeiro, que autoanticorpos neutralizando concentrações de Interferons do tipo I abaixo de 10 ng/mL (nanogramas/mililitro, um grama [g] corresponde a 1.000.000.000 nanogramas) poderiam estar subjacentes a pneumonia grave decorrente de COVID-19 em mais de 10% dos casos; segundo, que a prevalência de autoanticorpos contra Interferons do tipo I na população geral, não-infectada, aumentaria com a idade e seria maior em homens do que em mulheres.

Evidências a favor da hipótese de que autoanticorpos contra Interferons do tipo I subjazem casos de COVID-19 grave

Bastard e colaboradores mostraram, em termos gerais, que autoanticorpos capazes de neutralizar concentrações de Interferons do tipo I menores do que aquelas anteriormente relatadas, mas ainda assim maiores do que as concentrações fisiológicas, são comuns na população mais idosa, com sua prevalência aumentando com a idade na população geral não-infectada por COVID-19, chegando a 4% em indivíduos com mais de 70 anos. Eles estão associados a pelo menos 20% dos casos de COVID-19 crítica em pacientes com mais de 80 anos e a cerca de 20% de todas a mortes causadas por essa doença. Pessoas com mais de 80 anos que apresentavam quadros graves de COVID-19 possuíam em seu sangue autoanticorpos capazes de neutralizar concentrações tão baixas quanto 100 pg/mL (picogramas/mililitro, um grama [g] corresponde a 1.000.000.000.000 picogramas) de IFN-α2 e/ou IFN-ω.

O estudo também mostrou que esses autoanticorpos estavam presentes em mais de 13,6% de todos os pacientes exibindo esse quadro clínico, em todas as faixas etárias, e que pelo menos 18% dos indivíduos falecidos devido à doença apresentavam, na maioria das faixas etárias, esses autoanticorpos. Considerando o Interferon beta – IFN-β -, autoanticorpos dirigidos contra essa proteína foram encontrados em cerca de 1,3% dos pacientes com doença crítica e falecidos, a maioria dos quais não exibiam autoanticorpos contra IFN-α2 e/ou IFN-ω. Entre os pacientes investigados, amostras anteriores à COVID-19 estavam disponíveis em quatro deles, tendo sido mostrado claramente que autoanticorpos contra IFN-α2 e/ou IFN-ω estavam presentes antes da infecção por SARS-CoV-2.

Foi observado que a prevalência de autoanticorpos neutralizando 10 ng/mL e 100 pg/mL de Interferons do tipo I, com exceção de IFN-β, aumenta significativamente com a idade, na população em geral: no caso da primeira concentração de IFNs, 0,17% dos indivíduos com menos de 70 anos testaram positivo para esses autoanticorpos, 1,4% após a idade de 70 anos e 4,2% entre 80 e 85 anos; para a segunda concentração, 1,1% abaixo de 70 anos, 4,4% após os 70 e 7,1% entre 80 e 85. Esse aumento observado com a idade é consistente com outros estudos acerca de vários autoanticorpos, realizados desde os anos 1960.

Este é um achado muito importante: autoanticorpos contra Interferons do tipo I, que não acarretam efeitos clínicos antes da infecção por SARS-CoV-2, oferecem uma explicação convincente do significativo aumento no risco de COVID-19 crítica entre as pessoas mais idosas. Além disso, autoanticorpos neutralizando 100 pg/mL de Interferons do tipo I em plasma diluído dez vezes, correspondendo, portanto, a uma neutralização de 1 ng/mL em condições fisiológicas, podem estar envolvidos em pelo menos 18% das mortes e mais de 20% dos casos críticos em pessoas com mais de 80 anos. Como argumentam os autores, é tentador especular que uma proporção ainda maior de casos de COVID-19 com risco de morte tenham relação com a ação desses autoanticorpos, devido à sua capacidade de neutralizar Interferons do tipo I em concentrações fisiológicas menores. Afinal, eles mostraram in vitro que concentrações dessas proteínas tão baixas quanto 100 pg/mL podem impedir a replicação de SARS-CoV-2 em células epiteliais, sendo que as concentrações detectadas em pacientes com infecção aguda por SARS-CoV-2 que não exibiram quadros graves se encontrava entre 1 e 100 pg/mL. Logo, a capacidade dos autoanticorpos de neutralizarem concentrações tão baixas provavelmente têm grande significado clínico, ainda maior do que aquele que já foi evidenciado pelo estudo.

Por fim, é muito relevante o fato de que os resultados do estudo sugerem que a neutralização de apenas um dos Interferons do tipo I (IFN-α2, IFN-ω, ou IFN-β) pode estar subjacente a quadros de COVID-19 que envolvem riscos à vida.

As consequências propostas: implicações para saúde pública e tratamento de pacientes

São muitas as consequências que Bastard e colaboradores indicam no trabalho publicado na semana passada. Reproduzimos aqui essas indicações, sem perder de vista que há muitas qualificações necessárias em relação a elas. Não é trivial, por exemplo, propor extensa testagem de pacientes e população em geral para detectar autoanticorpos contra Interferons. Se ponderarmos as relações de custo e benefício, seria melhor priorizar o uso de recursos em tal testagem ou na aquisição de vacinas. Como esses custos e benefícios se distribuem em diferentes países, em termos dos recursos disponíveis, da cobertura vacinal, da fase em que se encontra a pandemia, de variáveis demográficas? Em vista desses aspectos, não se pode tomar essas medidas como universalmente válidas. Elas podem ser mais ou menos eficazes a depender de muitas variáveis contextuais.

Dito isso, vale a pena considerar as consequências que os autores percebem em seus achados:

  • Poderia ser importante testar tanto pacientes infectados por SARS-CoV-2 quanto a população em geral para detecção e verificação da atividade neutralizadora de autoanticorpos contra Interferons do tipo I. Esses testes deveriam ser realizados para autoanticorpos contra pelo menos três Interferons: IFN-α2, IFN-ω e IFN-β. Os resultados obtidos também indicam a pertinência de dar prioridade a tais testes entre pessoas mais idosas e pacientes com condições genéticas ou autoimunes associadas com autoanticorpos contra Interferons do tipo I.
  • Pacientes exibindo autoanticorpos contra Interferons do tipo I poderiam ter prioridade de vacinação contra COVID-19.
  • Vacinas vivas atenuadas, incluindo vacina contra o vírus da febre amarela ou vacinas contra SARS-CoV-2 usando aquele vírus como plataforma ou “backbone”, não deveriam ser aplicadas a pacientes exibindo esses autoanticorpos.
  • Embora pareçam saudáveis antes da infecção por SARS-CoV-2, esses pacientes deveriam ser monitorados para outras doenças virais.
  • Indivíduos não-vacinados que possuem autoanticorpos contra Interferons do tipo I deveriam, em caso de infecção por SARS-CoV-2, ser hospitalizados, devido aos riscos de agravamento do quadro clínico. Entre os indicativos para seu tratamento que seguem dos estudos, pode-se comentar sobre a possibilidade de administração precoce de anticorpos monoclonais contra SARS-CoV-2 em tais pacientes, mesmo na ausência de sintomas de pneumonia severa, e de IFN-β na ausência tanto de pneumonia quanto de autoanticorpos contra IFN-β. Tratamento de resgate por plasmaférese seria outra opção terapêutica em pacientes que já apresentam pneumonia. É evidente que, em qualquer caso de recomendação de tratamento, seria preciso verificar a disponibilidade de estudos clínicos de qualidade apoiando sua indicação.
  • Hemoderivados, especialmente plasma, deveriam ser testados para autoanticorpos contra Interferons do tipo I e quaisquer produtos contendo esses anticorpos deveriam ser excluídos da doação.
  • Considerando que uma injeção única de IFN-β é inócua e potencialmente eficaz, terapia precoce com IFN-β poderia ser considerada para contatos de pessoas com COVID-19 ou durante a primeira semana após a infecção, especialmente em pacientes idosos, com maior risco de pneumonia crítica, exibindo autoanticorpos contra IFN-α2 e IFN-ω, mas não contra IFN-β. Novamente, nesse caso seria preciso verificar a disponibilidade de evidência favorável ao tratamento, oriunda de estudos clínicos de qualidade.
  • Será importante elucidar o mecanismo subjacente ao desenvolvimento de autoanticorpos contra Interferons do tipo I, que pode diferir entre pacientes com menos e mais de 65 anos de idade.

A presença desses autoanticorpos contra Interferons do tipo I certamente não é a única causa de casos graves de COVID-19, como mostram claramente os percentuais de pacientes com tal quadro clínico nos quais foram encontrados. Ela é, no entanto, uma peça muito importante, entre muitas outras, do quebra-cabeças da variabilidade do quadro clínico da doença, com consequências muito importantes para a saúde pública e o tratamento dos pacientes, como destacamos acima. O estudo que hoje discutimos é um belo exemplo da importância da pesquisa científica para enfrentar a situação grave que vivemos.

Charbel N. El-Hani

(Instituto de Biologia/UFBA)

PARA SABER MAIS

Bastard, Paul et al. (2021). Autoantibodies neutralizing type I IFNs are present in ~4% of uninfected individuals over 70 years old and account for ~20% of COVID-19 deaths. Science Immunology, no prelo.

Como dizer sem medo frases como “a insulina é liberada pelo pâncreas para diminuir a glicemia no sangue”

Sabe quando alguém fala que a insulina é liberada para diminuir glicemia e você se incomoda?! Nessa postagem, argumentamos que há maneiras legítimas e consistentes de usar afirmações dessa natureza (chamadas “teleológicas”), sem implicar desacordo com o discurso científico contemporâneo. Uma explicação é dita “teleológica” quando apela a noções como fins, metas, objetivos, propósitos. As obras citadas proporcionam uma jornada de leituras para os interessados em aprofundar o entendimento de como falar teleologicamente de maneira cientificamente correta.

O que é teleologia e por que ela invoca medo?

O uso da linguagem teleológica nas explicações sobre sistemas vivos sempre causa controvérsias e é frequentemente rejeitada por biólogos, cientistas de outras áreas, professores de ciências e biologia, e muitas outras pessoas. A razão fundamental para usar essa linguagem reside no fato de que sistemas vivos exibem fenômenos que nos incitam a pensar nas funções de suas características e de seus comportamentos, até mesmo em propósitos que parecem buscar cumprir. Assim, uma explicação teleológica apela a noções como fins, metas, objetivos, propósitos.

O incômodo que alguns sentem quando uma pessoa diz uma frase como “a insulina é liberada pelo pâncreas para diminuir a glicemia no sangue” é motivado, muitas vezes, por razões que já foram amplamente discutidas e superadas na filosofia da biologia, mostrando a necessidade de um maior acesso a esses avanços, na formação de cientistas e professores de ciências, e também da população em geral. Esta postagem é um primeiro esforço nessa direção, o que já nos permite dizer que não será exaustiva, e tampouco será nosso único texto a tratar do tema aqui no Darwinianas.

Em uma explicação teleológica, como explica o filósofo Charles Taylor, dizemos que um evento ocorre para certo fim, com um dado propósito, ou seja, que ele ocorre porque é o tipo de evento que produz aquele fim. Dessa maneira, o fato de que ele é o evento necessário para que se obtenha, num certo estado de coisas, o fim em que questão é considerado, em tal explicação, condição suficiente para a ocorrência do evento. Não se trata, claro, da única explicação possível. Se explico o comportamento de caça de uma onça em termos do fim de capturar uma presa, e interpreto esta como uma explicação suficiente do comportamento da onça, isso não me impede de explicar o mesmo comportamento de outra perspectiva, por exemplo, em termos dos mecanismos fisiológicos subjacentes ao comportamento. Estas explicações podem ser vistas como complementares, e não como rivais.

