Seguem os prejuízos da politização dos debates sobre tratamento e prevenção da COVID-19

Ainda em 2020 evidências mostraram de modo consistente que a hidroxicloroquina não é um tratamento efetivo para a COVID-19. Isso não diminuiu o debate em torno dessa droga, que tem gerado muito burburinho. Um dos resultados foi a interrupção prematura de estudos sobre o uso dessa droga na prevenção da COVID-19. Quais lições devemos tirar desse episódio?

Verdade versus pós-verdade. Cartoon de Martin Shovel. Disponível em: https://twitter.com/martinshovel/status/804968341471457280?lang=en

Há alguns dias, comecei a receber de diversos amigos e colegas, que sabem de meu interesse sobre os debates em torno dos estudos sobre um possível papel da (hidroxi)cloroquina no tratamento e na prevenção da COVID-19, uma revisão sistemática e meta-análise recente sobre o uso profilático desse medicamento, ou seja, na prevenção dessa doença. A razão de meu interesse reside no fato de que o caso da (hidroxi)cloroquina é um prato cheio para uma estratégia de ensino que uso em meus cursos na UFBA, combinando questões sociocientíficas e aprendizagem baseada em problemas. Isso porque muitos estudos que testaram essa droga foram marcados por inúmeros problemas metodológicos e é possível detectar a interferência de interesses e valores em sua condução, sem falar da ampla controvérsia sociopolítica.

Questões sociocientíficas são problemas ou situações controversas e complexas vivenciadas por sociedades contemporâneas nas quais o conhecimento científico tem papel fundamental nas origens, na compreensão e/ou na busca de soluções. Além disso, uma questão sociocientífica é passível de transposição para a sala de aula, como uma ferramenta de ensino e aprendizagem, favorecendo a discussão de relações entre ciência, tecnologia, sociedade e ambiente, bem como de aspectos éticos dos problemas sociais e da pesquisa científica. A caracterização do que é uma questão sociocientífica já sugere, de imediato, por que o caso da (hidroxi)cloroquina desperta interesse para uso em tal abordagem pedagógica.

O que mais me despertou a atenção, contudo, foi o relato de que o artigo que me foi enviado estava circulando em determinados grupos como referência fundamental a favor de um papel da (hidroxi)cloroquina na prevenção da COVID-19, inflamando ânimos já muito excitados na controvérsia fortemente carregada de conotações políticas em torno desse medicamento.

O problema é que o artigo em questão não apresenta de fato evidências a favor de um papel da hidroxicloroquina na prevenção da COVID-19. O que ele conclui é que as evidências disponíveis ainda são insuficientes para excluir um papel profilático desse medicamento no caso dessa doença. A diferença é muito importante: falta de evidências suficientes é algo muito diferente de evidência a favor de uma tese que se pretende defender. Além disso, o artigo já se inicia com uma conclusão que contradiz expectativas muito defendidas, com um ardor tão grande que gera muito calor e pouca luz: “A hidroxicloroquina não é um tratamento efetivo para COVID-19 estabelecida”. Esta, sim, é uma conclusão já muito bem estabelecida a partir das evidências disponíveis. Ora, tudo isso deveria ser bastante claro. Afinal, estas são conclusões que saltam aos olhos quando lemos o artigo.

Como, então, as pessoas não viram isso? A primeira razão que me vem à cabeça é muito óbvia, provavelmente correta: elas nem leram o artigo e convenceram-se das supostas conclusões disseminadas por determinado grupo apenas por memes e mensagens nas redes sociais. Quanto a esta razão, a indicação é simples e direta: informem-se em fontes de qualidade, busquem – se possível – inclusive verificar as fontes originais, certifiquem-se de que não estão sendo enganados por fake news, antes de sair defendendo conclusões visceralmente.

Contudo, o que gostaria de examinar aqui é uma razão mais interessante, ainda que mais hipotética no atual estado de coisas. Suponhamos que uma pessoa se dispõe a ler o artigo original, ou, ao menos, um relato fidedigno dos seus achados. Será que há condições em que ela chegaria a conclusões diferentes daquelas que saltam aos olhos no artigo, por exemplo, de que ele apresenta evidências favoráveis ao uso da hidroxicloroquina na prevenção da COVID-19? Uma condição que poderia resultar nessa situação é o chamado “raciocínio motivado”, um fenômeno psicológico no qual as pessoas elaboram e avaliam argumentos e/ou examinam dados e evidências de forma enviesada, buscando alguma interpretação que se acomode a e/ou favoreça alguma crença preexistente. Outra condição, contudo, consiste na dificuldade de as pessoas entenderem como o trabalho científico é realizado, como os argumentos científicos são construídos, que fatores intervêm na construção e defesa de tais argumentos, entre outros elementos.

Antes de seguirmos com esse argumento, devemos, no entanto, examinar o artigo que me foi enviado, para considerar o que é ali relatado.

Uma revisão sistemática e meta-análise de estudos sobre o uso da hidroxicloroquina para prevenção da COVID-19

A publicação que estamos examinando relata os resultados de uma meta-análise de ensaios clínicos randomizados e controlados (randomized controlled trials, RCTs) que investigaram a efetividade da hidroxicloroquina na prevenção da COVID-19. Nessa meta-análise, foram incluídos 11 RCTs, sete que investigaram o uso da hidroxicloroquina como meio de evitar contrair a doença antes de exposição conhecida a um indivíduo infectado (profilaxia pré-exposição), e quatro que investigaram o uso desse medicamento após tal exposição (profilaxia pós-exposição). Todos os sete ensaios clínicos voltados para profilaxia pré-exposição eram testes que usaram placebo (ou seja, uma substância ou tratamento inerte, que não apresenta interação com o organismo) como controle e método duplo-cego (nos quais nem pesquisadores nem participantes sabem, durante o teste, quais tratamentos foram atribuídos a cada participante, se placebo ou medicamento). Todos eles foram realizados com trabalhadores da área da saúde que estavam sujeitos a exposição a COVID-19 em seu ambiente de trabalho, mas não apresentavam exposição conhecida a pacientes infectados. Os quatro ensaios clínicos voltados para profilaxia pós-exposição foram realizados com pessoas assintomáticas que haviam entrado em contato com casos confirmados de COVID-19. Estes ensaios têm, contudo, uma fragilidade importante: o tempo entre a exposição a contatos infectados e o início do tratamento foi tão longo que eles podem confundir-se com testes de tratamento precoce da doença com hidroxicloroquina. Assim, os resultados destes últimos ensaios devem ser considerados com maior cautela.

Os critérios de inclusão na meta-análise possibilitaram eleger apenas estudos capazes de produzir evidências de maior qualidade, na medida em que foram admitidos apenas testes controlados e randomizados, com indivíduos cuja infecção pelo coronavírus SARS-CoV-2 havia sido confirmada por PCR (com poucas exceções que, quando excluídas da análise, não afetaram de modo relevante os resultados), e que haviam sido publicados em periódicos arbitrados ou estavam disponíveis como preprints (ou seja, antes de sua publicação em periódico).

Dois autores do estudo avaliaram independentemente os riscos de vieses nos ensaios clínicos. Isso é importante para controlar, na meta-análise, o grau de interferência nos resultados dos ensaios devido a fragilidades no desenho metodológico. Esta avaliação identificou ensaios clínicos com fontes moderadas de viés ou interferência nos resultados, em virtude de dados incompletos sobre a infecção dos participantes e a exclusão de participantes do estudo após terem sido atribuídos ao grupo que recebeu hidroxicloroquina como medida preventiva ou ao grupo controle.

É importante estar atento aos resultados obtidos na meta-análise. Como escrevem os autores, “o benefício da hidroxicloroquina como profilaxia para a COVID-19 não pode ser descartado com base na evidência disponível de ensaios randomizados”. Portanto, a conclusão é de que as evidências disponíveis ainda são insuficientes para excluir um papel profilático da hidroxicloroquina, o que é algo inteiramente distinto de oferecer evidências a favor de um papel dessa droga na prevenção da COVID-19. A razão pela qual as evidências são insuficientes reside na quantidade pequena de ensaios clínicos que puderam ser completados. A principal preocupação dos autores é de que os ensaios randomizados e controlados disponíveis produziram achados que não são estatisticamente significantes, mas isso não deve ser interpretado no sentido de que eles teriam produzido evidências convincentes da falta de efetividade do medicamento na prevenção da COVID-19, mas apenas de que esses estudos não produziram evidências suficientes para uma decisão consistente acerca da hipótese. Em contraste com o uso da hidroxicloroquina no tratamento da COVID-19, cuja ineficácia foi estabelecida de modo convincente ainda no segundo semestre de 2020, como os autores do próprio artigo afirmam já em sua primeira frase, ainda há bastante incerteza sobre os benefícios dessa droga na prevenção ou profilaxia da doença.

Esta incerteza se mostra claramente nos resultados obtidos na meta-análise feita pelos autores. Embora os ensaios clínicos voltados para profilaxia pré-exposição resultem, quando analisados conjuntamente, numa estimativa de risco cerca de 28% menor de contrair COVID-19 no grupo de participantes que recebeu hidroxicloroquina, qualquer efeito entre 5% e cerca de 45% de redução no risco é altamente compatível com os dados colhidos nesses ensaios. Quanto aos ensaios voltados para profilaxia pós-exposição, tanto uma redução substancial quanto um aumento moderado no risco de contrair COVID-19 uma vez administrada hidroxicloroquina se mostrou altamente compatível com os dados obtidos. Não há dúvida, então, de que as evidências disponibilizadas pelos ensaios incluídos na meta-análise são insuficientes para qualquer conclusão mais segura sobre os benefícios, a ausência de benefícios ou os riscos de usar hidroxicloroquina na prevenção da COVID-19. Ou seja, há mais incerteza do que segurança nas conclusões que podemos obter quanto ao uso dessa droga na profilaxia da doença, como a ampla variação nas estimativas de risco obtidas mostra.

