Num mundo sem fatos, corremos riscos

Através da ciência geramos conhecimento sobre o mundo. A decisão de implementar políticas e tomar decisões negando esse conhecimento é uma característica do mundo “pós-factual”. Esta característica traz sérios riscos.

Através da ciência, aprendemos sobre o mundo à nossa volta. Ela não é a única maneira de aprender sobre o mundo, como ilustrado, por exemplo, pela riqueza de culturas indígenas ao redor do globo, incluindo as muitas presentes no território brasileiro. Contudo, a ciência certamente oferece respostas profundas e importantes sobre questões que atiçam nossa curiosidade: como os primeiros seres humanos chegaram à América do Sul? Que espécies de animais vivem escondidas em nossas casas e quintais? Mas, além disso, a ciência também gera conhecimento que é importante para nossas vidas, num sentido bastante concreto, respondendo a perguntas como: qual a relação entre desmatamento e secas? Ser afrodescendente altera suas chances de encontrar um doador de medula? Continue Lendo “Num mundo sem fatos, corremos riscos”

De pai para filhos

Cientistas descrevem um fenômeno raro em humanos: a herança de mitocôndrias da linhagem paterna. Esse fenômeno pode ter inúmeras consequências para a medicina e para o nosso entendimento da evolução humana.

Mitocôndrias são importantes organelas encontradas em praticamente todas as células eucarióticas. Veja aqui um post do Darwinianas que discute uma exceção. Considerada em muitos livros didáticos como a “usina” da célula, é na mitocôndria que se dá a maior parte da produção de energia, resultante em larga escala dos processos de respiração celular.  A explicação mais amplamente aceita a respeito da origem e evolução das mitocôndrias, apresentada pela Teoria da Endossimbiose, é a de que essas organelas, assim como os cloroplastos, tiveram origem de bactérias simbiontes. Mitocôndrias são fascinantes: elas possuem DNA próprio muito semelhante ao DNA das bactérias, são capazes de se duplicar e possuem metabolismo largamente independente do metabolismo celular, principalmente no que se refere à produção de proteínas. E isso tudo acontece continuamente dentro de cada uma das nossas células!

O número de mitocôndrias em uma célula eucariótica varia enormemente e é dependente de vários fatores como o tipo de tecido, estágio do ciclo celular, fases do desenvolvimento, ou resposta a estresse. Em média, uma célula eucariótica pode possuir centenas ou até milhares de mitocôndrias. Em humanos, uma célula hepática pode ter até duas mil mitocôndrias, representando 1/5 do volume celular. Na grande maioria dos casos, todas as mitocôndrias de uma mesma célula possuem cópias idênticas, ou quase idênticas, do mesmo DNA mitocondrial, herdado inicialmente da mitocôndria materna, fenômeno chamado de homoplasmia. Em última análise, todos nós estamos evolutivamente conectados, por meio da linhagem materna de DNA mitocondrial que remonta aos primórdios da humanidade, ideia sintetizada na expressão Eva Mitocondrial. Com base nessa ideia, o genoma mitocondrial tem sido amplamente utilizado para compreendermos a origem e evolução humana, assim como os padrões de migração das populações ao longo dos tempos.

Em mamíferos, com raras exceções, a herança de mitocôndrias se dá a partir da linhagem materna. Ou seja, assim como ocorre em cães e gatos, herdamos mitocôndrias das nossas mães. Mas, essa não é a regra em outros grupos. Herança mitocondrial bi-parental acontece em cogumelos e leveduras, enquanto herança paternal acontece em plantas. Evolutivamente, no entanto, a herança bi-parental de mitocôndrias, que resulta em um fenômeno chamado de heteroplasmia, no qual populações distintas de mitocôndrias coexistem na mesma célula, parece não ser vantajosa. Apesar de não termos ainda uma boa explicação para esse fenômeno, estudos em camundongos sugerem que heteroplasmia leva a um possível conflito entre mitocôndrias distintas em uma mesma célula, particularmente em relação à eficiência na produção de energia. Em camundongos, heteroplasmia resulta em comprometimentos fisiológicos, cognitivos e comportamentais, o que pode, ao menos em parte, explicar a prevalência da herança uni-parental em mamíferos.

Durante a fertilização em mamíferos, mitocôndrias presentes no espermatozoide paterno penetram o óvulo materno. No entanto, o DNA mitocondrial paterno, ou em alguns casos as próprias mitocôndrias paternas, é rapidamente degradado. Em animais, diversos mecanismos de degradação já foram descritos. Em mamíferos, a degradação das mitocôndrias paternas depende do correto funcionamento de lisossomos ou de proteassomas, ambos altamente dependentes do DNA nuclear. Dessa forma, mutações em genes nucleares podem resultar em  casos de heteroplasmia.