Noções como função, propósito, objetivo etc. comparecem, por exemplo, em toda uma série de questões comuns em livros didáticos e nos argumentos construídos para respondê-las, assim como na própria vida cotidiana. Por exemplo: “Quais as funções do complexo golgiense?” (em Biologia, de Amabis e Martho); “Que trabalhos especializados executam esses componentes [tronco cerebral, medula, cerebelo] do encéfalo?” (Em Biologia, de Frota-Pessoa); Qual o objetivo do comportamento de corte do galo-da-serra-do-Pará (Rupicola rupicola)? (v) Qual o propósito da viagem de Mariana à Serra da Lousã? Todas essas perguntas solicitam uma explicação teleológica, ou seja, que respondamos pela apresentação da função, do objetivo ou do propósito da estrutura ou do comportamento em questão. Essa apresentação é, por sua vez, considerada uma explicação de por que Mariana fez esta viagem, ou de por que o galo-da-serra-do-Pará exibe tal comportamento de corte, ou de por que complexo golgiense e componentes do encéfalo funcionam da maneira como funcionam. Por conta desse papel explicativo, considera-se em geral que noções teleológicas não podem ser eliminadas das ciências biológicas.

Contudo, raciocínios teleológicos também trazem preocupações importantes, que estão por trás da tendência de muitos de rejeitá-los. Estaríamos assemelhando os seres vivos demasiadamente a nós mesmos ao explicá-los apelando a funções e propósitos? Estaríamos nos comprometendo com um modo de explicar esses seres que não se mostra compatível com o naturalismo que caracteriza o discurso científico contemporâneo?

Parte das dificuldades decorre do fato de que a teleologia foi descartada nas ciências físicas modernas como explicação válida de fenômenos naturais, por conta de uma suposta inversão da ordem temporal nas relações causais. Supostamente, nas explicações teleológicas um efeito estaria sendo entendido como determinante de sua própria causa, conflitando com um princípio largamente aceito desde a revolução científica do século XVII, o de que os efeitos seguem às causas. Outras dificuldades decorreram da naturalização do discurso científico no século XIX, uma vez que as explicações teleológicas pareceriam implicar alguma forma de planejamento dos seres vivos. Por fim, do pensamento darwinista decorre uma terceira dificuldade, em virtude da visão – também largamente aceita – de que a evolução é um processo histórico aberto, que não tem metas ou finalidades, como, por exemplo, a origem da espécie humana. Nessa postagem, focaremos nossa atenção nessas três dificuldades.

Todas estas são preocupações importantes, que demandam soluções: é preciso explicar a teleologia eliminando a possibilidade de interpretação como se invertesse a ordem temporal de causas e efeitos. É fundamental para uma explicação compatível com a ciência naturalizar o entendimento teleológico dos seres vivos, tornando-o inteiramente compatível com o modo como a causalidade é pensada na ciência moderna, em particular, sem que os antecedentes causais de um fenômeno natural jamais incluam causas não-naturais. Por fim, a ideia de que a evolução em si tem metas deve ser recusada.

O ser vivo como causa e efeito de si mesmo: naturalizando a teleologia

O que pode ser novidade para muitos é que todas essas preocupações têm soluções já bem desenvolvidas, que tornam possível tanto o professor de ciências ou biologia, quanto o biólogo, quanto qualquer cientista ou outra pessoa, se bem informados, usar explicações teleológicas de modo válido e consistente com o pensamento científico contemporâneo.

Desde a Crítica do Juízo, do filósofo alemão Immanuel Kant, tem sido elaborado com profundidade cada vez maior um entendimento dos sistemas vivos como meios e fins em si mesmos, de modo que fenômenos associados a objetivos, metas, funções têm uma recursividade que torna sem sentido afirmar que efeitos viriam, nesses casos, após as causas. Na teoria da autonomia biológica desenvolvida por Alvaro Moreno, Matteo Mossio e colaboradores, por exemplo, os sistemas vivos são compreendidos como detentores de um “propósito intrínseco”, com base no entendimento de sua organização como inerentemente teleológica, no preciso sentido de que sua própria atividade é, de maneira fundamental, dirigida a uma finalidade (telos), a manutenção das condições de sua própria existência.

Esta é, além disso, uma compreensão inteiramente naturalizada da teleologia, que demarca regimes causais distintivos nos sistemas vivos, irredutíveis a processos físico-químicos, embora dependentes deles, mas fundamenta sua legitimidade em termos de uma concepção de causalidade cientificamente aceitável. Essa visão permite deixar de lado, então, preocupações tanto com a ordem temporal de causas e efeitos, quanto com a naturalização da explicação teleológica.

Nesta teoria, o que conecta a organização biológica à teleologia intrínseca é o conceito de autodeterminação: a organização biológica determina a si mesma no sentido de que os efeitos de sua atividade contribuem, numa relação circular, para sua automanutenção, e assim para a persistência da própria atividade. Nessa relação circular, causas e efeitos se concatenam de tal modo que não se pode supor qualquer inversão da ordem temporal esperada. Desse modo, também se estabelece uma noção biologicamente distintiva de propósito: a teleologia é intrínseca no caso dos sistemas vivos, e não extrínseca, como nos artefatos, uma distinção que foi discutida décadas atrás pelo filósofo Hans Jonas.

Duas consequências muito importantes seguem dessa distinção. Primeiro, que ao entender os seres vivos teleologicamente não há qualquer necessidade de postular um designer externo a eles, comprometendo-se com visões não-naturalizadas. Isso significaria propor que a teleologia dos seres vivos é extrínseca, que, como no caso dos artefatos, eles seriam produzidos desde fora. Mas desse modo perde-se de vista um dos aspectos mais fundamentais desses seres, o de que eles produzem a si mesmos, e assim exibem uma teleologia intrínseca, que lhes é característica. Segundo, a distinção entre teleologia intrínseca e extrínseca mostra que identificar o propósito dos seres vivos com a manutenção de suas condições de existência e atividade significa que não há necessidade de apelar a ideias antropomórficas, como desejo, volição, deliberação etc., para entender seu funcionamento teleológico.

É importante perceber que a teleologia intrínseca dos seres vivos é caracterizada por uma normatividade, isto é, ela diz respeito não somente ao que o ser vivo factualmente faz, mas também – e fundamentalmente – ao que ele normativamente deve fazer. E, mais, esta é uma normatividade naturalizada, porque baseada na automanutenção do sistema: um critério naturalizado estabelece quais normas o sistema deve seguir, dado que ele deve se comportar de uma maneira específica, e suas partes devem funcionar de uma maneira específica, porque, de outro modo, o sistema (e, logo, suas partes) deixa de existir. É nesse sentido que se pode dizer que as condições de existência de um sistema vivo são as normas (intrínsecas e naturalizadas) de sua própria atividade (dotada do propósito de sua automanutenção).

Essa naturalização da teleologia implica, então, um entendimento naturalizado de um dos conceitos mais usados na biologia, cujo papel explanatório nem sempre é bem entendido, a saber, o conceito de função. Na teoria da autonomia biológica que estamos discutindo aqui, quando funções são atribuídas às partes dos sistemas vivos, entende-se que elas correspondem aos efeitos causais dessas partes que contribuem para manter a organização do sistema. A autodeterminação e automanutenção do sistema são alcançadas em virtude das intrincadas interrelações de componentes e suas funções, que formam uma rede na qual eles são tanto mutuamente dependentes, quanto funcionalmente complementares. Por exemplo, nosso corpo se automantém porque nossos sistemas orgânicos (circulatório, respiratório, digestório etc.) se relacionam uns com os outros numa rede de dependências mútuas e complementares, que determinam nossas condições de existência e, assim, suas próprias condições de existência. Estamos de volta a Kant: o raciocínio teleológico oferece um princípio organizador de nosso entendimento dos sistemas vivos, ao colocar em primeiro plano uma explicação do ser vivo em termos de sua unidade, considerando que ele é tanto causa quanto efeito de si mesmo.

Distinguindo formas legitimas e ilegítimas do raciocínio teleológico na ciência contemporânea

Por fim, uma distinção apropriada entre formas de raciocínio teleológico torna possível separar usos cientificamente legítimos e ilegítimos. Em seu O Desenvolvimento do Conhecimento Biológico, o biólogo Ernst Mayr propõe uma diferenciação útil entre modos de pensar teleologicamente aceitáveis ou não no discurso científico. Ele aborda dois modos de pensar que, malgrado sua legitimidade e contribuição em outros sistemas de conhecimento, não encontram espaço na ciência contemporânea: de um lado, a ideia de uma teleologia cósmica, conforme a qual todo o universo ou cosmos seria teleológico, como assumido por filósofos como Aristóteles ou religiões como as judaico-cristãs; de outro, a ideia de que o processo evolutivo teria uma meta, usualmente vista como a origem dos seres humanos. No entanto, explicações que apelam a tendências em processos naturais (que Mayr denomina “teleomáticos”), devidas ao fato de que esses processos obedecem a leis, são inteiramente válidas no discurso científico. E o mesmo pode ser dito de explicações teleológicas distintivas dos sistemas vivos, como abordamos acima, mas sem mobilizar – como Mayr – a ideia de teleonomia, que se apoia na suposição de que tais sistemas exibem comportamentos e atividades dirigidas a fim porque possuiriam programas internos (frequentemente entendidos como programas genéticos) que trariam em si mesmos a especificação de suas finalidades.

Não utilizamos essa interpretação por recusarmos a ideia de programa, como insuficiente para entender sistemas que não têm distinção clara nem entre sua estrutura material (hardware) e sua operação lógica (software), nem tampouco entre dados e programas, como propôs o filósofo Henri Atlan. Isso para não falar do instrucionismo e preformacionismo incorporados na ideia de programas genéticos. Este não é o espaço, contudo, para estendermos essa discussão. Como foi dito acima, há muito a dizer sobre o assunto da teleologia e não podemos ser exaustivos no espaço que temos.

De qualquer modo, esperamos que estes primeiros passos possam dirimir, ao menos em parte, o medo que os biólogos e outros cientistas, ou professores e outros profissionais, costumam ter da teleologia, e, ao mesmo tempo, convidar os leitores a pensarem na teleologia distintiva dos sistemas vivos de modo naturalizado e intrínseco a eles. Até as próximas palavras sobre esse tema tão instigante! Nos links do texto e nas indicações abaixo, há muitas jornadas nas quais se lançarem antes de voltarmos ao assunto aqui no Darwinianas.

Charbel N. El-Hani

(Instituto de Biologia/UFBA)

PARA SABER MAIS

Allen, Colin & Neal, Jacob. (2020). Teleological notions in biology. The Stanford encyclopedia of philosophy (Spring 2020 Edition), Edward N. Zalta (ed.).

Jonas, Hans. (1966). The phenomenon of life. Towards a philosophical biology. New York, NY: Harper and Row.

Mayr, Ernst. (1982). The growth of biological thought. Cambridge, MA: Harvard University Press.

Moreno, Alvaro & Mossio, Mossio. (2015). Biological autonomy. Dordrecht: Springer.

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O que é ciência, afinal?

Se as pessoas entendessem mais como a ciência funciona, o conhecimento científico poderia tanto ser usado de modo mais proveitoso e justo na sociedade, quanto poderia ser submetido a crítica mais informada. Para alcançar esse entendimento, é necessário criar condições para que aprendam sobre a natureza das ciências. Nesta postagem, apresentamos uma visão sobre a natureza das ciências que faz jus às suas pluralidade e complexidade.