A situação poderia ser diferente se os 30 ensaios clínicos planejados no começo da pandemia para investigar uso profilático de hidroxicloroquina tivessem sido realizados, em vez dos 11 somente que foram reunidos na meta-análise. A maioria desses ensaios não foi completada, contudo, porque as comunidades médica e científica chegaram à conclusão de que esse medicamento não tinha efetividade na prevenção da COVID-19 e de que testes adicionais não seriam necessários após os achados de apenas dois desses ensaios terem sido publicados. Essa conclusão prematura envolveu uma confusão entre ausência de efeito e ausência de significância estatística: concluiu-se que a hidroxicloroquina não tinha efeito profilático na COVID-19 quando a conclusão correta era de que as evidências obtidas nos ensaios clínicos disponíveis possibilitavam estimativas de efeito do medicamento na prevenção da doença que eram demasiadamente imprecisas. Os resultados desses ensaios apoiavam, assim, a necessidade de mais testes de um possível papel profilático do medicamento, e não a tese de que não era mais preciso realizar estudos a este respeito.

A emergência de um consenso sobre a ineficácia da hidroxicloroquina na prevenção da COVID-19 foi considerada surpreendente pelos autores da meta-análise, porque os dois ensaios nos quais este consenso se baseou encontraram um risco menor de contrair a doença entre as pessoas às quais foi administrada hidroxicloroquina. Contudo, como as amostras dos dois estudos eram pequenas, os resultados não foram suficientes para excluir seja o benefício seja o prejuízo de tomar essa droga como medida profilática. Mas por que será que houve este salto para uma conclusão negativa sobre o uso da hidroxicloroquina como prevenção da doença na ausência de evidência suficiente? Não há dúvida de que todo o barulho em torno do emprego dessa droga no tratamento da COVID-19, motivada pelo uso político dos achados de ensaios clínicos que produziram evidência frágil e insuficiente a favor de seu papel terapêutico, foi decisivo para que se saltasse a tal conclusão com evidência muito menor do que aquela que estabeleceu, convincentemente, a falta de efetividade da droga como medida terapêutica. Assim, esse uso político causou prejuízos, ao impedir a geração de evidências suficientes e estimativas precisas acerca do uso da hidroxicloroquina na gestão da pandemia antes de vacinas estarem disponíveis. Isso ocorreu porque a convicção sobre a falta de efetividade da hidroxicloroquina na prevenção da doença diminuiu substancialmente a velocidade de recrutamento de pessoas para os ensaios clínicos ainda em andamento que visavam testar esse uso da droga.

Os autores da revisão sistemática e meta-análise que estamos discutindo estavam realizando um ensaio clínico para testar o uso da hidroxicloroquina na prevenção da COVID-19 e, como ocorreu em outros estudos, enfrentaram sérias dificuldades para recrutar pacientes para participar do estudo. Na extrema politização do debate em torno do uso dessa droga no tratamento da doença, foi ignorado o fato de que, ainda em 2020, já havia evidência suficiente para mostrar que a hidroxicloroquina não tem papel na terapia da doença, e isso levou, paradoxalmente, a dificuldades em estudos que buscavam testar outro papel para a droga na gestão da pandemia. Estas são águas passadas, uma vez que a disponibilidade de vacinas eficazes para a COVID-19 reduz a necessidade de medidas farmacológicas de prevenção. Contudo, é importante aprender com esse evento, de modo a aprimorar a geração e interpretação de evidências antes que enfrentemos a próxima emergência de saúde pública, climática e/ou ambiental.

Quais seriam as lições?

Quais as lições a ser derivadas desse episódio? Mais alguma lenha na fogueira dos conflitos e discursos sobre (hidroxi)cloroquina nas redes sociais? Esta parece ser a lição que muitos têm derivado. Mas certamente não é a lição correta, porque reforça a fonte do problema analisado no artigo, que mostra como a politização extrema dos debates em torno da (hidroxi)cloroquina tem sido prejudicial. Em vez de deslocar os juízos sobre o uso de um medicamento para controvérsias sobre opiniões nas redes sociais, teria sido mais apropriado aguardar as conclusões de estudos feitos por comunidades científicas relevantes (como as de pesquisadores biomédicos, epidemiologistas, virologistas etc.), desde que tivessem a qualidade esperada nas práticas científicas aceitas por essas comunidades. Certamente não é o caminho para alcançar julgamentos de melhor qualidade usar o artigo que estamos discutindo para alimentar ainda mais debates mal-informados sobre a (hidroxi)cloroquina, mal-informados tanto no sentido do entendimento do conhecimento científico em si mesmo quanto em termos do modo como este é produzido e validado. Um caminho mais preferível é utilizar esse artigo para entender o impacto negativo das controvérsias em torno do medicamento, que tiveram e seguem tendo lugar especialmente nas redes sociais; o papel fortemente político dessas controvérsias (nas quais não é a busca de conclusões seguras, mas sobretudo a construção de discursos que favoreçam a posição politica de certos grupos que tem sido almejada); e a necessidade de aguardar conclusões mais seguras da comunidade científica sobre o que está sendo pesquisado, antes de criar um acalorado debate que gera mais fogo do que luz.

Como argumenta Bruno Latour, em Políticas da natureza, se não temos boas razões para questionar uma conclusão científica, ela deve ser tomada como um ponto de partida para deliberação (notem: não como um ponto final, porque há mais envolvido na deliberação social do que apenas resultados consolidados pela pesquisa científica). Mas, antes disso, é preciso que haja espaço para que tais boas razões sejam alcançadas. Um debate que busca usar resultados científicos ainda não-consolidados para defender posições em embates sociopolíticos cria, por assim dizer, um curto circuito no processo que poderia levar-nos a ter segurança sobre as conclusões científicas, antes de nos metermos a deliberar. Deliberamos, então, sobre bases insuficientes, no que tange ao conhecimento científico disponível, e isso pode levar-nos a cometer grandes equívocos. Os processos naturais não querem saber, contudo, de nossas confusas e acaloradas controvérsias sobre terrenos pantanosos: eles seguem seu curso… E, em seu curso, podem muito bem aumentar nossas incertezas. Necessitamos entender melhor o conhecimento científico e o modo como ele é produzido, bem como a maneira como argumentos científicos são construídos. Como temos defendido desde os primeiros dias de Darwinianas, é urgente que a educação científica e a comunicação pública da ciência se tornem mais capazes de oferecer aos cidadãos melhores ferramentas para compreender como se dão a construção e a validação dos conhecimentos científicos, de como achados da ciência são mobilizados na argumentação, e de como relações entre ciência, tecnologia, sociedade e ambiente intervêm na elaboração e defesa de argumentos que se utilizam de achados científicos.

Charbel N. El-Hani

(Instituto de Biologia/UFBA)

PARA SABER MAIS

García-Albéniz, X., del Amo, J., Polo, R., Morales-Asencio, J. M. & Hernán, M. A. (no prelo). Systematic review and meta-analysis of randomized trials of hydroxychloroquine for the prevention of COVID-19. European Journal of Epidemiology.

Latour, B. (2019). Políticas da natureza. São Paulo: Editora UNESP.

Vacinação de crianças contra COVID-19: A importância de superar a hesitação

É natural que pais hesitem em vacinar filhos e filhas contra a COVID-19. Buscar informação de qualidade e vacinar-se contra a infodemia, os boatos, as teorias da conspiração e o negacionismo são os caminhos para superar essa hesitação. A síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica associada à COVID-19 é uma boa razão para isso.

Cartaz informando sobre Síndrome Inflamatória Multissistêmica em crianças. Disponível em: https://www.hps.holyoke.ma.us/2021/04/29/multisystem-inflammatory-syndrome-in-children-mis-c/

Em 29 de dezembro de 2021, havia 281 808 270 casos confirmados e 5 411 759 mortes por COVID-19 em todo o mundo, conforme dados oficiais da OMS. No Brasil, os mesmos dados registravam 22 246 276 casos confirmados e 618 534 mortes. Estes são valores subestimados, pelo baixo número de testes diagnósticos realizados, bem como pelas dificuldades em identificação de casos e razões de óbito em vários países do mundo. A apresentação da doença também contribui para sua subnotificação, uma vez que cerca de 80% dos pacientes mostram apresentações menos graves, às vezes até assintomáticas. Seja como for, não há como negar a seriedade desse quadro de saúde pública, no mundo ou no Brasil.

O nosso país tem 2,8% da população mundial, que é de 7.7 bilhões de pessoas. Assim, considerando o número de mortes registrado nos dados oficiais da OMS, 11,4% de todas as mortes por COVID-19 tiveram lugar no Brasil, um percentual muito acima da proporção da população mundial que vive em nosso território. Por sua vez, 7,9% de todos os casos confirmados ocorreram no país. É óbvio que o impacto da COVID-19 em nosso país é enorme, sendo até difícil exagerá-lo: cerca de uma em cada nove pessoas que morreram de COVID-19 veio a óbito em território brasileiro, o que vale também para uma em cada 12 pessoas acometidas pela doença.

Em 28 de dezembro de 2021, um total de 8 687 201 202 doses de vacinas contra a COVID-19 haviam sido administradas. A vacinação evitou milhões de casos, assim como de hospitalizações, e salvou centenas de milhares de vidas. No Brasil, o número de mortes pela doença caiu 94% em novembro, em comparação com o pico de mortes em março, em grande medida devido à imunização em massa.

