Afinal, quem são os “Wallys” no pequeno mundo dos microrganismos?

Neste post faço uma analogia ao famoso livro “Onde está Wally?” para ilustrar uma linha que vem crescendo a cada dia no estudo da diversidade microbiana: a biosfera rara.

No meu post anterior, falei sobre o “mar” de microrganismos. Falamos do quão importante os microrganismos são para os oceanos, para a ciclagem de nutrientes, nas cadeias alimentares e na saúde dos corais. Foquei especialmente em ambientes recifais, com os quais tenho grande afinidade e sobre os quais já desenvolvi alguns trabalhos. Neste post falarei sobre um assunto que vem me fascinando há um tempo e tem um pouco a ver com os novos microrganismos de que falei no meu primeiro post aqui no Darwinianas, microrganismos pouco abundantes (ou raros) e sua importância.

Antes de mergulharmos no assunto propriamente dito, é importante definir o que é, ou quais são os critérios que usamos para dizer se um microrganismo é raro ou não. Em uma revisão sobre o tema, os Professores Michael D. J. Lynch e Josh D. Neufeld apresentam algumas definições presentes na literatura, mas talvez a mais utilizada seja que os microrganismos que compreendem de 0,1% a 0,01% em uma determinada amostra (a depender da referência utilizada) compreendem a microbiota (ou biosfera) rara. Essa definição arbitrária e amplamente utilizada em diversos estudos é baseada em técnicas que usam sequenciamento de nova geração para “contar” as “espécies” ou Unidades Taxonômicas Operacionais (muito comum achar OTU, que vem da sigla em inglês) nas amostras. Um outro aspecto a ser considerado é considerarmos que, diferentemente de organismos que dependem de reprodução sexuada para aumentar suas populações, tendo necessidade de encontrar um par (também raro) para se reproduzir, microrganismos apresentam reprodução clonal. Ou seja, em situações favoráveis (por exemplo, oferta de recursos) a sua abundância pode crescer e muito.

Algumas estimativas indicam que grande parte dos microrganismos que existem na biosfera não são ainda cultivados e que são muito pouco abundantes. Conhecer essa enorme diversidade é super importante do ponto de vista da ciência básica, mas também de possíveis aplicação das suas funções metabólicas e ecossistêmicas para saúde humana e para questões ambientais como biorremediação, por exemplo. Ressalto aqui alguns exemplos de estudos empíricos que mostraram a importância da biosfera rara para alguns processos. Um estudo sobre o impacto do uso da terra sobre a diversidade microbiana no solo feito em plantações de dendê na Malásia mostrou que em florestas e ambientes com uso menos intenso do solo, microrganismos pouco abundantes são muito importantes para manter a estrutura da comunidade de microrganismos no solo. Possivelmente esses microrganismos possuem papéis cruciais para mobilização de matéria orgânica para todos os demais microrganismos, sendo chave para o funcionamento dos ecossistemas. Um outro estudo, através de experimentos de longo prazo em turfeiras, mostrou que que microrganismos raros são os principais responsáveis pela redução do enxofre nesses ambientes. Esse achado é importante, pois reflete diretamente no conhecimento que temos sobre o ciclo do carbono, especialmente na produção de metano (um dos principais gases para o efeito estufa) neste ambiente, uma vez que o metabolismo de enxofre tem impacto direto nas vias de produção e degradação de metano.

Voltando a analogia do Wally, ainda precisamos conhecer muitos “Wallys” nos microbiomas, mas já temos conhecimento sobre o papel e a importância deles nos ecossistemas.

 

Pedro Milet Meirelles

Laboratório de Bioinformática e Ecologia Microbiana

Instituto de Biologia da UFBA

meirelleslab.org

 

Para Saber mais:

Lynch, M. D. J., and Neufeld, J. D. (2015). Ecology and exploration of the rare biosphere. Nat. Rev. Microbiol. 13, 217–229. doi:10.1038/nrmicro3400.

Wood, S. A., Gilbert, J. A., Leff, J. W., Fierer, N., D’Angelo, H., Bateman, C., et al. (2017). Consequences of tropical forest conversion to oil palm on soil bacterial community and network structure. Soil Biol. Biochem. 112, 258–268. doi:10.1016/j.soilbio.2017.05.019.

Kristensen, D. M., Mushegian, A. R., Dolja, V. V, and Koonin, E. V (2010). New dimensions of the virus world discovered through metagenomics. Trends Microbiol. 18, 11–19. doi:10.1016/j.tim.2009.11.003.