O mês de março foi o primeiro em que um de nós (C. El-Hani) ministrou aulas de forma remota. Em princípio, a expectativa não era das melhores, por uma antecipação das dificuldades e dos problemas dessa modalidade de ensino. No entanto, um curso que se estendeu por todo o mês, Introdução à Teoria Ecológica, Aplicação e Valores, do Programa de Pós-Graduação em Ecologia da UFBA, que também envolveu os professores Pavel Dodonov e Cláudio Reis, terminou por ser uma das experiências mais ricas e interessantes de sua carreira docente. Malgrado todas as dificuldades que temos vivido, não é pouca coisa poder dizer isso quase aos trinta anos de docência. Continue Lendo “O que é ciência, afinal?”

Mais além do dilema entre aprender e fazer no tratamento da COVID-19, fica a necessidade de aprender fazendo

Quando enfrentamos uma nova doença e/ou buscamos medicamentos e vacinas, ensaios clínicos são estritamente necessários, como parte do processo meticuloso, cuidadoso de que dependemos para saber se as pílulas que tomamos ou as injeções que nos aplicam são eficazes e seguras, já discutido aqui em Darwinianas. Efetividade e segurança devem ser bem evidenciadas, porque medicamentos, como qualquer outra substância, podem fazer por vezes mais mal do que bem. Quando se prescrevem medicamentos que não foram ainda suficientemente testados, sob os quais ainda há dúvidas sobre sua efetividade ou segurança (pior ainda: quando há evidência de carecem desses atributos), dois princípios fundamentais da prática médica estão sendo negligenciados: In dubio abstine (quando em dúvida, abstenha de tratar) e Primum non nocere (antes de qualquer coisa, não cause mal).

A cloroquina e seus derivativos, como a hidroxicloroquina, fornecem bom exemplo de por que ensaios clínicos são um requisito inquestionável do uso seguro de medicamentos. A margem de segurança desses medicamentos é relativamente estreita, especialmente por causa de seus efeitos cardiovasculares adversos, ou seja, a diferença entre uma dose com poder terapêutico e uma dose tóxica é relativamente pequena. Overdose de hidroxicloroquina é, além disso, de difícil tratamento, e não há antídoto conhecido. A hype em torno dessa droga levou a prejuízos a pessoas que se automedicaram com ela durante a atual pandemia, como mostram relatos de overdoses, hospitalização e mortes em contextos tão distintos quanto os da Nigéria e dos Estados Unidos. É uma trágica ironia que apenas quatro dias antes de um homem morrer por overdose de cloroquina no Arizona, o atual presidente norte-americano tenha dito, a respeito da hidroxicloroquina: “a coisa boa é que ela tem sido usada por um longo tempo, de maneira que, se as coisas não saírem como planejado, sabemos que ninguém será morto por ela”. Esses fatos mostram claramente a necessidade de maior prudência no uso dessa droga, tornando bastante evidente que, mesmo que ela venha a mostrar efeito no tratamento de determinada doença, quão importante é estabelecer, através de ensaios clínicos bem conduzidos, qual dosagem, extensão do tratamento, forma de administração utilizar.

Ensaios clínicos são fundamentais, pois, para que se torne possível uma prática médica responsável. Além disso, como os recursos necessários para realizar um ensaio clínico de boa qualidade são muitos, em termos da equipe necessária, das horas de trabalho, da logística e dos insumos materiais, ensaios pré-clínicos também são importantes, porque se evita que se dispenda muitos recursos na investigação de drogas com pouca chance de terem sucesso ou de serem seguros. Os ensaios pré-clínicos incluem estudos in vitro (em placas de cultura, tubos de ensaio etc.) e estudos em animais (os quais implicam uma série de aspectos éticos dos quais não poderei tratar nesse texto). No que diz respeito aos ensaios clínicos, uma vez que um medicamento tenha mostrado eficácia em doses seguras em ensaios pré-clínicos, a melhor opção é realizar ensaios clínicos controlados e randomizados (RCTs, randomized controlled trials), caso isso seja possível. Esses são ensaios nos quais terapias são comparadas com controles, como tratamento padrão ou placebo, e pacientes são alocados aleatoriamente nos grupos que receberão diferentes tratamentos.

Experiências anteriores em epidemias, por exemplo, as de Ebola, produziram um elevado nível de concordância na comunidade acadêmica de que pesquisa sólida, convincente, pode e deve ser feita mesmo durante emergências de saúde pública, bem como que RCTs constituem a abordagem mais ética e confiável para identificar-se rapidamente tratamentos efetivos e propiciar que a maioria das pessoas seja beneficiada, e não prejudicada, conforme requerido pelo princípio Primum non nocere.

A COVID-19 não estabelece qualquer exceção em relação aos princípios e ideias expressas acima. Não há dúvida de que qualquer pessoa racional deve compreender as dificuldades de fazer pesquisa sob enorme pressão para identificar rapidamente tratamentos efetivos para a doença e nas condições desafiadoras colocadas por instituições de saúde, como hospitais, superlotados, nos quais trabalhadores da saúde lutam contra uma doença nova e mortal, que afeta números muito grandes de pacientes e coloca a eles próprios em risco. No entanto, como escrevem Alexander e colaboradores, “essas circunstâncias infelizes e sem precedentes não transformam dados frágeis em resultados convincentes”. A despeito das dificuldades da crise atual, é importante dirigir os esforços na direção de RCTs bem planejados e éticos, prospectivos e não retrospectivos (ou seja, atuando no tratamento de pacientes, e não revisando tratamentos já feitos), e de larga escala, envolvendo múltiplos centros e grandes quantidades de pacientes em diversas regiões do mundo. Para além disso, diretrizes devem ser usadas no planejamento dos estudos clínicos, orientando o modo como serão recrutados pacientes, como será feita a randomização e o uso de duplo-cego, quais resultados do tratamento serão mensurados e como etc. Somente com tal padronização, a combinação do conhecimento obtidos em diferentes ensaios clínicos poderá ser feita com poder estatístico suficiente para estabelecer de modo convincente a efetividade e segurança de determinada profilaxia ou tratamento, ou para comparar a efetivamente de diferentes abordagens terapêuticas. Daí a importância de a OMS ter buscado ordenar a busca por tratamentos para a COVID-19, publicando orientações gerais para a condução de RCTs. A realização de estudos confiáveis se torna sine qua non quando vemos a evidência ser soterrada sob a veemência e a desinformação em virtude do forte movimento de algumas lideranças políticas na defesa de medicamentos para cuja efetividade e segurança não há evidência suficiente.

É preocupante ver na literatura sobre tratamento da COVID-19, a larga multiplicação de estudos observacionais, nos quais se investiga o efeito de uma droga ou de outra intervenção, sem manipulação ou intervenção. Apesar de fornecerem informação relevante e complementar àquela produzida por RCTs, esses estudos não fornecem evidência suficientemente confiável para a tomada de decisões sobre o tratamento de pacientes. A questão não é – que se entenda bem – que estudos observacionais não deveriam ser feitos, mas que eles têm ganhado precedência inclusive em situações nas quais isso não é suficientemente compreensível. Por exemplo, há estudos observacionais sobre tratamentos para COVID-19 que recrutaram grandes números de pacientes e, ainda assim, não utilizaram grupos controle, nem mesmo comparando o tratamento experimental com tratamento padrão (standard of care), uma vez que há questões éticas envolvidas no uso de placebo numa circunstância como a presente. Ademais, parece importante evitar a proliferação de estudos clínicos pequenos, sem poder estatístico suficiente para gerar qualquer conclusão sólida, ou estudos que apenas comparam duas intervenções terapêuticas distintas, sem utilizar controles. Ambas as situações têm ocorrido com frequência ao longo da pandemia.

Estudos observacionais são úteis, mas tendem a superestimar a contribuição de um tratamento. No caso da COVID-19, é importante não perder de vista que a maioria dos pacientes apresentam doença leve a moderada e, nesses casos, o tratamento padrão tenderá a aliviar os sintomas respiratórios e sinais vitais. Ademais, remissão espontânea da COVID-19 pode chegar a 90% dos casos ou mais. Como se poderia, então, alcançar conclusões sólidas acerca das contribuições de possíveis tratamentos numa doença com tais níveis de remissão espontânea sem o uso de amostras suficientemente grandes e grupos controle? A resposta é, simplesmente, que não se pode, com tal desenho experimental, chegar a qualquer conclusão convincente acerca da efetividade e segurança de uma dada intervenção terapêutica. Em tal desenho experimental, é um erro óbvio atribuir uma eventual cura aos efeitos do medicamento, ou resultados negativos à doença.

Da necessidade de “aprender fazendo” na crise da COVID-19

Contudo, ao pensar nas terapias para a COVID-19, é importante considerar como a pandemia abriga um conflito entre a pesquisa acadêmica nas ciências biomédicas e a prática da medicina clínica. Nesta última, médicos fazem uso não apenas de medicina baseada em evidência, mas também de tratamentos que por vezes não são baseados na evidência clínica mais rigorosa, mas em plausibilidade biológica, dados pré-clínicos ou evidência clínica limitada. Não é difícil apreciar como a opção por estes últimos tratamentos é incrementada numa situação como a da atual pandemia, para a qual não há ainda tratamento aprovado e poucos medicamentos gozam de evidência favorável mais sólida. Na altura em que escrevo esse texto, há somente dois medicamentos apoiados por evidências mais convincentes, para tratamento de doentes graves de COVID-19: dexametasona e remdesivir. Nos casos leves a moderados, por sua vez, não há ainda qualquer terapia bem apoiada. No entanto, é exatamente nestes últimos casos que a prescrição de drogas ainda carentes de evidência suficiente quanto à sua efetividade se torna menos recomendável, uma vez que os benefícios terapêuticos tendem a ser proporcionais à severidade do caso, enquanto os riscos de um dado tratamento tendem a ser relativamente mais constantes. Assim, a relação risco-benefício de um tratamento tende a ser menos favorável em casos mais leves do que em casos mais severos.

Reconhecer os dilemas envolvendo a pesquisa biomédica e a prática clínica em circunstâncias como as que hoje vivenciamos é muito diferente, pois, de uma defesa imprudente de terapias como se fossem balas mágicas, pílulas salvadoras, ignorando os riscos envolvidos no uso de tratamentos cuja efetividade e segurança não estão ainda suficientemente estabelecidas. Uma solução para esses dilemas não segue de uma negligência quanto à necessidade de evidência de alta qualidade para a recomendação mais confiável e eventual aprovação de abordagens profiláticas e terapêuticas da COVID-19. Para os clínicos, não é pequeno o desafio de fazer julgamentos e tomar decisões na ausência de evidência suficiente, malgrado o suporte dado por seu próprio conhecimento e experiência. Numa situação como esta, torna-se ainda mais fundamental considerar de maneira crítica, ponderada a evidência disponível, como base para avaliar os riscos e benefícios das opções feitas no tratamento de cada paciente. Tanto pesquisadores quanto trabalhadores da saúde devem ter a responsabilidade de se manter verdadeiramente informados, de pensar com clareza e de se comunicar com inteligência, evitando ser influenciados por, quanto mais comprometer-se com fake news e desinformação, tão frequentes na infodemia que anda lado a lado com a pandemia, menos ainda ser fontes de tal desinformação.

Recentemente Derek C. Angus publicou um artigo de opinião que remete ao dilema entre medicina clínica e pesquisa biomédica em contextos como o da crise atual. Ele trata esses dilemas em termos de um trade-off entre prospecção (exploration) e explotação (exploitation). A prospecção diz respeito a ações realizadas para gerar novos conhecimentos e diminuir a incerteza através de investigação, a uma opção por “dever aprender” (“must learn” option) a respeito de uma situação. Por sua vez, a explotação corresponde à ação com base no conhecimento, nos hábitos, nas crenças correntes, a despeito da incerteza, a uma opção por “fazer agora” (“just do it” option) o que parece necessário para enfrentar a situação. O conflito entre medicina clínica e pesquisa biomédica discutido acima resulta, em última análise, da interpretação dicotômica dessas duas opções: ou fazemos algo (tratamos o paciente) ou aprendemos algo (testamos o medicamento). Torna-se um desafio chave para os avanços na terapia da COVID-19, então, superar essa dicotomia, reconhecendo – como argumenta Angus – que trade-offs entre prospecção e explotação são, em geral, melhor resolvidos por uma estratégia que permite fazer e aprender ao mesmo tempo. E este não é o caso somente da medicina clínica, mas uma dificuldade que encontraremos em outros campos, a exemplo do trade-off entre aprender via pesquisa ecológica e atuar na tomada de decisão ambiental.