É óbvio, assim, que as vacinas tiveram grandes efeitos não somente sobre a saúde pública e individual, mas também sobre os custos sociais e econômicos associados às hospitalizações e mortes pela pandemia, como tem sido mostrado ao redor do mundo. Um exemplo pode ser encontrado nesse relatório norte-americano. Estes são, no entanto, apenas os aspectos quantificáveis relativos à vacinação. Há efeitos profundos que não podem ser tão facilmente quantificados: os idosos que voltaram a poder celebrar aniversários e feriados com netos e netas, as crianças que puderam retornar presencialmente às escolas, as pessoas com comorbidades que tiveram seus medos diminuídos, toda uma série de trabalhadores que puderam voltar às suas atividades, e assim por diante. Não vacinar-se ou dificultar que as pessoas sejam vacinadas pode ser considerado, assim, uma irresponsabilidade social. Afinal, nossos direitos individuais terminam onde começam a prejudicar a coletividade.

Recentemente, chegou enfim a vez de podermos vacinar nossas crianças! Contudo, muitos pais ainda hesitam em vacinar filhos e filhas contra a COVID-19, apesar das evidências indicando a segurança das vacinas e uma efetividade de 90,7% na prevenção da doença. Isso mesmo diante de dados que indicam que, até dezembro de 2021, mais de 12.000 crianças e adolescentes morreram em todo o mundo devido à doença, ou que, no Brasil, a mortalidade de crianças por COVID-19 é maior do que a mortalidade total devida a outras doenças tratadas com vacinas. Isso reforça a urgência da imunização, conforme aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para a faixa etária entre 5 e 11 anos.

Nos Estados Unidos, um levantamento recente, realizado pela Kaiser Family Foundation (KFF), mostrou que somente 27% dos pais de crianças entre 5 e 11 anos de idade estão ansiosos para imunizar filhos e filhas contra a doença, enquanto 30% afirmam que não os vacinarão. Em muitos outros países, incluindo o Brasil, vemos resistência semelhante.

Estes dados contrastam com a ampla adesão à vacinação nesses mesmos países. O Brasil sempre foi reconhecido mundialmente pela ampla vacinação de suas crianças contra uma diversidade de doenças, da poliomielite ao sarampo. Nos Estados Unidos, mais de 90% das crianças com idade até 24 meses são imunizadas contra várias doenças. A administração de vacinas recomendadas pelas autoridades de saúde foi durante muito tempo – embora não ao longo de toda a sua história – uma medida de prevenção que goza de grande confiança, assim como usar capacete para andar de bicicleta ou motocicleta, ou usar cinto de segurança nos automóveis.

O que há de diferente, então, com a vacina contra a COVID-19? Parte da resposta reside na politização da vacinação contra a doença, parte nas campanhas de desinformação a seu respeito – claramente vinculadas ao oportunismo com que o assunto tem sido explorado na arena política. A exaustão decorrente dos custos pessoais, econômicos e mentais da pandemia também contribui para que as pessoas cedam espaço à desinformação. Contudo, há também o aspecto de que os pais estão familiarizados com vacinas como as do sarampo, da poliomielite, da rubeóla etc., enquanto as vacinas contra a COVID-19 foram produzidas há aproximadamente um ano apenas. Este aspecto se soma à extensão em que muitos pais se encontram submersos numa onda de desinformação e mesmo de campanha ativa visando produzir desconfiança quanto a estas vacinas. Eles escutam e leem pessoas dizendo que as vacinas foram desenvolvidas apressadamente, sem ter na devida conta que as etapas de desenvolvimento e verificação da efetividade e segurança das vacinas aprovadas foram devidamente seguidas. A maioria das pessoas tem dificuldade de entender o processo de desenvolvimento e investigação de vacinas, o que é aproveitado para produzir mensagens negacionistas. Há, em suma, um sério problema de alfabetização em saúde alimentando as suspeitas em relação às vacinas contra a COVID-19. É um desafio a ser enfrentado pelos professores de ciências – e também de outras disciplinas escolares – e pelos pesquisadores que se dedicam a estudar a educação científica.

A infodemia tem sido tão importante quanto a pandemia nesses dois anos em que convivemos com a COVID-19. Entende-se por “infodemia” uma abundância excessiva de informação, seja acurada ou não, que torna mais difícil que as pessoas encontrem fontes confiáveis e orientação consistente.  Nos tempos atuais, em que mídias e redes sociais são usadas pelas pessoas em enorme escala, sendo muito aproveitadas para disseminar desinformação, a infodemia se tornou um problema muito grave. Este não é, contudo, um problema novo, que surgiu com a COVID-19. No próprio campo da saúde pública, esse fenômeno já foi observado. Por exemplo, durante a epidemia de Ebola na República Democrática do Congo em 2019, informações equivocadas, divulgadas em mídias sociais, estiveram associadas a violência, perda de confiança em agentes públicos, perturbações sociais e ataques a trabalhadores da saúde. Em vários países, a capacidade de trabalhadores da saúde de tratar pacientes e comunicar-se com as pessoas sobre o manejo de epidemias e medidas de controle necessárias foi prejudicada por teorias conspiratórias, como a de que eles estariam deliberadamente espalhando vírus.

De qualquer modo, tem sido assombrosa a quantidade de rumores, má informação e teorias da conspiração espalhadas pelos mais diversos meios na atual pandemia. Em uma análise de plataformas online, Islam e colaboradores identificaram 2.311 relatos de rumores, estigmatização e teorias da conspiração relacionadas à COVID-19, circulando em 87 países e 25 línguas, apenas entre 31 de dezembro de 2019 e 5 de abril de 2020. Entre esses relatos, 82% eram falsos, 9%, corretos, e 8% não eram exatamente falsos, mas levavam a compreensões equivocadas.

Na infodemia que acompanha a COVID-19, encontramos afirmações que são ultrajantemente falsas sendo disseminadas, as quais desafiam nossa capacidade de entender como alguém em sã consciência poderia ser capaz de acreditar nelas. Por exemplo, de que gargarejar água salgada morna, ingerir prata coloidal ou aquecer as passagens nasais seriam tratamentos eficazes da doença. De que o SARS-CoV-2 poderia ser transmitido através de telefones celulares. De que não há por que se preocupar com a doença, dado que seria apenas a gripe comum que teria sido renomeada como “coronavírus”. Que beber água sanitária ou álcool, beber chá com urina ou esterco de vaca ou urina de camelo com cal poderia matar o vírus. Que borrifar cloro por todo o corpo poderia prevenir a infecção pelo coronavírus. Que cocaína poderia curar a doença. Que seria possível autodiagnosticar a COVID-19 prendendo a respiração por mais de 10 segundos, entre muitos outros boatos registrados por Islam e colaboradores. Diante dos absurdos, podemos até rir. Contudo, esses boatos não são inofensivos. De modo algum! Apenas para dar um exemplo, o rumor de que o consumo de álcool altamente concentrado poderia desinfetar o corpo e matar o coronavírus causou a morte de aproximadamente 800 pessoas, enquanto 5.876 pessoas foram hospitalizadas e 60 ficaram inteiramente cegas após beber metanol.

Há, contudo, confusão e desinformação sobre a COVID-19 que não têm essa natureza bizarra, mas mostram as dificuldades de as pessoas compreenderem diferentes aspectos da doença, bem como de sua prevenção e de seu tratamento. Muito da hesitação em relação à vacinação se deve mais a estas dificuldades do que à influência dos movimentos anti-vacina, barulhentos como eles sejam. Não que devamos ignorar esses movimentos, que têm crescido e atuado com força política, contribuindo para diminuir a confiança em fontes oficiais no campo da saúde, especialmente entre pessoas politicamente conservadoras. Mas é preciso distinguir entre negacionistas e pessoas, inclusive pais, que mostram hesitação frente às vacinas, mas não são negacionistas. É preciso fazer isso para dialogar e disponibilizar informações que possam esclarecer diferentes aspectos que lhes trazem dúvidas. Enquanto espalhar desinformação sobre vacinas e outros assuntos é algo fácil de se fazer no atual mundo dominado pelas mídias sociais, combater a desinformação é um grande desafio, exigindo que frequentemente conversemos com cada pessoa, exercitemos a escuta ativa, tenhamos atenção com as preocupações pessoais e respondamos às perguntas de modo informado e consciencioso.

A tecnologia de produção de vacinas usando RNA mensageiro oferece um exemplo do tipo de dúvidas que as pessoas têm sem que sejam negacionistas ou algo semelhante. Muitas pessoas acreditam que esta seria uma nova tecnologia desenvolvida durante os anos da pandemia. Assim, soma-se à resistência das pessoas face a estas vacinas a usual hesitação diante de novas tecnologias. Contudo, esta é uma tecnologia que existe há quase duas décadas, sendo importante conversar com as pessoas a seu respeito, dando acesso a informações confiáveis a seu respeito.

A distinção entre negacionistas, antivaxxers e pessoas que apenas estão naturalmente hesitando diante da decisão de vacinar filhos e filhas é realmente importante. Considere-se, por exemplo, que muitos pais que mostram preocupação em vacinar suas crianças já estão eles próprios vacinados contra a COVID-19. Em levantamento feito nos Estados Unidos, país que tem grandes contingentes de pessoas que têm evitado a vacinação, 39% dos pais já vacinados disseram que esperarão mais informações de que as vacinas estão realmente funcionando com segurança nas crianças para então vacinar filhos e filhas. Além disso, 13% dos pais já vacinados afirmaram que não vacinarão as crianças com menos de 11 anos.