Pedrós-Alió, C. (2007). Dipping into the rare biosphere. Science (80-. ). 315, 192–193. doi:10.1126/science.1135933.

Pester, M., Bittner, N., Deevong, P., Wagner, M., and Loy, A. (2010). A “rare biosphere” microorganism contributes to sulfate reduction in a peatland. ISME J. 4, 1–12. doi:10.1038/ismej.2010.75.

Locey, K. J., and Lennon, J. T. (2016). Scaling laws predict global microbial diversity. Proc. Natl. Acad. Sci. 113, 5970–5975. doi:10.1073/pnas.1521291113.

(Imagem de abertura: https://findthething.wordpress.com/tag/find-wally-hidden-where-is-wally/)

A necessária morte da mística do DNA

O gene se tornou um ícone cultural seja nas escolas, na mídia, ou em escritos científicos. Ideias sobre o DNA que não se sustentam povoam nossos discursos. Já é tempo de deixá-las de lado.

Em sua análise do gene como um ícone cultural, a socióloga da ciência Dorothy Nelkin e a historiadora da ciência M. Susan Lindee analisaram a circulação do DNA e do gene em diferentes esferas da sociedade, analisando novelas, quadrinhos, propagandas e outras expressões da cultura de massas. Elas deixam às claras o que denominam uma mística do DNA, no modo como esta molécula e os genes que ela contém são representados na cultura popular. Segundo elas, enquanto a visão que acaba por chegar à cultura popular bebe nas ideias científicas para criar um discurso social sobre genes, ela escapa – como era de se esperar – às restrições de uma compreensão técnica desse conceito central da biologia. Todo mundo que já se deparou com um xampu que supostamente revitalizaria os cabelos por conter DNA sabe do que estamos falando. Evidentemente, o DNA não tem esse efeito sobre cabelos. O DNA entra aí como uma espécie de energia vital.

Este modo vitalista de pensar pode causar espanto há alguns. Afinal, ideias vitalistas, que atribuem os fenômenos vitais a uma espécie de energia que não poderia ser conhecida pela ciência, não são aceitas há muito tempo na Biologia e o DNA, decerto, não é equivalente a qualquer energia vital. E o pensamento vitalista foi superado na Biologia há um século, pelo menos. Contudo, na mística do DNA essas conotações vitalistas estão, elas próprias, muito vivas. As metáforas usadas para falar do DNA, seja na mídia, seja em livros didáticos, são muito claras. O DNA seria um “livro da vida”, uma espécie de essência definidora de nossa humanidade, até mesmo um Santo Graal, como escreveu o biólogo molecular Walter Gilbert, muito antes da decifração do genoma humano. O mesmo Gilbert que introduzia suas palestras sobre o sequenciamento genômico puxando um CD do bolso e anunciando ao público: “Isso é você” (como citado por Nelkin e Lindee em seu livro).

Esta é a mística do DNA. E ela segue bem viva entre nós. Está mais do que na hora, contudo, de decretar sua morte.

As conotações religiosas do discurso social sobre genes também são claras. Roxanne Parrott e colaboradores relataram que algumas pessoas que participaram de seu estudo acreditavam que Deus desempenha papel importante na expressão dos genes e em seu impacto sobre a saúde. O DNA passa a ser uma espécie de mediador ou mecanismo da vontade divina num pensamento fatalista que está presente em diferentes religiões. Por mais que alguém possa vislumbrar incompatibilidades entre esse modo de pensar e ideias científicas, a ciência escolar reforça tal visão na educação das pessoas, através de afirmações sobre genes e DNA que carregam tintas muito fortes, mas mal ficam de pé diante do que sabemos da biologia. Não são frases que encontraríamos somente na educação básica. Pensar isso é um ledo engano. Elas povoam as páginas inclusive de livros didáticos usados no ensino superior. Mas também não estão restritas a livros didáticos. Elas comparecem em textos de popularização da ciência e até mesmo em escritos científicos.

Aqui estão quatro exemplos: “O DNA é uma molécula que se autorreplica”. “O DNA controla o metabolismo celular”. “O DNA determina fenótipos”. “O DNA é um programa de desenvolvimento”. Todas estas são frases que não são compatíveis com o conhecimento biológico aceito, em alguns casos há décadas. Como disse o geneticista Richard Lewontin, determinismo biológico – certamente um dos aspectos dessas frases – não é sequer um problema filosófico. É somente biologia mal aprendida mesmo. Vejamos. 