Se nos deslocarmos do conflito, da polarização entre fazer e aprender para uma integração entre ação e aprendizagem, poderemos ser capazes de maximizar tanto resultado de curto termo, por exemplo, aumentando as chances de recuperação de pacientes em estados mais graves, quanto de longo termo, avançando na descoberta, no teste rigoroso e na disseminação de novos tratamentos. Para além dos tempos excessivamente polarizados que vivemos, ou das atitudes negacionistas face à ciência ou mesmo ao conhecimento em termos mais gerais, a construção de uma abordagem integrada para fazer e simultaneamente aprender também é restringida pela organização institucional da pesquisa biomédica e dos cuidados à saúde. Cada uma dessas tarefas é feita separadamente, com a prática clínica (o fazer) e a pesquisa clínica (o aprender) ocorrendo mais frequentemente em instituições distintas, envolvendo diferentes agentes e procedimentos, e sendo também financiadas separadamente. Daí resulta que diferentes profissionais são prioritariamente responsáveis por cada um dos polos do trade-off, cada qual confiando em sua própria base de conhecimentos profissionais, critérios, métodos, práticas, e comprometidos com seus próprios valores e interesses. Esta é uma situação que alimenta o conflito entre prática clínica e pesquisa biomédica, potencializando o trade-off entre aprender e fazer. E não são baixos seus custos, na medida em que, de um lado, a aquisição e disseminação de conhecimento crucialmente importante se tornam mais lentas, e, de outro, pacientes são submetidos a tratamentos que podem exibir relações risco-benefício inaceitáveis na exata medida em que a pressão para “fazer algo” é amplificada.

Em tal situação, otimizar a relação entre fazer e aprender e, assim, negociar com sucesso o conflito entre medicina clínica e pesquisa biomédica se torna urgente. Para médicos clínicos e pesquisadores biomédicos, coloca-se a necessidade de integrar seus trabalhos e adaptar suas estratégias e abordagens uns aos outros. Três desafios para essa integração são identificados por Angus.

Primeiro, se de um lado a alocação aleatória de pacientes em diferentes grupos num ensaio clínico (randomização) é fundamental para estabelecer vínculos causais bem apoiados entre tratamentos e efeitos, essa randomização pode ser muito desconfortável na prática médica. É  verdade que um médico que simplesmente deseja prescrever uma droga a um paciente, em vez de aceitar uma alocação aleatória, pode não estar servindo ao melhor interesse de seu paciente, uma vez que a droga pode, ao fim e ao cabo, exibir uma relação ruim entre risco e benefício. Contudo, não se deve ignorar o profundo desconforto que pode ser vivenciado por médicos clínicos diante da alocação aleatória de pacientes, dada a angústia de lidar com uma pandemia como a que estamos atravessando. Este é um aspecto central dos dilemas mencionados acima: embora uma médica possa eventualmente reconhecer que a evidência a favor de determinado tratamento é incerta, ela ainda assim pode sentir-se compelida a prescrevê-lo, caso acredite que as chances de benefícios são maiores do que os riscos de prejuízos. Enquanto as consequências para o paciente por quem a médica é e se sente responsável podem ser imediatas e notáveis, os benefícios da aprendizagem a ser alcançada num ensaio clínico e as consequências do atraso na geração de conhecimentos necessários caso não sejam recrutados pacientes podem parecer, para ela, abstratas e remotas, difíceis de serem avaliadas e para além de suas responsabilidades.

É evidente, contudo, que há problemas com a inferência feita, uma vez que os resultados podem ser imediatos e notáveis também de uma maneira maléfica ao paciente, sendo a inferência colocada em xeque diante dos princípios In dubio abstine and Primum non nocere. Além disso, se o medicamento não traz prejuízo mas também não traz benefício, podemos dessa maneira perder a oportunidade de aprender, mantendo-se a prescrição de um medicamento sem efetividade, enquanto outras drogas não são consideradas ou testadas. A solução, portanto, não é confiar simplesmente em inferências que, mesmo mal apoiadas, tragam alívio à pressão cotidiana sofrida pelos trabalhadores da saúde, mas, antes, incorporar não somente sua angústia e urgência, mas também – e especialmente – seus conhecimentos e suas práticas no planejamento e na execução de ensaios clínicos que busquem um compromisso entre aprender e fazer. Trabalho colaborativo e integrado entre médicos clínicos e pesquisadores biomédicos pode propiciar uma plataforma para acomodar suas diferentes demandas, conhecimentos e práticas.

Um segundo desafio diz respeito ao fato de que, quando um ensaio clínico é implementado, as atividades necessárias para sua execução incluem muitos passos que interferem nos procedimentos clínicos e desviam a atenção das médicas de outras ações clínicas importantes. Portanto, um ensaio planejado de modo a integrar-se mais facilmente à prática clínica será mais atraente para médicas que desejem colaborar com a pesquisa clínica, favorecendo a integração de fazer e aprender.

Um terceiro desafio reside na dificuldade de estabelecer um plano unificado, devido ao caos que se instalou na realização de ensaios clínicos durante a pandemia. Há tantos testes de possíveis medicamentos para tratar a COVID-19 em andamento que é fácil concordar com os muitos apelos a uma maior coordenação entre os estudos. Médicos e hospitais, que já estão sobrecarregados pela própria pandemia, sofrem pressão adicional devido às muitas solicitações para participação em ensaios clínicos. O resultado são ensaios clínicos competindo uns com os outros por financiamento e recrutamento de pacientes, entre outros aspectos. Há, além disso, um conflito em andamento entre ideias rivais sobre quais terapias deveriam ser testadas e quais abordagens seriam mais apropriadas para a realização dos ensaios, às vezes com a discussão chegando a uma defesa de flexibilização da metodologia que pode mostrar-se excessiva, trazendo riscos de que sejam produzidas evidências sem utilidade ou que conduzam a equívocos. Em circunstâncias tão fragmentadas, é improvável que se consiga a integração entre pesquisa e prática clínicas que tornaria possível aprender e fazer ao mesmo tempo.

Não obstante esses desafios, podemos testemunhar no cenário da pesquisa sobre a COVID-19 avanços na direção de uma otimização da relação entre aprender e fazer. À guisa de exemplo, o ensaio clínico SOLIDARITY, coordenado pela OMS, caminha na direção de uma maior integração entre aprender e fazer. Este é um grande ensaio clínico multicêntrico, randomizado, utilizando uma abordagem pragmática e adaptativa, que está sendo realizado em 13 países (incluindo o Brasil), envolvendo milhares de pacientes. Um ensaio “pragmático” busca mimetizar, ao máximo possível, as condições reais das populações alvo e dos contextos clínicos, sendo planejado para dar conta das necessidades de tomadores de decisão sobre a saúde (por exemplo, gestores públicos) e o tratamento clínico (por exemplo, médicos). Num ensaio “adaptativo”, pode-se interromper o teste de drogas que mostram, ao longo do ensaio, falta de efetividade ou trazem preocupações importantes quanto à sua segurança, assim como pode-se adicionar novos medicamentos que pareçam promissores. Inicialmente, foi proposto o teste de quatro tratamentos potenciais no ensaio SOLIDARITY, todos em comparação com tratamento padrão (no grupo controle): remdesivir; lopinavir e ritonavir + interferon-β; apenas lopinavir e ritonavir; e cloroquina/hidroxicloroquina. Em virtude de seu desenho adaptativo, os dois últimos tratamentos foram descontinuados nesse ensaio.

O ensaio SOLIDARITY foi planejado para ser tão simples e rápido quanto possível, mas ainda assim produzir evidência confiável, ajustando suas estratégias e abordagens às condições de funcionamento de instituições de saúde e às práticas da medicina clínica. Por essa razão, ele não foi planejado como um ensaio de duplo-cego, de modo a alcançar um equilíbrio entre o rigor da pesquisa clínica e a necessidade de respostas rápidas e possíveis de serem alcançadas nas circunstâncias objetivas tanto de países de alta quanto de média e baixa renda. Tem sido previsto que esse ensaio clínico será capaz de diminuir o tempo necessário para avaliar os resultados dos tratamentos em teste em até 80%, em comparação a RCTs típicos. Para usar uma metáfora de Angus, ensaios clínicos como o SOLIDARITY armam uma grande tenda internacional e incorporam a liderança e o compromisso que podem nutrir um ambiente integrado, no qual se possa, assim se espera, aprender fazendo com sucesso. Nesses tempos de irracionalidade galopante, esta já é, em si, uma notícia a ser comemorada.

Charbel N. El-Hani

(Instituto de Biologia/UFBA)

PARA SABER MAIS

Angus, D. C. (2020). Optimizing the trade-off between learning and doing in a pandemic. JAMA 323(19): 1895-1896.

Cañás, M. & Urtasun, M. A. (2020). La evidencia en tiempos de coronavirus (COVID-19). Revista Evidencia 23(2): e002057.

Goodman, J. L. & Borio, L. (2020). Finding effective treatments for COVID-19: scientific integrity and public confidence in a time of crisis. JAMA 323(19): 1899-1900.

London, A. J., Omotade, O. O., Mello, M. M. & Keusch, G. T. (2018). Ethics of randomized trials in a public health emergency. PLOS Neglected Tropical Diseases 12(5): e0006313.

Vijayvargiya, P., Garrigos, Z. E., Almeida, N. E. C., Gurram, P. R., Stevens, R. W. & Razonable, R. R. (2020). Treatment considerations for COVID-19: a critical review of the evidence (or lack thereof). Mayo Clinic Proceedings 95(7): 1454-1466.

Imagem de abertura:

https://en.unesco.org/covid19/educationresponse/learningneverstops

Covid-19: A necessidade de um olhar transdisciplinar

Quando as primeiras notícias da Covid-19 desembarcaram no Brasil,  alguns especialistas mais midiáticos transmitiram tranquilidade para seus seguidores, porque os dados então disponíveis indicavam uma taxa de 3% de óbitos entre os contaminados, proporção bastante abaixo de outras infecções, como SARS e MERS. Desses mortos, afirmavam, a grande maioria seria de idosos em estado fragilizado, já suscetíveis a todo tipo de infecções, como a gripe. A vida poderia seguir normalmente. Em plena viralização, não ainda do Coronavírus, mas dos vídeos, textos e entrevistas nas redes sociais que haveriam de mostrar-se demasiado suaves diante da gravidade do problema, novos entendimentos foram chegando, ficando evidente que muitas pessoas, mesmo aquelas bem intencionadas, haviam queimado a largada em suas apreciações. Uma das razões fundamentais para o equívoco foi a ausência de uma visão do todo. Este será nosso foco nesta postagem: a necessidade de uma abordagem integrada, interdisciplinar e mesmo transdisciplinar da Covid-19.