Uma das preocupações frequentes dos pais é a de que as vacinas poderiam ter sérios efeitos colaterais ou consequências a longo prazo para suas crianças, incluindo temores quanto à futura fertilidade de de filhos e filhas. No entanto, resultados de testes clínicos mostraram a segurança do uso em crianças pequenas de vacinas contra a COVID-19 que estão sendo aprovadas ao redor do mundo. Por exemplo, um estudo publicado recentemente não encontrou quaisquer efeitos adversos sérios da aplicação da vacina BNT162b2 da Pfizer e BioNTech em 1517 crianças de 5 a 11 anos de idade que completaram a vacinação. A conclusão desse teste clínico foi que as vacinas são seguras e efetivas nessa faixa etária. À medida que os países vão vacinando cada vez mais adolescentes e crianças contra a doença, temos quantidades crescentes de dados atestando sua segurança. Já faz um ano que vacinas têm sido administradas a milhões de pessoas e efeitos colaterais sérios, como, por exemplo, trombose, têm sido muito raros. Não foi encontrada qualquer evidência vinculando vacinação contra COVID-19 a infertilidade. De modo geral, não foram observados quaisquer efeitos adversos a longo termo. Isso não espanta. Dados históricos relativos a diversas vacinas mostram que os efeitos adversos ocorrem principalmente dentro de seis semanas após a vacinação. Consequências a longo prazo da vacinação são, assim, improváveis.

Nos Estados Unidos, por exemplo, até dezembro desse ano 15,6 milhões de adolescentes de 12 a 17 anos haviam recebido pelo menos uma dose de vacina e os efeitos colaterais observados foram, em sua vasta maioria, de natureza suave: dor no local da vacina por um ou dois dias, e dor de cabeça e fadiga que também se resolvem dentro de dias. Sintomas semelhantes aos de um resfriado, como febre e náusea, também ocorrem às vezes, mas resolvem-se de maneira igualmente rápida. Foi observado um risco ligeiramente mais elevado de miocardite – inflamação do músculo cardíaco – em adolescentes que receberam a vacina BNT162b2. Contudo, devemos lembrar que não há medicamento sem efeito colateral. O que importa é a relação entre risco e benefício. De um lado, a chance de desenvolver miocardite em decorrência da vacina é bastante baixa: é uma condição rara entre os vacinados. É seguro dizer, então, como fez o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, que os benefícios das vacinas contra a COVID-19 baseadas em RNAs mensageiros superam os riscos, incluindo o risco de miocardite pós-vacinação, para todas as faixas etárias elegíveis para recebê-las.

Em suma, as vacinas contra COVID-19 têm se mostrado seguras. Podemos dizer sem medo de estarmos errados que a COVID-19 hoje é, em grande medida, uma doença que pode ser prevenida através de vacinação. Contudo, a emergência da variante Omicron, com implicações para a proteção pelas vacinas e a transmissão e severidade da doença ainda largamente desconhecidas, mostra a necessidade de avançar mais com a vacinação, de modo a aumentar a equidade do acesso global a esse recurso fundamental para controlar a pandemia. Não é suficiente que um país cuide da vacinação de sua população. O esforço deve ser coordenado e global, sob pena de a COVID-19 não ser controlada e continuar ceifando milhares de vidas em todo o mundo. O fato de que fechar fronteiras foi a resposta de países desenvolvidos à capacidade da África do Sul de detectar uma variante preocupante do SARS-CoV-2 indica o quanto estamos longe de tal resposta global justa e equitativa.

Apesar dos benefícios da vacinação contra a COVID-19, a hesitação permanece alta em muitos países, e em relação à vacinação de crianças tende a ser multiplicada. Diante disso, é importante que os pais busquem fontes seguras de informação e, ao mesmo tempo, vacinem-se contra a infodemia, os boatos, as teorias da conspiração e o negacionismo.

Para adicionar mais uma boa razão para isso, vale a pena finalizarmos com algumas considerações sobre a síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica associada à COVID-19. Esta é uma condição em que diferentes partes do corpo se inflamam, incluindo o coração, os pulmões, os rins, o cérebro, a pele, os olhos ou órgãos gastrointestinais. Suas causas ainda não são conhecidas, mas sabe-se que muitas crianças acometidas pelo SARS-CoV-2 ou mesmo que tiveram contato com pessoas com COVID-19 têm apresentado essa síndrome. Esta é uma condição que pode tornar-se muito grave e inclusive ser fatal, embora a maioria das crianças diagnosticadas com essa síndrome se recupere com os cuidados médicos devidos.

Vacinar nossas crianças é importante, também, para evitar que possam ser acometidas por essa síndrome. Um estudo recente mostrou que a aplicação de vacinas contra a COVID-19 baseadas em RNA mensageiro está associada a uma menor incidência da síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica em adolescentes. O fato de que os resultados obtidos em testes clínicos com as vacinas contra COVID-19 em adolescentes têm sido replicados em crianças entre 5 e 11 anos de idade sugere que a vacinação provavelmente será também efetiva para a prevenção dessa síndrome entre estas últimas. Claro, teremos de esperar estudos realizados diretamente com crianças nessa faixa etária para consolidar essa conclusão.

As evidências disponíveis mostram que vacinar nossas crianças contra a COVID-19 é uma medida importante para sua segurança, especialmente agora que o retorno às aulas se aproxima. Mais do que informarmo-nos, contudo, ao que parece teremos, como pais, que lutar para que elas tenham acesso a vacinas que podem preservar sua saúde e mesmo suas vidas.

Charbel N. El-Hani

(Instituto de Biologia/UFBA)

PARA SABER MAIS

Cohn, Amanda C., Mahon, Barbara E. & Walensky, Rochelle P. (2021). One Year of COVID-19 Vaccines: A Shot of Hope, a Dose of Reality. JAMA, no prelo.

Levy, Michael et al. (2021). Multisystem Inflammatory Syndrome in Children by COVID-19 Vaccination Status of Adolescents in France. JAMA, no prelo.

Suran, Melissa. (2021). Why Parents Still Hesitate to Vaccinate Their Children Against COVID-19. JAMA, no prelo.

Por que algumas pessoas são mais suscetíveis a casos graves de COVID-19?

Semana passada um avanço importante ocorreu em nosso entendimento de por que algumas pessoas são mais suscetíveis a apresentar quadros graves de COVID-19: autoanticorpos contra diferentes formas de Interferon são uma das explicações.

Desde o início da pandemia da COVID-19, o vírus associado à doença, SARS-CoV-2, infectou pelo menos 211.373.303 pessoas, resultando em 4.424.341 mortes, conforme dados disponibilizados pela OMS em 20/08/2021. Considerando-se subnotificações de casos e mortes pela doença, pode-se estimar que ela causou de 7 a 9 milhões de mortes em todo o mundo. O Brasil é um dos epicentros da doença, registrando até o momento, conforme dados da OMS, 20.556.487 casos confirmados desde o começo da pandemia e 574.209 mortes. Isso significa que cerca de 13% das mortes por COVID-19 aconteceram no país, o que é muito significativo, como podemos perceber ao recordar que 2,8% da população mundial vive no Brasil. Aproximadamente uma em cada 8 pessoas que morreram dessa doença vivia no país. São números desoladores, que devem mobilizar-nos cada vez mais para compreender a doença e tomar as medidas necessárias para evitar contraí-la e disseminá-la.

Um dos aspectos mais importantes é entender por que algumas pessoas exibem maior susceptibilidade a apresentar quadros graves da doença. Há, afinal, uma enorme variabilidade nos quadros clínicos durante a infecção aguda pelo SARS-CoV-2 – Isso sem falar na variabilidade dos quadros de longo termo em pessoas que contraíram a doença, da qual não trataremos aqui. Enquanto 90% das pessoas exibem infecção silenciosa (assintomática) ou suave (paucissintomática), sem necessitar de hospitalização, 10% dos casos requerem admissão no hospital, com pneumonia, e 2% sofrem falência respiratória.

Aos poucos, um quadro mais claro sobre as razões para essa diferença entre quadros suaves e graves vai se formando. Não faz uma semana que um avanço importante foi relatado por Paul Bastard e colaboradores no periódico Science Immunology. Desde os primeiros dias da pandemia, já se sabe que a idade é um dos principais fatores epidemiológicos de risco de hospitalização ou morte por pneumonia causada por COVID-19. O risco desses desfechos da doença dobra a cada cinco anos de idade. Sabe-se também que as frequências de doença crítica e morte são maiores em homens do que em mulheres.

Anteriormente, já havia sido mostrado que erros inatos relacionados à indução e amplificação de Interferons do tipo I poderiam estar associados a pneumonia grave decorrente de COVID-19 em um pequeno conjunto de pacientes. Os Interferons do tipo I constituem um grande grupo de proteínas que atuam na regulação da atividade do sistema imune. Esse achado sugeria, então, que a ação regulatória dessas proteínas é importante para a proteção contra infecção respiratória por SARS-CoV-2. Além disso, estudos anteriores já indicavam que autoanticorpos, ou seja, anticorpos produzidos pelo sistema imune que atacam proteínas do próprio indivíduo, poderiam ter papel relevante no quadro clínico da doença. Em estudo anterior do mesmo grupo de pesquisadores, autoanticorpos capazes de neutralizar dois tipos de Interferon (IFN) – IFN-a2 e/ou IFN-ω – foram detectados no sangue de pelo 10% dos pacientes exibindo pneumonia grave por COVID-19 numa coorte internacional, enquanto não foram encontrados em qualquer um dos pacientes assintomáticos ou com infecção suave. Quando se afirma que um anticorpo neutraliza uma outra substância, o que se está dizendo é que ele inativa (neutraliza) seu efeito sobre o funcionamento de um organismo. Nesse mesmo estudo, foi observada uma grande consistência entre a presença de autoanticorpos e a idade e o sexo como fatores de risco: autoanticorpos contra IFN-a2 e/ou IFN-ω foram encontrados principalmente em homens (95%) e pessoas mais idosas (acima de 65 anos). Os mesmos achados foram replicados em estudos independentes realizados em Amsterdam, Lyon, Madrid, New Haven, San Francisco, bem como em amostras de um banco de plasma de pacientes de COVID-19, indicando claramente um padrão que merecia investigação ulterior, prometendo maior entendimento sobre a variabilidade dos quadros clínicos da doença.