A biologia do DNA

É bem sabido que a replicação do DNA depende de proteínas e RNAs que formam complexos envolvidos nas várias etapas desse processo. O DNA, portanto, não se autorreplica. O correto é dizer que sequências de nucleotídeos de DNA constituem moldes para sua replicação, o que é algo muito diferente da ideia de autorreplicação. Notem que, com esse termo, atribui-se a ação de replicar ao DNA, e não aos complexos de proteínas e RNAs, como é mais correto.

O DNA tampouco é uma molécula que controla a célula. O controle celular é, por assim dizer, democrático: ele não está concentrado em alguma molécula mestra, mas se encontra difuso por muitos nós da rede metabólica que constitui a bioquímica celular. O DNA é uma molécula relativamente inerte, que não comanda, controla, faz coisas com a célula, mas é usado pela célula por meio de redes complexas de interação molecular.

Fenótipos não são determinados por genes situados no DNA. Genes estão associados a fenótipos, sendo herdados como potenciais para seu desenvolvimento, mas a constituição de um fenótipo depende de processos complexos de desenvolvimento, no caso de organismos multicelulares, e da fisiologia de seres unicelulares. Pela mesma razão, o gene tampouco é um programa de desenvolvimento. Como uma simplificação, pode-se assumir, como no gene mendeliano, uma correspondência direta, de determinação, entre gene e característica, mas esta é uma suposição de um modelo que não trata o gene como uma entidade molecular, e sim como uma abstração (a exemplo do gene para cor dos olhos azuis, discutido em outra postagem de Darwinianas).

Estas frases, que atribuem um imenso poder ao DNA e aos genes nele contidos, somente poderiam ser corretas se o DNA fosse uma espécie de mini-consciência, um homúnculo a deliberar, por exemplo, se deve ou não expressar algumas de suas sequências. Contudo, evidentemente o DNA não é nada disso. Ele é um sistema de memória celular, na verdade, o mais fiel sistema de memória que surgiu na evolução da vida, em boa medida por ser uma molécula inerte.

Não passam mesmo de biologia mal aprendida a mística do DNA, o determinismo genético e outras ideias que dão ao DNA e aos genes um poder que ultrapassa o que está bem fundamentado no conhecimento biológico. Lewontin tinha razão vinte anos atrás. Cabe perguntar: a respeito de tais ideias, fizemos algum progresso nesse meio tempo? Minha impressão é que tivemos algum avanço, como mostra a popularidade da epigenética, inclusive no que se refere ao comportamento. Contudo, este é ainda um avanço tímido. É tempo de estas ideias serem eliminadas do ensino de biologia, em todos os níveis de escolaridade, assim como da popularização da ciência e dos escritos científicos. A morte da mística do DNA se torna cada vez mais necessária. Até mesmo para que venha à tona de modo mais claro a grande importância do DNA nos sistemas vivos.

Charbel N. El-Hani

Instituto de Biologia/UFBA

 

PARA SABER MAIS:

Bruggeman, F. J., Westerhoff, H. V. & Boogerd, F. C. 2002. Biocomplexity: A pluralist research strategy is necessary for a mechanistic explanation of the “live” state”. Philosophical Psychology 15: 411-440.

El-Hani, C. N. 2007. Between the cross and the sword: the crisis of the gene concept. Genetics and Molecular Biology 30(2): 297-307.

Gericke, N.; Hagberg, M.; Santos, V. C.; Joaquim, L. M. & El-Hani, C. N. 2014. Conceptual variation or Incoherence? Textbook discourse on genes in six countries. Science & Education 23: 381-416.

Keller, E. F. 2002. O Século do Gene. Belo Horizonte: Crisálida.

Leite, M. 2006. Retórica determinista no genoma humano. Scientiae Studia 4: 421-452.

Lewontin, R. J. 2002. A Tripla Hélice. São Paulo: Cia. das Letras.

Moss, L. 2003. What genes can’t do. Cambridge-MA: MIT Press.

Meyer, L. M. N.; Bomfim, G. C. & El-Hani, C. N. 2013. How to understand the gene in the 21st century. Science & Education 22(2):345-374.

Nelkin, D. & Lindee, M. S. 2004. The DNA mystique: the gene as a cultural icon (2a. ed.). Ann Arbor, MI: University of Michigan Press.