O que ficaria evidente nos dias seguintes a esta onda de mensagens tranquilizadoras em diferentes mídias é que a pandemia era bem mais grave do que parecia e não poderia ser enfrentada por uma única disciplina ou área de especialidade. Era e segue sendo necessária uma visão interdisciplinar, que integre diferentes áreas das ciências acadêmicas, e transdisciplinar, na medida em que o eficiente controle social de uma pandemia requer também estabelecer relações com outros sistemas de conhecimento, além dessas ciências. A transdisciplinaridade é especialmente importante num problema socioambiental da dimensão da Covid-19, no qual as ciências acadêmicas devem trabalhar em cooperação com outras partes interessadas, de tomadores de decisão a comunidades, empresas, terceiro setor e órgãos públicos. As ciências acadêmicas precisam estabelecer uma relação horizontal (isto é, não hierarquizada) e coerente que posiciona as partes para trazerem suas melhores contribuições. Essas contribuições podem ser evidências, teorias, modelos científicos. Podem ser informações sobre a dinâmica social que somente comunidades podem fornecer. Podem ser informações sobre as dinâmicas do cuidado com os pacientes que os profissionais da saúde podem destacar. Considerando-se esse conjunto de contribuições, pode constituir-se um novo modelo de gestão que, entre outros benefícios, traga rapidamente as informações relevantes para a mesa, viabilizando respostas no tempo e com a complexidade necessários.

A necessidade de uma abordagem interdisciplinar e transdisciplinar da Covid-19 vem se desdobrando, num efeito dominó, no qual diferentes campos do conhecimento são convocados a contribuir. Por exemplo, pesquisas em saúde pública e epidemiologia esclareceram a todos nós que a Covid-19 tem espantosa capacidade de se espalhar (como mostra esse estudo, um exemplo entre vários). A FIOCRUZ, em declaração à imprensa no final de março, apontou que já na semana de 15 a 21 de março tivemos um número de internações por problemas respiratórios dez vezes maior que a média histórica. E a curva segue inclinada, confirmando o alto risco de o sistema de saúde brasileiro entrar em colapso, um cenário que na verdade é previsível, dada a experiência de outros países que foram atingidos mais cedo, como a Itália e, logo depois, a Espanha. Isso transferiu, portanto, parte da crise para o campo da logística, da infraestrutura e da capacidade industrial de produzir produtos e equipamentos hospitalares. Mais: quando anunciado que a melhor medida para enfrentar a pandemia seria o isolamento social, devendo-se interromper, assim, a maior parte das atividades econômicas, novos atores entraram em cena, em especial economistas e empresários, preocupados com a recessão e colocando à mesa dilemas importantes para lidar com a pandemia, por exemplo, como analisar as relações entre custos e benefícios das medidas de isolamento social, um tema abordado em estudo recente.

As ciências humanas, campos de pesquisa que colocam o Brasil na elite da produção de conhecimento, mas vivem ameaçadas de cortes pelo governo federal, também precisaram se pronunciar quando foi aventada a ideia de um “isolamento vertical”, ou seja, restrita aos grupos de risco. Espantados com a ingenuidade da medida, especialistas de diferentes ciências humanas lembraram aos tomadores de decisão da precariedade habitacional do Brasil. Ainda em 2010, em plena pujança econômica, 11,4 milhões de brasileiros já viviam no que o IBGE denomina “aglomerados subnormais”, levantamento citado em um amplo estudo de caracterização desses territórios com precariedade urbanística e desassistidos de boa parte dos serviços públicos essenciais (12% dos moradores dessas comunidades não têm acesso à água, chegando a 40% no Norte do país), e também qualificados como moradias em espaço alheio, ou seja, ocupações de áreas públicas ou privadas por famílias que não têm a mínima condição de adquirirem as suas próprias casas e não foram alcançadas pelos programas de habitação. Como seria viável, então, isolar em tais condições os entes mais suscetíveis aos agravamentos de saúde do Covid19?

À medida que a quarentena foi se estabelecendo em diferentes países, psicólogos foram chamados a investigar o estresse e as rupturas na saúde mental das pessoas, tendo a OMS publicado recomendações quanto à saúde mental e bem estar psicossocial de diferentes grupos afetados pela pandemia. Efeitos sobre crianças e seus processos educacionais também mereceram atenção de especialistas em psicologia e educação (aqui um exemplo, entre vários). Ciências sociais e comportamentais foram convocadas para responder como o comportamento humano poderia alinhar-se às recomendações de especialistas em saúde pública e epidemiologistas (como discutido nesse artigo), bem como de que maneira as ciências comportamentais poderiam ajudar a mitigar a crise da Covid-19, como foi discutido há duas semanas aqui no Darwinianas. Mais uma vez precisamos dos cientistas sociais para entender as interações recíprocas entre redes sociais e medidas de controle da pandemia: Como a coesão social afeta o controle? Como as medidas de controle podem minar a coesão social?

Especialistas em saúde pública e serviço social foram chamados a discutir como mitigar estigmatização de pessoas acometidas pela doença (como nesse estudo, por exemplo). Antropólogos e cientistas políticos se dispuseram a analisar vários aspectos sociais e políticos da pandemia e de seu controle (como vemos nesse ensaio). E, mais, filósofos, cientistas sociais e políticos têm sido cruciais para os debates sobre o que significa a Covid-19 e o mundo pós-pandemia, mas também lideranças indígenas, comunitárias e outros atores sociais (como se pode ver, por exemplo, nas importantes contribuições de Ailton Krenak). Para entender porque somos acossados por uma epidemia depois da outra, necessitamos de ecólogos e cientistas ambientais, que elucidam como nossa expansão sobre vegetações nativas em diferentes partes do mundo ou nosso consumo de animais silvestres nos expõem a patógenos que podem atravessar a barreira entre outras espécies e a nossa espécie. Mas não somente isso: eles também nos mostram como alterar nossa relação com sistemas ecológicos e outros seres vivos de modo a diminuir a probabilidade de novas pandemias no futuro. Sendo a Covid-19 uma dentre muitas doenças zoonóticas, que nos são transmitidas por animais, também precisamos das contribuições dos veterinários. E por aí vai. Poderíamos multiplicar e multiplicar esses exemplos, mas estes bastam para destacar a mensagem central que pretendemos nessa postagem.

É evidente que, na medida em que se vai descortinando um cenário cada vez mais complexo, seria esperado um plano de reação mais integrado, mas não foi o que se aventou e nem o que se desenrola no Brasil, desde janeiro de 2020, quando a China anunciou as primeiras mortes. A própria ênfase sobre atendimento hospitalar, que vai e volta nas discussões nas diferentes mídias, mostra a falta de tal visão integrada com vistas à criação de uma rede de enfrentamento da crise. Hospitais não devem ser a linha de frente de combate à Covid-19. A linha de frente deve ser a saúde comunitária, a saúde da família, o atendimento primário à saúde, o atendimento e monitoramento domiciliar de casos suspeitos e confirmados, como é discutido em texto que discute como manter os casos de Covid-19 fora dos hospitais. Quando se afirma que hospitais devem atuar para conter a pandemia num país, isso equivale ao fracasso de seu sistema de saúde. Não se trata, obviamente, de não se investir em hospitais, porque eles têm um papel claro no combate à pandemia. Trata-se de reconhecer o papel fundamental da atenção primária à saúde e, assim, criar condições para que ela cumpra seu papel eficazmente na identificação e no manejo de novos casos. Apesar de poder ser algo surpreendente para alguns leitores, dada a ênfase sobre a intervenção hospitalar por diferentes setores da sociedade, mesmo agora, no meio da crise, não é tarde demais para atuar em frentes não-hospitalares, poupando-se os hospitais de uma sobrecarga que possa levar a um colapso. Uma discussão pertinente a este respeito pode ser encontrada nesse vídeo de Emerson Merhy, assim como em carta no respeitado periódico The Lancet, que mostra como a gravidade da situação na Itália é resultado do desmonte do sistema de saúde pública.

Note-se que temos aí também um problema de falta de uma visão interdisciplinar e transdisciplinar da pandemia. Ela requer o trabalho diligente de enfermeiros, assistentes sociais, médicos, psicólogos, biólogos, líderes comunitários e vários outros setores da vida acadêmica e da vida social. A construção de tal visão integrada é fundamental. Diferentes pontos de vista acabam por expressar soluções parciais para um dilema complexo, especialmente no caso de “problemas perversos”, sobre os quais não há acordo nem sobre o problema nem sobre as soluções, mas para os quais é necessária uma ação integrada, capaz de solucionar as demandas e as restrições  das várias partes interessadas no problema.

Não é simples construir uma visão integrada. É preciso lidar com o estranhamento entre as diferentes disciplinas acadêmicas, dado que cada uma delas formula o problema de maneiras diferentes e não compartilham todas as suas práticas de produção de conhecimento, ou todos os seus critérios de validação de teorias ou modelos, ou todos os seus valores. Maior ainda pode ser o estranhamento entre diferentes atores sociais, de cuja ação concertada depende o enfrentamento da pandemia. Neste momento, é necessária união em torno do objetivo principal, conter a pandemia, o que requer isolamento social, como tem sido mostrados em estudos a esse respeito (eis aqui um exemplo). Quando os atores sociais agem de maneira descoordenada, mandam mensagens diferentes ao público, o desastre fica só aguardando, logo ali na esquina. Resta então torcer para a sorte. Mas quando se tratam de epidemias virais, sorte costuma contar pouco.

Uma boa notícia é que muitos especialistas que se anteciparam a um diagnóstico mais abrangente, minimizando o impacto da Covid-19, já corrigiram as informações equivocadas em suas novas postagens e economistas mais atentos ao debate têm resistido em transformar saúde e mercado em uma dicotomia, analisando com cuidado as relações de custo e benefício envolvidas. Tem sido mostrado que a oposição entre economia e saúde é uma falsa dicotomia tanto em artigos acadêmicos quanto em comentários na mídia.

Outra boa notícia é a revalorização da pesquisa científica em países como o Brasil e os Estados Unidos, cujos presidentes faziam coro com visões anticientíficas e menos informadas a respeito da necessidade das ciências. Vários cientistas brasileiros também têm feito um bom serviço em chamar a atenção para a importância da ciência diante da pandemia da Covid-19, a exemplo da boa discussão feita por José Alexandre Diniz em torno da ecologia e da epidemiologia. Claro está, contudo, que é preciso ir além das ciências biomédicas nessa valorização à luz da Covid-19, explicitando para o público, os tomadores de decisão, as comunidades científicas a importância das ciências humanas, das ciências sociais, da psicologia, da ecologia, da filosofia diante da pandemia. Mas há mais que isso: devemos ter o cuidado de não transformar um reconhecimento da importância das ciências acadêmicas em casos como o que vivemos em alguma defesa do cientificismo, ou seja, da ideia de que seriam os conhecimentos científicos os únicos válidos, ou de que estes conhecimentos deveriam dominar completamente a arena das decisões sociais. De um ponto de vista político, isso seria atingir as nossas já tão acossadas democracias contemporâneas com os fantasmas das tecnocracias. De um ponto de vista epistemológico, seria negar a diversidade de formas de conhecimento produzidas pela humanidade. Segue sendo necessário destacar os muitos sistemas de conhecimento produzidos pela humanidade, a pluralidade de uma ecologia de saberes, as muitas contribuições que tais sistemas podem trazer para o enfrentamento de nossos problemas, inclusive dialogando e integrando-se uns com os outros. Afinal, se as explicações das ciências acadêmicas podem ser mais eficazes na busca de tratamentos e meios de prevenção da Covid-19, em comparação, por exemplo, com visões religiosas (como a sugestão de que orando e jejuando se poderia conter a epidemia), estas últimas visões podem ter importantes papeis na manutenção do bem estar psicológico das pessoas acometidas pela pandemia ou submetidas à quarentena, os quais podem superar em muito a eficácia das intervenções científicas. São esses juízos complexos e situados, contextualizados que devemos fazer sobre os conhecimentos humanos, não esquemáticos juízos universais sobre supostos conhecimentos superiores e inferiores. Esses juízos universais não passam de visões pobres da diversidade dos conhecimentos humanos.