Uma dúvida razoável que se poderia levantar diz respeito à possibilidade de que esses autoanticorpos contra diferentes tipos de Interferon sejam uma consequência da COVID-19 e não uma causa associada à gravidade do quadro clínico. As evidências disponíveis indicavam, contudo, que este não era o caso: autoanticorpos contra Interferons do tipo I haviam sido encontrados em cerca de 0,3% de uma amostra de 1.227 indivíduos da população em geral obtida antes da pandemia, indicando que os autoanticorpos são anteriores à infecção por COVID-19, tendo um possível papel causal na COVID-19 crítica, em vez de terem sido produzidos em decorrência dela.

Diante dessas evidências, Paul Bastard e colaboradores se propuseram a testar duas hipóteses no estudo que relataram semana passada: primeiro, que autoanticorpos neutralizando concentrações de Interferons do tipo I abaixo de 10 ng/mL (nanogramas/mililitro, um grama [g] corresponde a 1.000.000.000 nanogramas) poderiam estar subjacentes a pneumonia grave decorrente de COVID-19 em mais de 10% dos casos; segundo, que a prevalência de autoanticorpos contra Interferons do tipo I na população geral, não-infectada, aumentaria com a idade e seria maior em homens do que em mulheres.

Evidências a favor da hipótese de que autoanticorpos contra Interferons do tipo I subjazem casos de COVID-19 grave

Bastard e colaboradores mostraram, em termos gerais, que autoanticorpos capazes de neutralizar concentrações de Interferons do tipo I menores do que aquelas anteriormente relatadas, mas ainda assim maiores do que as concentrações fisiológicas, são comuns na população mais idosa, com sua prevalência aumentando com a idade na população geral não-infectada por COVID-19, chegando a 4% em indivíduos com mais de 70 anos. Eles estão associados a pelo menos 20% dos casos de COVID-19 crítica em pacientes com mais de 80 anos e a cerca de 20% de todas a mortes causadas por essa doença. Pessoas com mais de 80 anos que apresentavam quadros graves de COVID-19 possuíam em seu sangue autoanticorpos capazes de neutralizar concentrações tão baixas quanto 100 pg/mL (picogramas/mililitro, um grama [g] corresponde a 1.000.000.000.000 picogramas) de IFN-α2 e/ou IFN-ω.

O estudo também mostrou que esses autoanticorpos estavam presentes em mais de 13,6% de todos os pacientes exibindo esse quadro clínico, em todas as faixas etárias, e que pelo menos 18% dos indivíduos falecidos devido à doença apresentavam, na maioria das faixas etárias, esses autoanticorpos. Considerando o Interferon beta – IFN-β -, autoanticorpos dirigidos contra essa proteína foram encontrados em cerca de 1,3% dos pacientes com doença crítica e falecidos, a maioria dos quais não exibiam autoanticorpos contra IFN-α2 e/ou IFN-ω. Entre os pacientes investigados, amostras anteriores à COVID-19 estavam disponíveis em quatro deles, tendo sido mostrado claramente que autoanticorpos contra IFN-α2 e/ou IFN-ω estavam presentes antes da infecção por SARS-CoV-2.

Foi observado que a prevalência de autoanticorpos neutralizando 10 ng/mL e 100 pg/mL de Interferons do tipo I, com exceção de IFN-β, aumenta significativamente com a idade, na população em geral: no caso da primeira concentração de IFNs, 0,17% dos indivíduos com menos de 70 anos testaram positivo para esses autoanticorpos, 1,4% após a idade de 70 anos e 4,2% entre 80 e 85 anos; para a segunda concentração, 1,1% abaixo de 70 anos, 4,4% após os 70 e 7,1% entre 80 e 85. Esse aumento observado com a idade é consistente com outros estudos acerca de vários autoanticorpos, realizados desde os anos 1960.

Este é um achado muito importante: autoanticorpos contra Interferons do tipo I, que não acarretam efeitos clínicos antes da infecção por SARS-CoV-2, oferecem uma explicação convincente do significativo aumento no risco de COVID-19 crítica entre as pessoas mais idosas. Além disso, autoanticorpos neutralizando 100 pg/mL de Interferons do tipo I em plasma diluído dez vezes, correspondendo, portanto, a uma neutralização de 1 ng/mL em condições fisiológicas, podem estar envolvidos em pelo menos 18% das mortes e mais de 20% dos casos críticos em pessoas com mais de 80 anos. Como argumentam os autores, é tentador especular que uma proporção ainda maior de casos de COVID-19 com risco de morte tenham relação com a ação desses autoanticorpos, devido à sua capacidade de neutralizar Interferons do tipo I em concentrações fisiológicas menores. Afinal, eles mostraram in vitro que concentrações dessas proteínas tão baixas quanto 100 pg/mL podem impedir a replicação de SARS-CoV-2 em células epiteliais, sendo que as concentrações detectadas em pacientes com infecção aguda por SARS-CoV-2 que não exibiram quadros graves se encontrava entre 1 e 100 pg/mL. Logo, a capacidade dos autoanticorpos de neutralizarem concentrações tão baixas provavelmente têm grande significado clínico, ainda maior do que aquele que já foi evidenciado pelo estudo.

Por fim, é muito relevante o fato de que os resultados do estudo sugerem que a neutralização de apenas um dos Interferons do tipo I (IFN-α2, IFN-ω, ou IFN-β) pode estar subjacente a quadros de COVID-19 que envolvem riscos à vida.

As consequências propostas: implicações para saúde pública e tratamento de pacientes

São muitas as consequências que Bastard e colaboradores indicam no trabalho publicado na semana passada. Reproduzimos aqui essas indicações, sem perder de vista que há muitas qualificações necessárias em relação a elas. Não é trivial, por exemplo, propor extensa testagem de pacientes e população em geral para detectar autoanticorpos contra Interferons. Se ponderarmos as relações de custo e benefício, seria melhor priorizar o uso de recursos em tal testagem ou na aquisição de vacinas. Como esses custos e benefícios se distribuem em diferentes países, em termos dos recursos disponíveis, da cobertura vacinal, da fase em que se encontra a pandemia, de variáveis demográficas? Em vista desses aspectos, não se pode tomar essas medidas como universalmente válidas. Elas podem ser mais ou menos eficazes a depender de muitas variáveis contextuais.

Dito isso, vale a pena considerar as consequências que os autores percebem em seus achados:

  • Poderia ser importante testar tanto pacientes infectados por SARS-CoV-2 quanto a população em geral para detecção e verificação da atividade neutralizadora de autoanticorpos contra Interferons do tipo I. Esses testes deveriam ser realizados para autoanticorpos contra pelo menos três Interferons: IFN-α2, IFN-ω e IFN-β. Os resultados obtidos também indicam a pertinência de dar prioridade a tais testes entre pessoas mais idosas e pacientes com condições genéticas ou autoimunes associadas com autoanticorpos contra Interferons do tipo I.
  • Pacientes exibindo autoanticorpos contra Interferons do tipo I poderiam ter prioridade de vacinação contra COVID-19.
  • Vacinas vivas atenuadas, incluindo vacina contra o vírus da febre amarela ou vacinas contra SARS-CoV-2 usando aquele vírus como plataforma ou “backbone”, não deveriam ser aplicadas a pacientes exibindo esses autoanticorpos.
  • Embora pareçam saudáveis antes da infecção por SARS-CoV-2, esses pacientes deveriam ser monitorados para outras doenças virais.
  • Indivíduos não-vacinados que possuem autoanticorpos contra Interferons do tipo I deveriam, em caso de infecção por SARS-CoV-2, ser hospitalizados, devido aos riscos de agravamento do quadro clínico. Entre os indicativos para seu tratamento que seguem dos estudos, pode-se comentar sobre a possibilidade de administração precoce de anticorpos monoclonais contra SARS-CoV-2 em tais pacientes, mesmo na ausência de sintomas de pneumonia severa, e de IFN-β na ausência tanto de pneumonia quanto de autoanticorpos contra IFN-β. Tratamento de resgate por plasmaférese seria outra opção terapêutica em pacientes que já apresentam pneumonia. É evidente que, em qualquer caso de recomendação de tratamento, seria preciso verificar a disponibilidade de estudos clínicos de qualidade apoiando sua indicação.
  • Hemoderivados, especialmente plasma, deveriam ser testados para autoanticorpos contra Interferons do tipo I e quaisquer produtos contendo esses anticorpos deveriam ser excluídos da doação.
  • Considerando que uma injeção única de IFN-β é inócua e potencialmente eficaz, terapia precoce com IFN-β poderia ser considerada para contatos de pessoas com COVID-19 ou durante a primeira semana após a infecção, especialmente em pacientes idosos, com maior risco de pneumonia crítica, exibindo autoanticorpos contra IFN-α2 e IFN-ω, mas não contra IFN-β. Novamente, nesse caso seria preciso verificar a disponibilidade de evidência favorável ao tratamento, oriunda de estudos clínicos de qualidade.
  • Será importante elucidar o mecanismo subjacente ao desenvolvimento de autoanticorpos contra Interferons do tipo I, que pode diferir entre pacientes com menos e mais de 65 anos de idade.