Nijhout, H. F. 1990. Metaphors and the role of genes in development. BioEssays 12: 441-446.

Parrott, R. L., Silk, K. J., Dillow, M. R., Krieger, J. L., Harris, T.M. & Condit, C. M. 2005. Development and validation of tools to assess genetic discrimination and genetically based racism. Journal of the National Medical Association 97:980-990.

A Genética Forense além (e apesar) do CSI

A Genética Humana Forense tem se popularizado nos últimos anos por meio se séries e programas de televisão, no entanto as informações passadas por esses programas raramente correspondem à realidade da ciência forenses atual.

Nas últimas décadas, diversos programas de entretenimento têm se dedicado a introduzir a Genética Humana Forense em nosso cotidiano, muitas vezes de maneira bastante simplista e pouco realista. No entanto, ainda que essa não seja a vitrine ideal para o que vem sendo realizado nessa área do conhecimento, a mesma existe e vem sendo usada pelo sistema de justiça de diversos países. Mas como isso funciona na prática, e qual a realidade da Genética Humana Forense atual?

Para responder esta pergunta, antes temos que entender um pouco sobre as evidências com as quais trabalham os geneticistas forenses. O DNA está presente em quase todas as células do corpo, e é único para cada um de nós, exceto os gêmeos monozigóticos. No nosso dia-a-dia perdemos muitas células, e com elas nosso DNA, sendo assim deixamos um vestígio nosso por onde passamos. Células são unidades microscópicas, e podem ser levadas de um lugar para o outro com vento, poeira ou água, o que faz com que nosso DNA possa estar em lugares onde nunca estivemos. Os cientistas forenses trabalham com esses ínfimos vestígios encontrados em cenas de crimes ou lugares de interesse forense.

Embora à primeira vista o trabalho forense possa parecer simples, é recente nossa capacidade técnica para: a. diferenciar um ser humano do outro em nível de DNA, pois somos 99.9% idênticos geneticamente. Foram necessários anos de desenvolvimento de perfis de identificação individual confiáveis, baseados no 0.01% da variabilidade que diferencia 7 bilhões de pessoas; e b. obter quantidade suficiente de DNA viável de tão escasso (e não raramente mal preservado) material biológico, pois as células que perdemos são poucas e ficam expostas ao ambiente, sofrendo degradação natural. Ainda assim, nem sempre é possível conseguir DNA viável para uso em análises forenses.

Desde que conseguimos tais avanços, o DNA obteve um status de intocável quando o assunto são evidências criminais, principalmente quando a discussão é realizada por leigos. No entanto, do ponto de vista científico, sabe-se das limitações das evidências de DNA.  Análises de DNA podem ser mal interpretadas ou enviesadas, pois dependem de manuseio ou interpretação humana em praticamente todas as etapas. Além disso, como mencionado anteriormente, DNA presente na cena do crime não é uma evidência inquestionável da presença do indivíduo na cena do crime, já que existem outras explicações plausíveis. Atualmente, na maioria dos países, o simples fato da presença de DNA na cena do crime não é evidência de culpabilidade. São necessárias mais evidências que suportem o caso para que um indivíduo seja considerado culpado.

Existe um outro lado da Genética Humana Forense que vem ganhando força nos últimos anos, que visa a construção de retratos moleculares dos suspeitos com bases na construção de perfis de genes relacionados a características fenotípicas como cor de olhos, cor de pele, cor de cabelos e formato do rosto. Um estudo de 2012 usou os genomas completos de pessoas públicas para avaliar com que precisão se podia prever os fenótipos de pigmentação de pele, olhos e cabelos nesses indivíduos. De acordo com os autores, somente era possível prever com certa precisão a presença de sardas (91%), enquanto a confiabilidade para cor de olhos foi de apenas 36%, e as demais variaram entre 42 e 83%. Esses valores são adequados para um estudo científico, mas nem de perto razoáveis para fins forenses. No entanto, em casos forenses, o que se faz é a soma de fenótipos, por exemplo, pelo DNA do suspeito poderíamos chegar a probabilidade de 75-85% do mesmo ser homem, de cabelos castanhos, sardas e olhos castanhos. Ou seja, é possível predizer um fenótipo, mas não excluir outros. Em relação a predição de fenótipos faciais, até o momento não existe nenhuma evidência científica do possível uso confiável da construção de retratos moleculares fidedignos a partir de genomas. O que se pode hoje é apenas construir um fenótipo aproximado usando dados populacionais, mas esse conhecimento não pode ser aplicado para a identificação individual.