No entanto, na grande maioria dos casos até hoje descritos, heteroplasmia em humanos resulta não da herança de mitocôndrias paternas, mas de mutações pontuais no DNA mitocondrial da linhagem materna, fenômeno conhecido como ‘maldição materna’ (do inglês “mother’s curse”). Assim como em camundongos, heteroplasmia em humanos está fortemente associada a doenças mitocondriais, nas quais o funcionamento da mitocôndria está comprometido. A maioria dessas doenças resulta em comprometimento fisiológico severo, ou até mesmo inviabilidade do embrião, e mulheres com altas taxas de mutações no DNA mitocondrial têm alta probabilidade de aborto ou de terem filhos com essas doenças.

Doenças mitocondriais são um grande desafio para a medicina. Diversos tipos de terapia de substituição ou transferência de mitocôndria vêm sendo desenvolvidos, mas os avanços dessas abordagens são ainda bastante recentes. O primeiro caso de sucesso de terapia de substituição de mitocôndrias foi descrito em 2016, no qual um bebê foi gerado a partir da contribuição tri-parental.

Esta semana, um estudo publicado na PNAS  apresentou dados intrigantes que podem levar a uma nova compreensão da heteroplasmia em humanos. Luo e colaboradores descreveram, a partir de dados de sequenciamento do DNA mitocondrial completo, casos de herança mitocondrial bi-parental em 17 indivíduos de três famílias não-aparentadas. Até hoje, sabíamos apenas de um outro caso de herança paterna de mitocôndrias em humanos, descrito em apenas um indivíduo. Este é, portanto, o primeiro estudo de herança bi-parental conduzido em famílias. O que é ainda mais surpreendente é que alguns desses indivíduos que apresentam herança bi-parental não apresentam qualquer sintoma, contrariando a ideia de que heteroplasmia é necessariamente disfuncional em humanos.

Os autores propõem que a herança bi-parental descrita nessas famílias é resultante de mutações no DNA nuclear desse indivíduos, interferindo na eliminação da mitocôndria paterna. No entanto, a busca pelos fatores genéticos que contribuem para heteroplasmia resultante de herança bi-parental ainda continua, pois os mecanismos envolvidos nesse processo ainda não foram completamente desvendados.  É curioso notar também que, na grande parte dos casos estudados até hoje, o sequenciamento do DNA mitocondrial é motivado por situações nas quais os indivíduos são afetados por doenças mitocondriais. Portanto, sabemos ainda muito pouco a respeito do DNA mitocondrial de pessoas normais. Sem dúvida, necessitamos de mais estudos para compreendermos a prevalência desse fenômeno na população e a sua relação com as doenças mitocondriais.

Entender os mecanismos que levam à heteroplasmia em humanos pode nos auxiliar no desenvolvimento de tratamentos que eliminem por completo a necessidade de terapia de transferência ou reposição mitocondrial, por exemplo. O estudo de casos de indivíduos heteroplásticos normais pode levar a um novo entendimento das relações entre o DNA mitocondrial e nuclear, assim como da interação entre mitocôndrias distintas em uma mesma célula. Mas, além das diversas possibilidades de aplicação desse conhecimento na cura de doenças mitocondriais, esse estudo pode ter implicações talvez ainda mais profundas. Se a heteroplasmia em humanos for mais prevalente do que inicialmente estimado, talvez precisemos revisar, ao menos em parte, a história evolutiva da nossa própria espécie, que baseia-se largamente no pressuposto da herança mitocondrial materna exclusiva.

Os resultados apresentados por Luo e colaboradores desafiam duas ideias largamente aceitas na comunidade cientifica: a maldição materna e a Eva mitocondrial. E para a ciência, o desafio de ideias historicamente estabelecidas é um momento de grande entusiasmo. Estudos futuros podem  resultar na necessidade de reinterpretação de ideias há muito consolidadas, abrindo novas vias de pesquisa e desenvolvimento até então não exploradas. Essas transformações podem resultar em uma mudança paradigmática do conhecimento científico vigente, o que Thomas Kuhn chamou de ‘revolução científica’. E, no caso da herança mitocondrial, essa revolução ‘vem de dentro’, de dentro de cada uma das nossas células.

Ana Almeida

California State University East Bay (CSUEB)

 

Para saber mais:

Barr, C.M.; Neiman, M.; Taylor, D.R. 2005. Inheritance and recombination of mitochondrial genomes in plants, fungi, and animals. The New Phytologist, 168(1): 39-50.

Bromham, L. et al. 2003. Mitochondrial Steve: paternal inheritance of mitochondria in humans. Trends in Ecology and Evolution, 18(1): 2-4.

Connallon, T. et al. 2017. Coadaptation of mitochondrial and nuclear genes, and the cost of mother’s curse. Proceedings of the Royal Society B, 285: 20172257.

Herst, P.M. et al. 2017. Functional mitochondria in health and disease. Frontiers in Endocrinology, 8(296): 1-16.

Tuppen, H.A.L, et al. 2010. Mitochondrial DNA mutations and human disease. Biochimica et Biophysica Acta, 1797: 113–128.

Figura – Eletromicrografia de mitocôndrias no tecido pulmonar de mamífero. Fonte: Wikipedia, Louisa Haward.