A presença desses autoanticorpos contra Interferons do tipo I certamente não é a única causa de casos graves de COVID-19, como mostram claramente os percentuais de pacientes com tal quadro clínico nos quais foram encontrados. Ela é, no entanto, uma peça muito importante, entre muitas outras, do quebra-cabeças da variabilidade do quadro clínico da doença, com consequências muito importantes para a saúde pública e o tratamento dos pacientes, como destacamos acima. O estudo que hoje discutimos é um belo exemplo da importância da pesquisa científica para enfrentar a situação grave que vivemos.

Charbel N. El-Hani

(Instituto de Biologia/UFBA)

PARA SABER MAIS

Bastard, Paul et al. (2021). Autoantibodies neutralizing type I IFNs are present in ~4% of uninfected individuals over 70 years old and account for ~20% of COVID-19 deaths. Science Immunology, no prelo.

A pandemia não acabou, que máscara devo usar para evitar a Covid-19?

Mais de 550 mil brasileiros já perderam suas vidas desde o início da pandemia por Covid-19. Novas cepas vêm preocupando autoridades de diversos países. Mesmo com a diminuição de casos, há grande preocupação com novas variantes no Brasil. Dessa forma, ainda é necessário o uso de máscaras de proteção para evitar contaminação pela Covid-19. Mas qual máscara devemos usar? Ainda não sabe ou tem dúvidas, fica com a gente aqui neste post que vamos falar um pouco sobre isso.

Aqui no Darwinianas já tratamos sobre vários aspectos da pandemia do novo coronavírus, SARS-Cov2. Em um post recente tratamos de uma nova possibilidade de vacina, através das vias aéreas superiores. Em outro post, tratamos sobre os movimentos anti-vacina. Caso ainda tenha dúvidas sobre a eficácia e o histórico sobre a vacinação, não deixa de ler esses textos. Felizmente, graças ao aumento do número de pessoas vacinadas, estamos observando uma redução importante no número de novos casos e de óbitos (Figura 1). Mesmo assim, a Fiocruz vem alertando sobre uma alta esperada devido ao inverno, estação do ano que historicamente registra maior incidência de doenças respiratórias. Nos EUA, depois de uma grande queda no número de novos casos e mortes relacionadas à COVID-19, infelizmente estamos observando aumento. Resumindo: ainda estamos em pandemia e todo o cuidado é pouco.


Figura 1 – Número de novos confirmados (A) e número de novos óbitos devido a Covid-19 (B) no Brasil. Fonte: Painel Rede Covida – Ciência, Informação e Solidariedade. Última Atualização: 29-07-2021 às 20:47h.Fonte de Dados: Ministério da Saúde e Secretárias Estaduaishttps://covid19br.wcota.me/.

Com as melhoras momentâneas, com a liberação de espaços públicos pelas autoridades e depois de tanto tempo de confinamento e distanciamento social, as pessoas de modo geral tendem a querer retomar as atividades sociais de modo bem intenso. Aqui em Salvador, por exemplo, podemos testemunhar praias lotadas neste final de semana, mesmo com ventos fortes e céu nublado. Desde o início da pandemia, muitas pessoas não têm usado máscaras, enquanto outras usam de modo equivocado, deixando o nariz e às vezes até a boca do lado de fora. Agora, com o aumento da vacinação e com a redução do número de casos, mais pessoas estão abandonando totalmente o uso de máscaras, o que não é uma decisão apropriada.

Outra questão diz respeito à escolha por máscaras adequadas. Muitas vezes há dúvidas sobre que tipo de máscara deve ser usada. As de pano, cirúrgicas ou de maior proteção, como a N95? Essa dúvida é genuína e há muita informação contrastante nas redes. Até pouco tempo havia falta de evidências empíricas sobre a efetividade e o risco de cada tipo de máscara como meio de evitar contaminação pelo SARS-CoV-2.

Hoje, sabemos com mais segurança que a transmissão da Covid-19 se dá majoritariamente por perdigotos e aerossóis. Sabemos também que as máscaras de proteção são importantes para prevenir que as pessoas contraiam a doença, reduzindo a inalação de partículas virais, mas também para que não a transmitam, reduzindo a sua emissão (ver abaixo em “Para Saber Mais”). Até então, na literatura científica, as evidências eram muito contrastantes sobre a efetividade do uso de máscaras na proteção contra o vírus. Por um lado, alguns estudos mostravam que a penetração viral pode ser considerável em máscaras cirúrgicas e até mesmo em máscaras de maior nível de proteção, como as PFF2 e as N95, e que, em casos de alta emissão de partículas, em espirros e tosse, aumenta a probabilidade de penetração de carga viral considerável através das máscaras. Além disso, em estudos clínicos, não se chegou a resultados conclusivos sobre a efetividade das máscaras contra a Covid-19. Por outro lado, diversas observações mostram que regiões ou instituições com alto percentual da população aderindo ao uso de máscaras têm melhor controle da doença. Em estudo recente publicado no dia 25 de junho de 2021, na revista Science, pesquisadores investigaram a efetividade das máscaras para proteção contra o vírus SARs-CoV-2, causador da Covid-19, utilizando modelos matemáticos.

Neste artigo, os autores desenvolveram um modelo quantitativo que estima a eficiência das máscaras, considerando a abundância de partículas virais no ambiente, ou seja, se o ar está muito “lotado” ou não de vírus. Os autores encontraram que a eficiência das máscaras depende profundamente da quantidade de vírus presente no ambiente (Figura 2). Por exemplo, em ambientes fechados, onde reconhecidamente há mais pessoas contaminadas, como em hospitais, as chances de contaminação são muito mais altas. Neste caso devemos procurar usar máscaras com menores taxas de penetração, como PFF2 e N95. Em ambientes abertos, com menos concentração viral, as máscaras cirúrgicas são mais efetivas, segundo o estudo.


Figura 2 – Representação esquemática de ambientes com alta (A) e baixa (B) abundância viral e eficácia das máscaras de proteção. Fonte: Imagem modificada do artigo Cheng e colaboradores (2021).

Agora você pode estar exclamando: “mas isso é obvio!”… será?! A partir dos resultados deste trabalho podemos medir um pouco melhor nosso comportamento e procurar mais proteção a depender do ambiente que estamos. Assim, podemos evitar custos excessivos com máscaras de altíssima proteção para frequentar ambientes abertos, com poucas pessoas, com distanciamento entre pessoas. Podemos também intensificar a proteção usando máscaras adequadas para ambientes fechados e com alta concentração de pessoas, o que aumenta por sua vez a probabilidade maior abundância viral.

O que era senso comum passou a ser evidência científica gerada por modelos matemáticos. O distanciamento físico entre as pessoas em ambientes abertos, associado a uso de máscaras, é ainda muito importante para barrarmos os avanços da pandemia, mesmo neste cenário atual, onde parte da população brasileira está vacinados. Não temos bola de cristal e não podemos prever o futuro, mas sabemos que cepas mais virulentas do vírus estão circulando em diversos países. Por isso, não custa muito continuarmos usando as máscaras de modo adequado.

Pedro Milet Meirelles

Laboratório de Bioinformática e Ecologia Microbiana

Instituto de Biologia da UFBA

meirelleslab.org

Para Saber mais:

Grinshpun, Sergey A., et al. “Performance of an N95 filtering facepiece particulate respirator and a surgical mask during human breathing: two pathways for particle penetration.” Journal of occupational and environmental hygiene 6.10 (2009): 593-603.

Chu, Derek K., et al. “Physical distancing, face masks, and eye protection to prevent person-to-person transmission of SARS-CoV-2 and COVID-19: a systematic review and meta-analysis.” The lancet 395.10242 (2020): 1973-1987.

Zhang, Renyi, et al. “Identifying airborne transmission as the dominant route for the spread of COVID-19.” Proceedings of the National Academy of Sciences 117.26 (2020): 14857-14863.

Brooks, John T., Jay C. Butler, and Robert R. Redfield. “Universal masking to prevent SARS-CoV-2 transmission—the time is now.” Jama 324.7 (2020): 635-637.

Tem cheiro de vacina no ar…

No momento, ao menos sete vacinas intranasais contra COVID-19 estão em testes clínicos. Elas oferecem um caminho futuro para imunização efetiva e duradoura contra a COVID-19 e um possível controle da pandemia.

A primeira vacina desenvolvida em larga escala no Ocidente é creditada ao médico inglês Edward Jenner que, no século XVIII, utilizou a secreção purulenta de doentes para prevenir o desenvolvimento da varíola em pessoas saudáveis. E a varíola foi, também, a primeira doença infecciosa a ser erradicada da população por meio da vacinação. Desde então, o uso de vacinas na prevenção de doenças contagiosas tornou-se uma prática comum na medicina, salvando a vida de centenas de milhões de pessoas, e aliviando altos custos dos sistemas de saúde dedicados ao tratamento de doentes. Mas, desde o surgimento das primeiras vacinas, surgiram também os movimentos anti-vacina e um post recente aqui do Darwinianas, discute a história dos movimentos anti-vacina no Brasil e no mundo. Sugiro fortemente a leitura do post anterior caso ainda esteja em dúvida a respeito da efetividade e segurança das vacinas já aprovadas para uso, ou confusa em meio às variadas teorias da conspiração e campanhas de desinformação.