Outras abordagens frequentes da Genética Humana Forense são o uso de linhagens familiares em suas investigações, como já foi discutido aqui no blog anteriormente; e a identificação de indivíduos por ancestralidade biogeográfica. A ideia principal desta última é diminuir o número de suspeitos usando marcadores genéticos de ancestralidade, pois assim seria possível saber se o suspeito seria europeu, africano, asiático ou nativo americano. Além de eticamente questionável, essa abordagem não poderia ser aplicável em países miscigenados, e estaria sujeita a um grande viés dependendo do grupo de marcadores genéticos usados. Recentemente a Inglaterra adotou essa abordagem no controle de imigração de sua fronteira, pois queria garantir que os refugiados que pediam asilo eram realmente do grupo biogeográfico que declaravam ser. Situações como essa surgem quando o uso da ferramenta técnica gerada pela ciência não é acompanhado pelo conhecimento científico proporcionado pela mesma.

Um relatório recente sobre a Ciência Forense nos EUA mostrou que o uso de técnicas forenses avançadas sem compromisso científico por parte dos investigadores que geram os laudos forenses é algo comum, e tem levado a sérias consequências no país, tais como execuções de inocentes e prisões injustas. Talvez esse mau uso dos dados, ou mesmo essa deturpação da informação gerada, seja resultado direto do status de infalível do DNA e de outros métodos forenses, somado à falta de educação científica dos envolvidos no sistema de justiça.

Tábita Hünemeier

IB/USP

PARA SABER MAIS:

Foto da abertura: https://www.discoverycf.com

 

Comunicação, verdade e poder

Os meios de comunicação, ou o quarto poder (ao lado do executivo, legislativo e judiciário) têm sido pulverizados pelas novas mídias sociais. Enquanto muitos louvaram tais mídias como uma alternativa aos oligopólios de comunicação, o recente império das notícias enganosas (fake news), ou da venda de dados pessoais pelas redes sociais, abalando a reputação de democracias sólidas como a dos Estados Unidos, deixa claro que não há muito nada de muito novo nestas ‘novas’ mídias: elas promovem apenas uma reorganização do quarto poder. O poder da comunicação é o de movimentar organizadamente os organismos, criando movimentos uniformizados e harmônicos. Aqui, já não importa muito a verdade, pois as pessoas até mesmo em movimento equivocado são em si uma nova ‘verdade’, uma realidade que se impõe. O problema mais fundamental, portanto, não diz respeito à relação entre a mídia e a verdade, mas sim, e fundamentalmente, à relação entre comunicação e conhecimento.

A comunicação é a manipulação de signos, que costumam representar porções do mundo: a palavra bola se refere a um objeto redondo que pula no pé. Da manipulação mental de signos, esta espécie de comunicação interna ao nosso cérebro, chegamos a soluções e planos para o mundo concreto sem que precisemos manipular o mundo em si. Isto é vantajoso, já que manipular signos se constitui em uma operação muito mais simples que a de manipular os objetos do mundo concreto. Mas o sucesso desta operação com signos depende, em primeira instância, da certeza da relação entre o signo e o objeto. Se esta relação é posta em dúvida, se o signo é um fantasma sem representante no mundo, se algumas partes do mundo estão inflacionadas, enquanto outras, ao contrário, estão ausentes no universo dos signos, aí começamos a ter problemas, e a manipulação mental de signos passa a ser uma ferramenta ineficaz para a previsão de aspectos do mundo. Surge a dúvida quando nossas previsões, baseadas nos melhores conceitos e melhores modelos de mundo, se mostram incorretas.