Não devemos esquecer de lições como aquelas que nos foram dadas pela substituição dos sistemas milenares de irrigação de campos de arroz em Bali, manejados sob a supervisão dos sacerdotes de templos da água, templos hindu-budistas dedicados a Dewi-Danu, a deusa do lago, por sistemas técnico-científicos de irrigação, por decisão do governo da Indonésia e sob a influência da chamada “revolução verde”. Esses novos sistemas de irrigação tiveram consequências desastrosas para o cultivo de arroz em Bali: as colheitas decresceram para menos da metade do que era produzido sob os sistemas milenares de gestão dos resíduos hídricos. Esses resultados desastrosos se repetiram nas colheitas seguintes e os sistemas científicos terminaram por ser abandonados, sendo trazidos de volta os sistemas tradicionais. Trinta anos depois, foi mostrado, usando simulação computacional, que as sequências da água geridas pelos sacerdotes da deusa Dewi-Danu eram os mais eficientes possíveis, sendo mais eficientes, pois, do que aquelas preconizadas pelo sistema técnico-científico de irrigação que havia sido introduzido nos anos 1960. Na verdade, eles eram igualmente ou mais eficientes do que poderia ser proposto por qualquer outro sistema de conhecimento, na medida em que soluções ótimas para as sequências de irrigação da água eram alcançadas pela distribuição de templos nos campos de arroz.

Exemplos dessa natureza mostram como não há porque converter um reconhecimento do valor das ciências acadêmicas numa defesa cientificista, como se fossem panaceias para todo e qualquer problema com o qual queiramos lidar. Contudo, uma crítica à hegemonia dos saberes científicos acadêmicos tampouco deve converter-se na aceitação do desperdício das experiências de saber que a pesquisa científica nos legou ao longo de cinco séculos. Numa ecologia de saberes capaz de reconhecer e valorizar a diversidade epistemológica do mundo, não se deve desperdiçar experiências de saber, tal como foi feito no epistemicídio que se seguiu à expansão colonial europeia, ou seja, na destruição que a colonização impôs a muitos sistemas de conhecimento ao redor do globo. Defender o reconhecimento e a valorização da diversidade epistemológica do mundo não é algo que se faz, contudo, às expensas de um reconhecimento das experiências de saber das ciências modernas. Isso porque, afinal, seria também um desperdício de experiências de saber negligenciar as contribuições dessas ciências. Assim, diante da Covid-19, não há o que discordar quanto à capacidade das ciências modernas de propiciar avanços rumo ao diagnóstico, ao tratamento ou à vacinação contra essa pandemia.

Pode-se a um só tempo defender a diversidade epistemológica do mundo e a pesquisa científica moderna, especialmente quando esta dá apoio à luta pela sobrevivência e pela melhoria da qualidade de vida de muitas comunidades humanas que são vítimas de injustiças socioambientais (inclusive na distribuição de casos e mortes pela Covid-19). Afinal, as ciências modernas se encontram lado a lado, como partícipes, com o processo de expansão colonial e de processos hegemônicos de globalização que têm muito a ver com a atual crise epidêmica. Isso implica fazer juízos de valor sobre os papeis que elas vêm a desempenhar, inclusive, na abordagem da Covid-19. Há julgamentos importantes a serem feitos quanto às intenções, aos valores e à dimensão política das empreitadas científicas em torno dessa pandemia. Cabe questionar, então, se os esforços científicos em andamento buscam diminuir as injustiças socioambientais que acompanham a pandemia ou podem agravá-las ainda mais. Trata-se, por exemplo, de testar vacinas experimentalmente em comunidades subalternizadas na atual ordem mundial, como propuseram os médicos franceses Jean-Paul Mira e Camille Locht, para gerar produtos científicos que serão depois desigualmente distribuídos, inclusive privando-se os próprios países africanos de acesso a tais vacinas, dado seu custo? Ou trata-se de distribuir amplamente, a todas as comunidades atingidas no globo, vacinas validadas cientificamente por meio de procedimentos eticamente aceitáveis? A resposta a questões dessa natureza implica apreciações bastante distintas do papel das ciências acadêmicas numa ecologia de saberes, ao fornecerem bases para julgar de que lado elas estão.

Muitos acadêmicos fazem, diante de tais argumentos, uma chamada à objetividade como se fosse ela neutralidade. Contudo, não há neutralidade, como sabemos, e nada é menos neutro do que se pretender neutro, porque isso implica apenas uma manobra política para ocultar o lado que se escolheu. Objetividade científica não é o mesmo que neutralidade, demandando, ao contrário, crítica mútua numa comunidade de investigadores para que seus vieses (sua falta de neutralidade, natural, esperada, como humanos que são, e como membros de grupos humanos que são) sejam colocados em debate. Ou seja, para ser objetiva, a produção de conhecimentos (científicos ou não) deve ser reconhecida como não-neutra. Não somente a objetividade não é o mesmo que a neutralidade, como também a neutralidade mina a possibilidade de ser objetivo! Objetividade é uma propriedade de afirmações feitas não por indivíduos, mas por comunidades produtoras de conhecimento, sendo a objetividade, como nos mostra Helen Longino, de natureza social e interativa, e sendo um método de investigação objetiva quando permite crítica transformativa. Diante disso, é muito importante que o diretor-geral da OMS tenha vindo a público condenar a proposta racista dos dois médicos franceses.

A interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade têm ainda um importante papel, o de desestimular o espírito voluntarioso, favorecendo a formação de atitudes voluntárias conscientes, pela coaprendizagem mútua que decorre do envolvimento das muitas partes interessadas. Elas talvez sejam tecnologias sociais capazes de vacinar sociedades dependentes de “mitos”, por favorecerem que as pessoas passem a enxergar em cada um e na coletividade a resposta para seus dilemas científicos, sociais e espirituais.

 

Charbel El-Hani

(Instituto de Biologia/UFBA)

Virgílio Machado

(Instituto Mãos da Terra – IMATERRA)

 

PARA SABER MAIS

Dayrit, M. & Mendoza, R. U. (2020). Social Cohesion vs COVID-19. SSRN Library.

Hellewell, J. et al. (2020). Feasibility of controlling COVID-19 outbreaks by isolation of cases and contacts. The Lancet Global Health 8: e488-e496.

Latour, B. (2020). Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise.

Rittel, H. W. J. & Webber, M. M. (1973). Dilemmas in a general theory of planning. Policy Sciences 4: 155-169.

Santos, B. S. (2020). A trágica transparência do vírus. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 8 de abril de 2020.

Thunstrom, L., Newbold, S., Finnoff, D., Ashworth, M. & Shogren, J. F. (2020). The Benefits and Costs of Using Social Distancing to Flatten the Curve for COVID-19. Journal of Benefit-Cost Analysis (no prelo).

Inovação responsável como desafio das democracias contemporâneas

Um dos principais desafios das sociedades contemporâneas é a gestão responsável da pesquisa e inovação, que podem mudar nossas vidas de maneiras importantes. Como a governança da pesquisa e inovação pode ser feita de modo a gerar mudanças responsáveis dos nossos modos de vida?

Um dos principais desafios das sociedades contemporâneas é a gestão responsável da pesquisa e inovação. Por gerar novos modos de vida em sociedade, a pesquisa e a inovação devem ter uma governança responsável. Afinal, a compreensão das relações entre ciências, tecnologias, sociedades e ambientes leva a um entendimento de que ciências e tecnologias não são constituídas apenas tecnicamente, mas também social e politicamente. De um lado, determinantes sociopolíticos afetam os caminhos das ciências e tecnologias; de outro, estas últimas levam a outros modos de existência social e política, como nosso tempo presente mostra com clareza. Embora frequentemente vistas como meios de controlar a natureza, há um outro lado nas ciências e tecnologias: elas podem, paradoxalmente, aumentar nossos sentimentos de incerteza e ignorância. Isso porque podem ter impactos não-previstos, potencialmente prejudiciais, assim como capazes de transformar nossos modos de vida.

É necessária fundamentação teórica para a compreensão da pesquisa e inovação responsáveis. Na postagem de hoje, discuto uma proposta para tal fundamentação, elaborada por Jack Stilgoe, Richard Owen e Phil Macnaghten, em artigo influente (1165 citações no Google Scholar®) publicado há seis anos no periódico Research Policy. Esta fundamentação se baseia em quatro dimensões integradas da inovação responsável: antecipação, reflexividade, inclusão e responsividade.

Na segunda metade do século XX, o poder das tecnologias relacionadas (frequentemente de maneiras complexas) com as ciências, sua capacidade de mudar nossas vidas, seus potenciais crescentes de produzir tanto benefícios quanto riscos, ampliaram os debates sobre as responsabilidades de cientistas (e de outros agentes de inovação, por exemplo, órgãos de fomento à pesquisa e corporações) para além de abordagens anteriores. No caso dos cientistas, esses debates colocaram em xeque visões convencionais que tendem a ver as ciências apenas como emancipatórias (podendo perder de vista os riscos ou a distribuição desigual dos benefícios da pesquisa) e os cientistas como autônomos em suas decisões (podendo negligenciar determinantes como os valores e interesses dos cientistas e de seus financiadores). A resposta de parte da comunidade científica tem sido resistir a essas tendências e buscar preservar um ideal de autonomia nas decisões sobre a pesquisa. Mas parte da comunidade científica abraçou uma discussão sobre a responsabilidade dos cientistas que vai além do reconhecimento e da negociação sobre condutas responsáveis em seus papeis profissionais.

Essas visões ampliadas sobre a responsabilidade dos cientistas podem ser expressas em termos de três formas de responsabilidade: responsabilidade 1.0 – integridade e produção de conhecimento confiável; responsabilidade 2.0 – ciência para a sociedade; responsabilidade 3.0: ciência com e para a sociedade. Pesquisa e inovação responsáveis se vinculam à responsabilidade 3.0. Esta forma de responsabilidade parece mais capaz de produzir, para fazer referência a um livro muito interessante organizado por Boaventura de Sousa Santos, um conhecimento prudente para uma vida decente.

O que é inovação responsável

Inovação responsável significa, para Stilgoe e colaboradores, “cuidar do futuro através da gestão coletiva da ciência e da inovação no presente”. Ela deve ser responsiva a um conjunto de questionamentos importantes em debates públicos sobre novas áreas científicas e tecnológicas, que são tipicamente colocados para cientistas ou que o público gostaria que os cientistas se perguntassem. A Tabela 1 sumaria essas questões, conforme sistematizadas por Macnaghten e Chilvers em termos de sua relação com produtos, processos ou propósitos da inovação, a partir de 17 debates públicos sobre ciência e tecnologia no Reino Unido. Considerar esses questionamentos é um importante passo para ir além de uma governança da ciência e inovação convencional, que foca sobre questões de produtos apenas, obscurecendo áreas de incerteza e ignorância acerca tanto dos riscos quanto dos benefícios. A inovação responsável pode ser entendida como uma maneira de incorporar a deliberação sobre essas questões no próprio processo de inovação.

Tabela 1: Linhas de questionamento sobre inovação responsável

Questões sobre produtos Questões sobre processos Questões sobre propósitos
Como riscos e benefícios serão distribuídos? Como padrões devem ser desenhados e aplicados? Por que os cientistas estão fazendo isso?
Que outros impactos podemos antecipar? Como riscos e benefícios devem ser definidos e mensurados? Essas motivações são transparentes e em prol do interesse público?
Como esses impactos poderiam mudar no futuro? Quem está no controle? Quem se beneficiará?
O que não sabemos a respeito? Quem está participando? O que eles irão ganhar?
O que não poderíamos jamais saber a respeito? Quem assumirá a responsabilidade se as coisas derem errado? Quais são as alternativas?
  Como podemos saber se estamos certos?  