As estatísticas são assustadoras: em menos de dois anos, o SARS-CoV-2 já matou mais de 4 milhões de pessoas em todo o mundo, sendo que mais de 500 mil mortes são creditadas ao Brasil apenas. O desenrolar da vacina vem, sem dúvida, tendo impactos positivos significativos tanto no número de novos casos quanto no número de mortes por COVID-19, principalmente em regiões com altos índices de vacinação da população. Para os não-vacinados, ou aqueles que ainda aguardam a sua vez, o uso de máscaras e o distanciamento social ainda são as medidas mais eficazes na prevenção do COVID-19, já que o vírus, altamente contagiante, é transmitido por aerossóis e gotículas emitidas pelo sistema respiratório. Assim, na esmagadora maioria dos casos, a porta de entrada do vírus é o trato respiratório superior, sendo o nariz a via de entrada mais comum. Curiosamente, das quase cem vacinas atualmente em fase de testes, apenas sete são vacinas intranasais.

A idéia de vacinas intranasais não é nada nova, e desde a década de 1960 as primeiras vacinas intranasais para o vírus da influenza foram aprovadas para uso em massa. Até hoje, muitas das vacinas contra a gripe causada pelo vírus Influenza, são administradas por via intranasal e a razão para o seu uso deve-se ao fato de que essas vacinas normalmente estimulam uma resposta imune na mucosa nasal, levando à produção local de anticorpos do tipo IgA, assim como à produção de células B e T de memória da mucosa, capazes de barrar a infecção viral desde o seu local de entrada (Figura 1). Em alguns casos, ainda, essa resposta pode se tornar sistêmica, levando à produção de anticorpos do tipo IgG, capazes de proteger outros órgãos contra o desenvolvimento de doença grave. Já vacinas intramusculares raramente estimulam imunidade de mucosa, resultando geralmente em imunidade sistêmica baseada, em larga escala, na produção de IgG e células de memória sistêmicas.

Figura 1 – Diferentes vias de vacinação e seus efeitos no sistema imunológico. Imagem modificada de Lund & Randall (2021), Science.

Por que, então, as vacinas até hoje aprovadas para a prevenção do COVID-19 são intramusculares, como as vacinas de mRNA (como, por exemplo, a Pfizer-BioNTech e a Moderna), ou as vacinas que utilizam um vetor viral atenuado (como, por exemplo, a Janssen da Johnson & Johnson e a Oxford-Astra-Zeneca)? Segundo um artigo recente, seis das sete vacinas intranasais em fase de teste (ChAdOx1-S da Universidade de Oxford; AdCOVID da Altimmune; a BBV154 da Bharat Biotech; a DelNS1-nCoV-RBD LAIV da Universidade de Hong Kong, a MV-014-212 da Meissas Vaccines; e a COVI-VAC da Codagenix) são vacinas de vírus atenuado ou de vetor viral, enquanto apenas uma, a Cubana CIBG-669 é baseada em proteína viral. Estudos ainda em revisão (pré-publicações) a respeito da eficácia das vacinas intranasais com vetores virais sugere que essas vacinas são eficazes não apenas em eliciar uma resposta imune na mucosa nasal e a produção de células de memória residentes na mucosa, mas também de estimular uma resposta sistêmica, possivelmente com a produção duradoura de anticorpos do tipo IgG. No entanto, os vetores virais mais frequentemente utilizados em vacinas intranasais são os adenovírus, e uma grande parcela da população adulta já foi exposta a esses vírus. Isso significa que, em muitos casos, uma resposta imune contra o adenovírus pode diminuir a eficácia da vacina contra o SARS-CoV-2 por meio de interferência negativa. Similarmente, interferência negativa parece acontecer nas vacinas intranasais que utilizam o vírus influenza ou o vírus respiratório sincicial atenuado.  Mas, em muitos casos, a estimulação da imunidade de mucosa parece ocorrer de forma efetiva, independente do contato prévio do indivíduo como vetor viral.

Diferentes vias de administração de vacinas, como a administração intranasal e a intramuscular (Figura 1), podem resultar na estimulação do sistema imunológico de variadas maneiras. De forma semelhante, vacinas baseadas em diferentes tecnologias, como as vacinas de DNA, vacinas de RNA e vacinas de vírus atenuados, podem elicitar diferentes respostas imunes assim como apresentar diferentes efeitos colaterais. É possível, no entanto, que o futuro da vacinação para COVID-19 seja o de uma abordagem variada, onde a imunidade sistêmica promovida pelas vacinas intramusculares, geralmente protetora contra doença pulmonar grave, seja combinada a doses de reforço com vacinas intranasais, capazes de gerar também imunidade na mucosa nasal, e potencialmente interromper a transmissão do vírus localmente. Não há, até o momento, nenhuma contra-indicação para um esquema de vacinação variado em termos de vias de administração, apesar de mais estudos ainda serem necessários para a confirmação da eficácia de uma tal abordagem. A introdução de vacinas intranasais pode ser, assim, um passo importante para o controle da pandemia de COVID-19 que ainda vivemos.

Ana Almeida

California State University East Bay

(CSUEB)

 Para saber mais:

Islam, M.S.; et al. 2021. COVID-19 vaccine rumors and conspiracy theories: The need for cognitive inoculation against misinformation to improve vaccine adherence. PLoSOne https://doi.org/10.1371/journal.pone.0251605.

Hodgson S.H.; et al. 2021. What defines an efficacious COVID-19 vaccine? A review of the challenges assessing the clinical efficacy of vaccines against SARS-CoV-2. The Lancet Infectious Diseases, 21(2): e26-e35. https://doi.org/10.1016/S1473-3099(20)30773-8.

Sallam, M. 2021. COVID-19 Vaccine Hesitancy Worldwide: A Concise Systematic Review of Vaccine Acceptance Rates. Vaccines, 9: 160. https://doi.org/10.3390/vaccines9020160.

Yingzhu, L; et al. 2021. A Comprehensive Review of the Global Efforts on COVID-19 Vaccine Development. ACS Central Science, 7 (4), 512-533. DOI: 10.1021/acscentsci.1c00120

[Fonte: Imagem modificada de Amadeus Bramsiepe/Karlsruhe Institute of Technology, https://www.computerworld.com/article/3278594/the-game-changing-potential-of-smartphones-that-can-smell.html]

Com a evolução não se brinca

Os vírus, assim como outros seres vivos, evoluem. Nesse processo, a seleção natural pode torná-los mais infecciosos, mais resistentes a drogas, ou mais capazes de burlar as vacinas. As ações que nós tomamos podem influenciar a chance de o processo evolutivo tomar esse rumo indesejável.

O material genético do coronavírus que hoje circula pelo mundo causando a COVID tem várias diferenças em relação àquele que começou a se espalhar no final de 2019. Essa transformação resulta de mutações, que são erros que ocorrem quando o material genético é copiado. Algumas das mutações que surgiram se tornaram comuns. As linhagens do coronavírus, como a P.1, que se torna cada vez mais comum no Brasil, são definidas pela combinação de mutações que acumularam. A mudança na composição genética de uma espécie ao longo do tempo é uma forma de definir a evolução. Assim como outros seres vivos, o vírus evolui.

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Mais além do dilema entre aprender e fazer no tratamento da COVID-19, fica a necessidade de aprender fazendo

Quando enfrentamos uma nova doença e/ou buscamos medicamentos e vacinas, ensaios clínicos são estritamente necessários, como parte do processo meticuloso, cuidadoso de que dependemos para saber se as pílulas que tomamos ou as injeções que nos aplicam são eficazes e seguras, já discutido aqui em Darwinianas. Efetividade e segurança devem ser bem evidenciadas, porque medicamentos, como qualquer outra substância, podem fazer por vezes mais mal do que bem. Quando se prescrevem medicamentos que não foram ainda suficientemente testados, sob os quais ainda há dúvidas sobre sua efetividade ou segurança (pior ainda: quando há evidência de carecem desses atributos), dois princípios fundamentais da prática médica estão sendo negligenciados: In dubio abstine (quando em dúvida, abstenha de tratar) e Primum non nocere (antes de qualquer coisa, não cause mal).

A cloroquina e seus derivativos, como a hidroxicloroquina, fornecem bom exemplo de por que ensaios clínicos são um requisito inquestionável do uso seguro de medicamentos. A margem de segurança desses medicamentos é relativamente estreita, especialmente por causa de seus efeitos cardiovasculares adversos, ou seja, a diferença entre uma dose com poder terapêutico e uma dose tóxica é relativamente pequena. Overdose de hidroxicloroquina é, além disso, de difícil tratamento, e não há antídoto conhecido. A hype em torno dessa droga levou a prejuízos a pessoas que se automedicaram com ela durante a atual pandemia, como mostram relatos de overdoses, hospitalização e mortes em contextos tão distintos quanto os da Nigéria e dos Estados Unidos. É uma trágica ironia que apenas quatro dias antes de um homem morrer por overdose de cloroquina no Arizona, o atual presidente norte-americano tenha dito, a respeito da hidroxicloroquina: “a coisa boa é que ela tem sido usada por um longo tempo, de maneira que, se as coisas não saírem como planejado, sabemos que ninguém será morto por ela”. Esses fatos mostram claramente a necessidade de maior prudência no uso dessa droga, tornando bastante evidente que, mesmo que ela venha a mostrar efeito no tratamento de determinada doença, quão importante é estabelecer, através de ensaios clínicos bem conduzidos, qual dosagem, extensão do tratamento, forma de administração utilizar.