Esta dúvida fundamental pode ser formulada em termos de sistemas teóricos acerca da linguagem. Se concebemos a relação entre o signo e o objeto como uma relação direta, se entendemos que a cada signo corresponde um objeto e vice versa, se entendemos que a relação entre a linguagem e o mundo tem uma origem divina ou, de maneira menos teológica, se entendemos que a lógica da linguagem, sua sintaxe, advém diretamente da articulação entre os objetos (de suas interações no mundo real), neste caso temos confiança no signo, que passa a ser praticamente um novo objeto, de tão colado ao mundo real: a palavra move montanhas. Este é um universo algo mágico, onde manipular as palavras do jeito correto, no momento adequado, com as devidas honrarias, equivale a manipular os objetos do mundo: abracadabra. Diz-se desta uma concepção diádica, na qual existem apenas dois elementos no processo comunicativo: os signos e os objetos aos quais se referem. Agora, se concebemos a relação entre o signo e o objeto como passando por um sujeito (diz-se uma relação triádica) ou, de forma mais ampla, se concebemos a relação entre a linguagem e o mundo como passando pela história da humanidade, então temos motivos de sobra para duvidar da linguagem como fonte de conhecimento. A história mostra inúmeros erros e acertos da humanidade, e a linguagem assim humanizada estaria contaminada por erros e acertos sucessivos.

Há quem imagine uma linguagem pura, não contaminada por qualquer conteúdo que seja. Para estes, a linguagem é um meio neutro, que permite a transmissão de qualquer conteúdo, e para estes a mídia também é neutra, não afeta o conteúdo da notícia. Seria mais ou menos a idéia de que o conteúdo de uma música pode estar em diversas mídias, pode estar em um chip, em um DVD, em um dispositivo de memória portátil, em um televisor ou mesmo nas contemporâneas nuvens digitais: em todas estas mídias a música é a mesma. A mídia não afeta, é independente do conteúdo que veicula. Dada esta independência, a mídia pode veicular qualquer conteúdo.

Do mesmo modo, mas de um ponto de vista mais amplo, há quem pense que o sujeito não existe, ou não importa, para o fenômeno da comunicação. Há quem entenda que a comunicação atravessa os indivíduos, que são meras marionetes na mão de um processo muito mais amplo, joguetes de correntes históricas que se digladiam para além deles próprios. Nesta visão, os indivíduos são apenas veículos transitórios de informações; os contos e as brincadeiras infantis, por exemplo, passam de indivíduo a indivíduo por séculos, e seria pouco razoável, dizem, supor que trocar um efêmero indivíduo por um outro qualquer, neste trajeto histórico, teria algum efeito importante sobre os contos e brincadeiras que, estes sim, permanecem no longo tempo. Esta é uma abordagem curiosa, que pressupõe, por exemplo, que não importa o locutor, apenas a mensagem: seria algo como supor que bobagens que eu diga no meu twitter no meio de uma noite insone sejam equivalentes aos surtos verborrágicos noturnos de Donald Trump, manchetes seguras na manhã seguinte.

Por mais que pareça estranha esta abordagem, conceber-nos como marionetes da história, ou supor uma gramática isenta de conteúdo, não é uma posição assim, digamos, totalmente indefensável. De fato, contos perduram mais que os indivíduos que os contam, mas a questão que cabe pensar é: contamos toda e qualquer história para nossos filhos? Dito de forma mais genérica: somos uma mídia tal qual um CD, que aceita qualquer conteúdo? Somos um avatar que, tal como no filme de James Cameron, pode receber pensamentos e sensações de outros navi, ou de seres humanos, ou até mesmo da árvore mãe de Pandora? Será que um corpo navi, com um cérebro e estrutura diferente da do ser humano, pode traduzir perfeitamente nossos pensamentos? Desconfio que não, e tenho certeza que a história fantástica de Franz Kafka, da metamorfose de um humano que acorda como uma barata, apenas que continua pensando como humano, não passa de uma história fantástica, pois o sistema nervoso de uma barata não poderia comportar pensamentos que não fossem de baratas. O que temos aprendido repetidamente em etologia, na ciência que estuda o comportamento animal, é que animais diferentes têm diferentes capacidades comunicativas e cognitivas, e que aquilo que um chimpanzé tem dificuldade em aprender, uma arara o faz com facilidade. A etologia nos diz que não somos organismos inespecíficos, neutros, mas que sim somos altamente seletivos em relação àquilo que aprendemos, que nossa atenção é voltada para aspectos do mundo aos quais outras espécies não dão a mínima. Diferentemente dos computadores que projetamos, não lidamos de forma idêntica com todo e qualquer conteúdo com o qual nos deparamos: não somos transmissores passivos. Nos relacionamos com o mundo de forma específica, o que termina por gerar um sistema nervoso também específico, voltado às nossas necessidade mundanas pessoais. Diferentemente dos computadores que construímos, não somos operadores genéricos de signos.