Para cientistas que abraçam tal visão ampliada de suas responsabilidades, são muitos os desafios, em especial quando não temos formação para lidar com vários aspectos consideravelmente complexos de uma ciência que é feita com e para a sociedade. Por isso, fundamentações como aquela proposta por Stilgoe e colaboradores são muito úteis. Um avanço importante incorporado nessa proposta é não focar apenas nos produtos da ciência e inovação, ou apenas nos riscos e prejuízos de tais produtos. Assim, busca-se ir além de regulamentações baseadas no risco dos produtos da inovação, embora sem deixar de lado esse aspecto. As ciências e tecnologias tipicamente transbordam para além das fronteiras dos marcos regulatórios existentes, bem como para além de nossa capacidade de pensar riscos e benefícios a partir de nossas experiências passadas. Precisamos de mais do que uma abordagem retrospectiva da responsabilidade, na medida em que, na inovação, o passado e o presente podem não oferecer uma orientação razoável para o futuro.

Como comentam Michel Callon, Pierre Lascoumes and Yannick Barthe, necessitamos de novos “fóruns híbridos” que enriqueçam e expandam nossas democracias, tornando-as mais capazes de absorver debates e controvérsias em torno de ciência e tecnologia. Essas controvérsias mostram que preocupações públicas não podem limitar-se aos riscos dos produtos da inovação, mas devem estender-se para os propósitos e as motivações da pesquisa, as direções da inovação, a emergência de novos sistemas sociotécnicos, a distribuição dos benefícios, entre muitos outros aspectos. Deve-se, assim, passar de uma regulamentação baseada apenas no risco para dimensões de responsabilidade orientadas para o futuro, marcadas pelo cuidado e pela responsabilidade com nossas vidas coletivas e com o planeta, com maior potencial de acomodar a incerteza e de promover reflexões sobre valores, propósitos, justiça.

Trata-se de buscar, numa palavra, uma nova governança científica, ou, dito em outras palavras, um novo contrato social entre ciência e público. Para tanto, é preciso abrir novos espaços de diálogo público sobre ciência e inovação. A pesquisa e inovação responsáveis devem trafegar por esses espaços de diálogo público, buscando produzir conhecimento com e para a sociedade. Os quatro pilares da proposta de Stilgoe e colaboradores – antecipação, reflexividade, inclusão e responsividade – fornecem bússolas muito úteis para cientistas que se põem a navegar no espaço entre pesquisa e implementação. Estes cientistas não devem manter suas práticas científicas como antes, porque, tudo o mais sendo igual, não fornecerão orientações e procedimentos suficientemente robustos e confiáveis para a prática transdisciplinar que a responsabilidade 3.0 demanda. Trata-se de reconfigurar nossas práticas para conseguir prosseguir nessa navegação. Como? Uma contribuição relevante para respondermos a essa pergunta pode ser dada a partir dos quatro pilares citados, que fornecem uma moldura teórico-prática para colocar e discutir os questionamentos na Tabela 1.

Mas antes de dedicar-me a tratar desses pilares, cabe uma palavra sobre o uso do adjetivo “responsável”, na medida em que pode sugerir alguma acusação a colegas na comunidade científica que seriam supostamente “irresponsáveis”. Essa inferência não procede, contudo, porque ela erra no foco de análise. O que está em foco são responsabilidades políticas coletivas, ou corresponsabilidades, de cientistas, financiadores da pesquisa, inovadores e outros, e não alguma forma de responsabilidade individual. Não são esses diversos atores que poderiam ser, individualmente, acusados de irresponsabilidade. Tratam-se, antes, de sistemas complexos e acoplados de ciência e inovação que criam o que Ulrich Beck chamou de “irresponsabilidade organizada”. Tratam-se de aspectos de tais sistemas que levam a quatro categorias de inovação irresponsável identificadas por René von Schomberg, que incluem, por exemplo, a negligência de princípios éticos e a falta de precaução e prevenção. Não se trata, então, de diagnosticar responsabilidades ou irresponsabilidades em cientistas individuais, mas de desenvolver sistemas que favoreçam escolhas responsáveis, no presente e no futuro, através da antecipação e da obtenção de conhecimentos sobre as possíveis consequências das ciências e tecnologias, assim como do desenvolvimento de capacidades de responder a tais consequências.

Pilares da inovação responsável

A primeira dimensão da inovação responsável identificada por Stilgoe e colaboradores é a antecipação. As implicações de novas tecnologias frequentemente não são previstas e análises baseadas em riscos costumam fracassar na tentativa de fornecer indicações precoces de seus efeitos futuros. A antecipação implica a colocação de questões da forma “e se…?” por pesquisadores e organizações, levando-os a considerar contingências, o que sabemos, o que é provável, o que é plausível, o que é possível. Ela permite gerar expectativas que servem não apenas para realizar previsão, mas também para moldar futuros possíveis e desejáveis, e organizar recursos para alcançar estes últimos. A participação é fundamental para uma prática de antecipação que aumente a resiliência dos processos de inovação e dos futuros desejados. Há uma tensão entre a previsão, que tende a reificar futuros particulares, e a participação, que tende a abrir possibilidades novas de antecipação. Entre os métodos que podem ser usados na antecipação, temos o planejamento de cenários (que devem ser plausíveis) e a avaliação de visões (vision assessment). Esses métodos se mostram mais eficientes com um engajamento público desde estágios precoces de um processo de inovação (o que tem sido denominado upstream public engagement). Este último aspecto é muito importante: processos antecipatórios devem ser bem situados no tempo, porque devem ser suficientemente precoces para que sejam construtivos e suficientemente tardios para que sejam significativos. Dessa maneira, eles criam maiores possibilidades de se compreender a dinâmica da promessa que molda cenários futuros.

A reflexividade é a segunda dimensão considerada por Stilgoe e colaboradores, que argumentam que responsabilidade requer esse atributo dos agentes e das organizações. É comum entre os cientistas a ideia de que a reflexividade significa a crítica mútua como princípio organizacional das ciências. De fato, este é um significado importante de reflexividade. Contudo, não é suficiente. É necessária reflexividade ao nível das práticas institucionais, o que significa analisar sistematicamente as próprias atividades, compromissos e suposições, mas também ter consciência dos limites do conhecimento (especialmente, considerando-se a complexidade dos sistemas naturais e a incerteza inerente ao nosso entendimento deles, seja qual for sua natureza, seja científico ou não), assim como de que um enquadramento particular de um problema pode não ter acordo de todas as partes interessadas. Para além da crítica profissional exercida pelos cientistas, a responsabilidade torna a reflexividade um assunto público, que deve envolver não somente laboratórios, mas também órgãos de fomento e regulação, partes interessadas, o público e outros agentes e instituições envolvidas na governança da ciência e inovação. Os órgãos de fomento, por exemplo, devem ter a responsabilidade não somente de refletir sobre seus próprios sistemas de valores, mas também de fomentar a capacidade reflexiva nas práticas de ciência e inovação. Entre os métodos que podem promover reflexividade, temos, por exemplo, a elaboração de códigos de conduta e práticas de reflexão dentro dos laboratórios, acerca do contexto socio-ético do trabalho científico, envolvendo frequentemente participação de cientistas sociais e filósofos.

Um terceiro pilar é a inclusão de novas vozes na governança da ciência e inovação, como parte da construção de legitimidade. Entre os processos de diálogo público utilizados com esse propósito, temos conferências de cidadãos (consensus conferences), júris de cidadãos, mapeamento deliberativo, votação deliberativa, assim como oficinas participativas e grupos focais, parcerias de múltiplas partes interessadas, inclusão de membros do público em comitês científicos consultivos e outros mecanismos híbridos que tentam diversificar as contribuições para a governança da ciência e inovação. Ao comprometer-se com a inclusão em tal governança, não se deve perder de vista uma série de aspectos, por exemplo, o de que processos de inclusão implicam consideração de questões relativas ao poder. Eles suscitam, por exemplo, preocupações quanto a efeitos de enquadramento (framing effects) que podem fazer com que processos de diálogo reforcem relações preexistentes de poder profissional e modelos do público baseados em déficit (por exemplo, em sua compreensão do que está em pauta nos debates sobre ciência e inovação). Além disso, a variabilidade das práticas de governança inclusiva e de seus impactos sobre políticas públicas tem levado, por exemplo, a críticas e demandas de maior clareza quanto aos métodos de participação, aos propósitos de seu uso e aos critérios para sua avaliação. Contudo, ao tecer tais críticas, deve-se ter o cuidado, ao exigir que sejam satisfeitos princípios ideais, de não perder de vista variedades de engajamento que são menos do que perfeitas, mas, ainda assim, são de alguma maneira boas. Tampouco se deve negligenciar a natureza dos processos participativos como modalidades de experimentação coletiva e em andamento.

Ademais, critérios de qualidade do diálogo público têm sido desenvolvidos e podem ser empregados para avaliar processos participativos. Callon e colaboradores, por exemplo, propõem três critérios: intensidade – quão cedo membros do público são consultados e quanta atenção é dada à composição do grupo de discussão; abertura – quão diverso é o grupo e quem está representado; e qualidade – a seriedade e continuidade da discussão. Deve haver espaço, também, para que público e partes interessadas questionem o próprio enquadramento do diálogo e os processos de participação, e não somente os problemas e as soluções particulares postas em discussão. Tomados os devidos cuidados, processos de engajamento público na governança da ciência e inovação podem ser considerados legítimos, especialmente se seus objetivos forem modestos e se as suposições e os compromissos subjacentes a eles estiverem, eles próprios, abertos ao escrutínio público.

Por fim, a responsividade é um quarto pilar da ciência e inovação responsáveis. A inovação responsável demanda a capacidade de mudança em resposta às contribuições, aos valores, às expectativas do público e das partes interessadas, bem como em resposta a circunstâncias mutáveis e à insuficiência do conhecimento e do controle. Há vários mecanismos que tornam a inovação responsiva aos demais pilares considerados por Stilgoe e colaboradores, antecipação, reflexividade e inclusão. Por exemplo, aplicação do princípio da precaução, de moratórias (por exemplo, de uso de uma inovação antes de uma melhor compreensão de suas implicações) e de códigos de conduta pode ser apropriada num conjunto de casos. O emprego de design sensível a valores pode ser útil em outros casos, por criar a possibilidade de incorporar determinados valores éticos nas tecnologias.

A promoção da diversidade na gestão da ciência e da inovação é outro elemento importante da responsividade. Isso requer a análise de tensões e mecanismos de governança dentro dos processos de financiamento da pesquisa, de garantia de propriedade intelectual e de estabelecimento de padrões tecnológicos, que frequentemente fecham a inovação de determinadas maneiras, em vez de abri-lo à participação diversa. Entre os fatores que podem aumentar a responsividade institucional, temos: uma cultura de política científica deliberativa; ênfase sobre aprendizagem reflexiva e sobre a própria responsividade; cultura organizacional aberta, enfatizando inovação, criatividade, interdisciplinaridade, experimentação e coragem de assumir riscos; compromisso com engajamento e interesse públicos. Todos esses aspectos têm importância na busca por superar uma “lógica de não-responsividade” que tem sido frequente na governança da ciência e inovação, especialmente quando pesquisa e desenvolvimento são vinculadas ao crescimento econômico sem um questionamento de “qual pesquisa” e “qual desenvolvimento” seriam desejáveis.