Até aqui, nada muito especial. Nada de novo saber que, sim, nossa espécie tem uma perspectiva sobre o mundo, e que esta perspectiva foi selecionada em nosso passado evolutivo. Agora, como tudo que é relevante evolutivamente, esta perspectiva sobre o mundo deve ter variabilidade dentro da população. Indivíduos diferentes devem ter perspectivas ligeiramente distintas, e é inclusive por isso que a comunicação é necessária. Não nos entendemos perfeitamente, tal qual um computador entende a outro. Precisamos, para nos fazer entender, dar voltas à linguagem, retomar o tema, circunscrevê-lo a partir de outro ângulo, de modo a gradualmente tornar claro ao ouvinte o nosso complexo e particular ponto de vista. Diferentemente da comunicação entre idênticos, realizada pelas nossas máquinas, nossa comunicação, e a de todos os animais, se dá entre diferentes, entre seres desiguais, e a função da comunicação é justamente suplantar estas diferenças, inventar meios de fazer saber, a um outro, aquilo que me é único. Diferentemente da comunicação entre máquinas, a comunicação humana, e animal, é eminentemente criativa: ela tem que criar para poder comunicar, sempre, o novo. E, cá entre nós, comunicar o novo é em geral muito mais interessante que comunicar o já sabido.

Tudo isso indica que nossa linguagem não é fruto de uma lógica pura e abstrata, não é de um modo geral independente do conteúdo que veicula (talvez seja realmente mais fácil filosofar em alemão, como já cantou Caetano). Indica, insisto, que a linguagem não evoluiu como uma ferramenta inteiramente abstrata, pois temos, como qualquer espécie animal, um ponto de vista: não somos uma mídia neutra, não somos um chip regravável, não somos um computador superpoderoso. Para ressaltar esta diferença homem/máquina, é bom dizer o óbvio: somos muito mais que linguagem. Antes de toda e qualquer fala existem os atos concretos sobre o mundo. Formigas podem construir boa parte de seu formigueiro, coletivamente, sem se comunicar: uma deixa um bloco de terra sobre o qual a outra coloca um novo bloco, ao qual se soma uma terceira, e assim sucessivamente, sem contato entre as formigas. As ações se entretecem em formigueiro. Este concatenamento de ações gerando um conjunto harmonioso pode prescindir de comunicação, signos, ou o que o valha. Antes de falar sobre o mundo, manipulamos o mesmo, e assim descobrimos suas propriedades. Não há porque falar sobre o mundo quando ele está presente, à nossa frente. Boa parte do que fazemos tem esta qualidade do presente, qualidade sob a qual a linguagem empalidece, pois os pores de sol são poesia mais que suficiente para os dias.

Talvez os formigueiros, com suas ações entretecidas de silêncios, nos sirvam de antídoto para as ruidosas e virtuais redes sociais, para este império da linguagem no qual as notícias enganosas e os rancores extremistas têm feito sua morada. Quando a comunicação traz prejuízos regulares para o receptor da mensagem, o silêncio pode ser mais construtivo que a comunicação. Menos palavras virtuais, e mais atos coletivos, entretecidos com a vida concreta de pessoas de carne e osso, podem nos ajudar a criar estruturas sociais novamente confiáveis, e a fazer minguar o cinismo que a mentira recorrente tem estimulado em nossas mídias digitais.

Entre as palavras e as coisas, as coisas têm precedência. O mundo existe antes de nós mesmos. Devemos parar de agir como se o mundo fôssemos nós, como se pudéssemos destruí-lo sem consequência alguma, pois ele continuará a existir, depois que nossa ruidosa caravana passar. As palavras apenas recobrem as coisas, e não podemos deixar que elas recubram um imenso vazio, sob a pena de vivermos sobre uma fina superfície sem sentido. Se deixamos as palavras falsearem todo o tempo, se acharmos que tudo bem, porque tudo é apenas uma construção social, se erigirmos edifícios cada vez mais altos, sobre superfícies cada vez mais ocas: bem, mais alto o coqueiro, maior é o tombo do coco, afinal.

Hilton Japyassú

Para saber mais

Favareau, D. (2010). Essential readings in biosemiotics: Anthology and commentary (Vol. 3). Springer Science & Business Media.

Shettleworth, S. J. (2010). Cognition, evolution, and behavior. Oxford University Press.

Wasserman, E. A., & Zentall, T. R. (Eds.). (2006). Comparative cognition: Experimental explorations of animal intelligence. Oxford University Press, USA.