Por fim, devemos considerar que esses pilares não devem ser vistos separadamente, mas integrados e incorporados na governança da ciência e inovação. Eles devem, ademais, ser apropriadamente conectados a culturas e práticas de governança. As dimensões acima podem se reforçar mutuamente: por exemplo, maior reflexividade tende a promover maior inclusão, e vice-versa. Contudo, eles também podem estar em tensão e gerar conflitos: por exemplo, antecipação pode gerar maior participação, mas também pode sofrer resistência da parte de cientistas que buscam defender sua autonomia, ou seus compromissos prévios com determinadas trajetórias de inovação. Trazer à tona tais tensões e, assim, colocá-las em negociação são passos importantes para tornar responsiva a inovação responsável. Trata-se, em suma, de integrar as dimensões e estratégias para inovação responsável numa abordagem de governança coerente e legítima, explorando o que conta como inovação responsável no nível macro das políticas públicas, no nível micro do laboratório de pesquisa e no nível meso das estruturas e práticas institucionais que conectam os níveis precedentes.

Uma estratégia que permite trabalhar de modo integrado com dimensões da inovação responsável é a chamado stage-gating, um mecanismo bem estabelecido de desenvolvimento de novos produtos, que divide o processo de pesquisa e desenvolvimento em estágios discretos, separados por pontos de decisão, nos quais a progressão ao longo dos estágios se baseia no cumprimento de determinados critérios. Convencionalmente, esses critérios são baseados em considerações técnicas e de potencial mercadológico. Contudo, o processo de stage-gating pode ser adaptado para incluir critérios de inovação responsável.

Para um projeto de geo-engenharia, Stilgoe e colaboradores usaram os seguintes critérios para decisão sobre cada estágio do processo de pesquisa e desenvolvimento: 1. Riscos identificados, gerenciados e tornados aceitáveis (dimensão: reflexividade); 2. Compatibilidade com regulamentações relevantes (dimensão: reflexividade); 3. Comunicação clara da natureza e dos propósitos do projeto (dimensão: reflexividade, inclusão); 4. Aplicações e impactos descritos e mecanismos colocados em ação para revisão a seu respeito (dimensão: antecipação, reflexividade); 5. Mecanismos para compreender visões do público e de partes interessadas identificados (dimensão: inclusão, reflexividade). Um painel independente de avaliação do projeto tomou decisões, então, acerca da progressão ao longo dos estágios. Os critérios de decisão nos estágios 1 e 2 não estão relacionados a uma noção orientada para o futuro, prospectiva de responsabilidade, enquanto os critérios 3-5 se ocupam de questões e impactos potenciais mais amplos, associados com enquadramento da pesquisa, abordagens de comunicação, relações com diálogo público e problemas relacionados a desdobramentos futuros.

O processo de stage-gating como um todo correspondeu a uma prática de responsividade, com um grau relevante de reflexividade institucional. As ambições eram apropriadamente modestas. O processo aumentou a abertura da discussão sobre governança de ciência e inovação no contexto complexo de um projeto de geo-engenharia, trazendo à tona tensões, enquadramentos, suposições implícitas, aspectos contestados, valores e compromissos. Ele permitiu, ainda, que os cientistas e membros do painel independente e do órgão de fomento antecipassem impactos, aplicações e problemas previamente não explorados. Ao longo do processo, surgiram evidências de uma cultura de pesquisa e inovação mais reflexiva e deliberativa.

Esta experiência sugere a pertinência de investigar a aplicabilidade de processos de stage-gating para o uso integrado de dimensões de inovação responsável – antecipação, reflexividade, inclusão e responsividade – em iniciativas que não se vinculam a tecnologias emergentes, a exemplo da geo-engenharia, mas a outros processos inovadores que demandam diálogo público e responsabilidade na realização de pesquisa e inovação para e com a sociedade. Nós estamos iniciando a exploração, por exemplo, dessas dimensões da inovação responsável e do processo de stage-gating em processo de criação de unidades de conservação. Esta decisão é um resultado de uma compreensão de que novas práticas são necessárias para que naveguemos no espaço de pesquisa e implementação com a devida prudência e responsabilidade social. Não se trata, contudo, de aplicar alguma moldura teórica como se fosse uma resposta pronta de governança, mas antes como um espaço de construção fértil de uma abordagem de pesquisa e inovação responsáveis, que possa promover aprendizagem social e potencializar a agência coletiva de uma diversidade de partes interessadas.

 

Charbel N. El-Hani

Instituto de Biologia/UFBA

 

PARA SABER MAIS:

Callon, M., Lascoumes, P. & Barthe, Y. (2009). Acting in an Uncertain World: An Essay on Technical Democracy. Cambridge, MA: MIT Press.

Irwin, A. (2006). The politics of talk: coming to terms with the ‘new’ scientific governance. Social Studies of Science 36: 299–330.

Irwin, A., Jensen, T. & Jones, K. (2013). The good, the bad and the perfect: criticizing engagement practice. Social Studies of Science 43: 118–135.

Macnaghten, P. & Chilvers, J. (2013). The future of science governance: publics,policies, practices. Environment and Planning C: Politics and Space 32: 530-548.

Owen, R., Bessant, J. & Heintz, M. (Eds.). (2013). Responsible Innovation: Managing the Responsible Emergence of Science and Innovation in Society. London: Wiley.

Stilgoe, J., Owen, R. & Macnaghten, P. (2013). Developing a framework for responsible innovation. Research Policy 42

Ciência é atividade imaginativa, não “receita de método científico”

Visões caricatas da ciência, que nutrem mito de método científico como sequência linear de passos, ocultam papel da imaginação na ciência e contribuem para rejeição da ciência pela sociedade

Desde os primeiros anos da escolaridade, somos inculcados com a ideia de que fazer ciência seria seguir uma série mecânica de passos, começando com observações, a partir das quais são levantadas hipóteses, das quais são deduzidas consequências, as quais são testadas por meio de experimentos, como se o trabalho científico fosse a mesma coisa que seguir uma receita de bolo. Uma vez analisados os resultados do teste, uma conclusão seria então obtida, mantendo-se ou abandonando-se a hipótese.

A ciência pode, de fato, envolver a chamada lógica hipotético-dedutiva, mas testar consequências previstas a partir de uma hipótese também não é uma atividade mecânica feita sempre na mesma sequência e nem hipóteses resultam necessariamente de observação! Aliás, prefiro falar em lógica ou raciocínio em vez de método hipotético-dedutivo, por considerar a primeira expressão mais precisa, quando queremos nos referir a um modo lógico de proceder na pesquisa.

Propor que a ciência seria caracterizada por um método científico entendido como uma rígida e recorrente sequência de passos tem inúmeros problemas. Muitos críticos dessa proposição sobre como a ciência funciona se referem, então, a um mito do método científico. Estas críticas têm sido feitas tanto na literatura técnica, quanto na popularização da ciência.

Primeiro, obscurece que ciência se faz de várias maneiras, e não necessariamente seguindo uma lógica hipotético-dedutiva. Podemos, por exemplo, obter grandes séries de dados sobre algum fenômeno (como expresso na metáfora big data) e, a partir delas, extrair algum padrão regular, como fazemos, por exemplo, quando inferimos a presença de um determinado padrão de expressão de genes de um tipo celular com base em grandes conjuntos de dados sobre os RNAs presentes em células daquele tipo. Nesse caso, estamos usando uma lógica indutiva e, evidentemente, seguimos fazendo ciência.

Podemos observar algum padrão na natureza, por exemplo, uma concentração estranhamente alta do elemento químico irídio nas mesmas camadas geológicas em diversos locais do mundo e perguntar qual seria a melhor explicação para esse padrão, concluindo, digamos, que a queda de um grande meteorito com a mesma datação das camadas geológicas constitui a melhor explicação. Estamos usando, então, uma lógica abdutiva, inferindo a melhor explicação a partir dos dados, e, claramente, continuamos fazendo ciência.

Podemos considerar funcionamento mental de crianças, por exemplo, o modo como elas usam determinados modos de pensar ao longo do tempo e perguntar pela gênese desses modos de pensar, entendendo, por exemplo, como se desenvolve o pensamento conceitual na formação da mente humana. Estamos usando, então, uma lógica genética (não no sentido de ‘genes’, como regiões do DNA, mas no sentido de ‘gênese’) e, é claro, estamos fazendo ciência!

Segundo, o mito do método científico favorece uma ideia perniciosa, que se arraigou na formação de cientistas em muitas áreas e universidades, infelizmente: a de que aprender a fazer ciência seria aprender um conjunto de técnicas e protocolos para executar testes empíricos. Certamente, o trabalho científico inclui técnicas, protocolos, testes empíricos, mas limitá-lo a isso é ignorar que ciência também se faz tendo ideias, pensando novas teorias, imaginando novos modelos, supondo a existência de fenômenos nunca antes observados, em suma, que ela envolve muito mais do que apenas testar hipóteses. Frequentemente, essas visões caricatas da ciência também são acompanhadas de uma redução do teste empírico ao experimento, ignorando-se que testes empíricos rigorosos podem não ser experimentais: por exemplo, posso testar uma hipótese sobre a história evolutiva de um grupo de organismos examinando sistematicamente a distribuição de caracteres entre eles, usando o chamado método comparativo, e não um método experimental.

Terceiro, sugere que a ciência é uma atividade protocolar, uma repetição enfadonha dos mesmos passos prescritos. Já deve ter transparecido no parágrafo anterior, contudo, que ciência é tudo menos um trabalho mecânico. A ciência é uma atividade profundamente criativa, uma tentativa de entender o desconhecido com nossos melhores recursos cognitivos, incluindo nossa imaginação. A ciência não consiste na busca apenas de testar ideias que já tivemos, mas é uma aventura ousada de tentar ter ideias que nunca jamais ninguém teve, frequentemente alcançadas combinando-se de modo criativo uma série de ideias que já estavam disponíveis anteriormente. Foi assim, por exemplo, que Darwin e Wallace tiveram a ideia da seleção natural como força criativa no mundo vivo (criativa de adaptações e espécies) a partir de um conjunto de ideias já muito conhecidas, sobre crescimento populacional, herança, relações entre organismos, relações dos organismos com o meio etc.

A crise de confiança na ciência, que tem levantado bastante preocupação, tem a ver, ao menos em parte, com o modo como ensinamos ciência às pessoas. Pesquisa executada pelo Instituto Gallup, encomendada pela organização britânica Wellcome Trust, verificou que 75% dos brasileiros desconfiam da ciência e 23% consideram que produção científica pouco contribui para desenvolvimento econômico e social do país. Muitos desses são brasileiros que possivelmente amam ficar em seus telefones celulares sem nem desconfiar que não haveria celular sem ciência, ou ganham seu pão do dia-a-dia em muitas atividades que somente existem ou são praticadas do modo como o são hoje por causa da ciência, como a medicina, por exemplo, ou a engenharia, ou a agricultura, ou….. A lista é imensa! Como pode ter surgido tal descompasso entre o que se pensa e o modo como se vive?

Uma explicação plausível é que essas pessoas não estabelecem conexão entre o que aprenderam ser ciência na escola e todos esses produtos de seu cotidiano, ou mesmo com suas atividades profissionais. Podemos então não estar ensinando ciência de modo apropriado. Esta me parece uma conclusão importante. O problema tem certamente muitas raízes. Não seria possível dizer que o mito do método científico como atividade mecânica seja a única causa do problema. Mas parece-me que é parte da causa, porque apresenta de modo assustadoramente pobre uma das atividades mais instigantes da humanidade, fazer ciência.

 

Charbel N. El-Hani

Instituto de Biologia/UFBA

 

PARA SABER MAIS:

Bauer, H. H. 1994. Scientific Literacy and the Myth of the Scientific Method. University of Illinois Press.

Godfrey-Smith, P. 2003. Theory and Reality. The University of Chicago Press.

Numbers, R. L. & Kampourakis, K. 2015. Newton’s Apple and Other Myths about Science. Harvard University Press.

 

Figura: Mito do método científico como receita de bolo é algo tão divulgado que está presente em uma série de páginas da Wikipedia. Esta imagem, por exemplo, se encontra na página sobre pseudociência, em inglês

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