Ensaios clínicos são fundamentais, pois, para que se torne possível uma prática médica responsável. Além disso, como os recursos necessários para realizar um ensaio clínico de boa qualidade são muitos, em termos da equipe necessária, das horas de trabalho, da logística e dos insumos materiais, ensaios pré-clínicos também são importantes, porque se evita que se dispenda muitos recursos na investigação de drogas com pouca chance de terem sucesso ou de serem seguros. Os ensaios pré-clínicos incluem estudos in vitro (em placas de cultura, tubos de ensaio etc.) e estudos em animais (os quais implicam uma série de aspectos éticos dos quais não poderei tratar nesse texto). No que diz respeito aos ensaios clínicos, uma vez que um medicamento tenha mostrado eficácia em doses seguras em ensaios pré-clínicos, a melhor opção é realizar ensaios clínicos controlados e randomizados (RCTs, randomized controlled trials), caso isso seja possível. Esses são ensaios nos quais terapias são comparadas com controles, como tratamento padrão ou placebo, e pacientes são alocados aleatoriamente nos grupos que receberão diferentes tratamentos.

Experiências anteriores em epidemias, por exemplo, as de Ebola, produziram um elevado nível de concordância na comunidade acadêmica de que pesquisa sólida, convincente, pode e deve ser feita mesmo durante emergências de saúde pública, bem como que RCTs constituem a abordagem mais ética e confiável para identificar-se rapidamente tratamentos efetivos e propiciar que a maioria das pessoas seja beneficiada, e não prejudicada, conforme requerido pelo princípio Primum non nocere.

A COVID-19 não estabelece qualquer exceção em relação aos princípios e ideias expressas acima. Não há dúvida de que qualquer pessoa racional deve compreender as dificuldades de fazer pesquisa sob enorme pressão para identificar rapidamente tratamentos efetivos para a doença e nas condições desafiadoras colocadas por instituições de saúde, como hospitais, superlotados, nos quais trabalhadores da saúde lutam contra uma doença nova e mortal, que afeta números muito grandes de pacientes e coloca a eles próprios em risco. No entanto, como escrevem Alexander e colaboradores, “essas circunstâncias infelizes e sem precedentes não transformam dados frágeis em resultados convincentes”. A despeito das dificuldades da crise atual, é importante dirigir os esforços na direção de RCTs bem planejados e éticos, prospectivos e não retrospectivos (ou seja, atuando no tratamento de pacientes, e não revisando tratamentos já feitos), e de larga escala, envolvendo múltiplos centros e grandes quantidades de pacientes em diversas regiões do mundo. Para além disso, diretrizes devem ser usadas no planejamento dos estudos clínicos, orientando o modo como serão recrutados pacientes, como será feita a randomização e o uso de duplo-cego, quais resultados do tratamento serão mensurados e como etc. Somente com tal padronização, a combinação do conhecimento obtidos em diferentes ensaios clínicos poderá ser feita com poder estatístico suficiente para estabelecer de modo convincente a efetividade e segurança de determinada profilaxia ou tratamento, ou para comparar a efetivamente de diferentes abordagens terapêuticas. Daí a importância de a OMS ter buscado ordenar a busca por tratamentos para a COVID-19, publicando orientações gerais para a condução de RCTs. A realização de estudos confiáveis se torna sine qua non quando vemos a evidência ser soterrada sob a veemência e a desinformação em virtude do forte movimento de algumas lideranças políticas na defesa de medicamentos para cuja efetividade e segurança não há evidência suficiente.

É preocupante ver na literatura sobre tratamento da COVID-19, a larga multiplicação de estudos observacionais, nos quais se investiga o efeito de uma droga ou de outra intervenção, sem manipulação ou intervenção. Apesar de fornecerem informação relevante e complementar àquela produzida por RCTs, esses estudos não fornecem evidência suficientemente confiável para a tomada de decisões sobre o tratamento de pacientes. A questão não é – que se entenda bem – que estudos observacionais não deveriam ser feitos, mas que eles têm ganhado precedência inclusive em situações nas quais isso não é suficientemente compreensível. Por exemplo, há estudos observacionais sobre tratamentos para COVID-19 que recrutaram grandes números de pacientes e, ainda assim, não utilizaram grupos controle, nem mesmo comparando o tratamento experimental com tratamento padrão (standard of care), uma vez que há questões éticas envolvidas no uso de placebo numa circunstância como a presente. Ademais, parece importante evitar a proliferação de estudos clínicos pequenos, sem poder estatístico suficiente para gerar qualquer conclusão sólida, ou estudos que apenas comparam duas intervenções terapêuticas distintas, sem utilizar controles. Ambas as situações têm ocorrido com frequência ao longo da pandemia.

Estudos observacionais são úteis, mas tendem a superestimar a contribuição de um tratamento. No caso da COVID-19, é importante não perder de vista que a maioria dos pacientes apresentam doença leve a moderada e, nesses casos, o tratamento padrão tenderá a aliviar os sintomas respiratórios e sinais vitais. Ademais, remissão espontânea da COVID-19 pode chegar a 90% dos casos ou mais. Como se poderia, então, alcançar conclusões sólidas acerca das contribuições de possíveis tratamentos numa doença com tais níveis de remissão espontânea sem o uso de amostras suficientemente grandes e grupos controle? A resposta é, simplesmente, que não se pode, com tal desenho experimental, chegar a qualquer conclusão convincente acerca da efetividade e segurança de uma dada intervenção terapêutica. Em tal desenho experimental, é um erro óbvio atribuir uma eventual cura aos efeitos do medicamento, ou resultados negativos à doença.

Da necessidade de “aprender fazendo” na crise da COVID-19

Contudo, ao pensar nas terapias para a COVID-19, é importante considerar como a pandemia abriga um conflito entre a pesquisa acadêmica nas ciências biomédicas e a prática da medicina clínica. Nesta última, médicos fazem uso não apenas de medicina baseada em evidência, mas também de tratamentos que por vezes não são baseados na evidência clínica mais rigorosa, mas em plausibilidade biológica, dados pré-clínicos ou evidência clínica limitada. Não é difícil apreciar como a opção por estes últimos tratamentos é incrementada numa situação como a da atual pandemia, para a qual não há ainda tratamento aprovado e poucos medicamentos gozam de evidência favorável mais sólida. Na altura em que escrevo esse texto, há somente dois medicamentos apoiados por evidências mais convincentes, para tratamento de doentes graves de COVID-19: dexametasona e remdesivir. Nos casos leves a moderados, por sua vez, não há ainda qualquer terapia bem apoiada. No entanto, é exatamente nestes últimos casos que a prescrição de drogas ainda carentes de evidência suficiente quanto à sua efetividade se torna menos recomendável, uma vez que os benefícios terapêuticos tendem a ser proporcionais à severidade do caso, enquanto os riscos de um dado tratamento tendem a ser relativamente mais constantes. Assim, a relação risco-benefício de um tratamento tende a ser menos favorável em casos mais leves do que em casos mais severos.

Reconhecer os dilemas envolvendo a pesquisa biomédica e a prática clínica em circunstâncias como as que hoje vivenciamos é muito diferente, pois, de uma defesa imprudente de terapias como se fossem balas mágicas, pílulas salvadoras, ignorando os riscos envolvidos no uso de tratamentos cuja efetividade e segurança não estão ainda suficientemente estabelecidas. Uma solução para esses dilemas não segue de uma negligência quanto à necessidade de evidência de alta qualidade para a recomendação mais confiável e eventual aprovação de abordagens profiláticas e terapêuticas da COVID-19. Para os clínicos, não é pequeno o desafio de fazer julgamentos e tomar decisões na ausência de evidência suficiente, malgrado o suporte dado por seu próprio conhecimento e experiência. Numa situação como esta, torna-se ainda mais fundamental considerar de maneira crítica, ponderada a evidência disponível, como base para avaliar os riscos e benefícios das opções feitas no tratamento de cada paciente. Tanto pesquisadores quanto trabalhadores da saúde devem ter a responsabilidade de se manter verdadeiramente informados, de pensar com clareza e de se comunicar com inteligência, evitando ser influenciados por, quanto mais comprometer-se com fake news e desinformação, tão frequentes na infodemia que anda lado a lado com a pandemia, menos ainda ser fontes de tal desinformação.

Recentemente Derek C. Angus publicou um artigo de opinião que remete ao dilema entre medicina clínica e pesquisa biomédica em contextos como o da crise atual. Ele trata esses dilemas em termos de um trade-off entre prospecção (exploration) e explotação (exploitation). A prospecção diz respeito a ações realizadas para gerar novos conhecimentos e diminuir a incerteza através de investigação, a uma opção por “dever aprender” (“must learn” option) a respeito de uma situação. Por sua vez, a explotação corresponde à ação com base no conhecimento, nos hábitos, nas crenças correntes, a despeito da incerteza, a uma opção por “fazer agora” (“just do it” option) o que parece necessário para enfrentar a situação. O conflito entre medicina clínica e pesquisa biomédica discutido acima resulta, em última análise, da interpretação dicotômica dessas duas opções: ou fazemos algo (tratamos o paciente) ou aprendemos algo (testamos o medicamento). Torna-se um desafio chave para os avanços na terapia da COVID-19, então, superar essa dicotomia, reconhecendo – como argumenta Angus – que trade-offs entre prospecção e explotação são, em geral, melhor resolvidos por uma estratégia que permite fazer e aprender ao mesmo tempo. E este não é o caso somente da medicina clínica, mas uma dificuldade que encontraremos em outros campos, a exemplo do trade-off entre aprender via pesquisa ecológica e atuar na tomada de decisão ambiental.

Se nos deslocarmos do conflito, da polarização entre fazer e aprender para uma integração entre ação e aprendizagem, poderemos ser capazes de maximizar tanto resultado de curto termo, por exemplo, aumentando as chances de recuperação de pacientes em estados mais graves, quanto de longo termo, avançando na descoberta, no teste rigoroso e na disseminação de novos tratamentos. Para além dos tempos excessivamente polarizados que vivemos, ou das atitudes negacionistas face à ciência ou mesmo ao conhecimento em termos mais gerais, a construção de uma abordagem integrada para fazer e simultaneamente aprender também é restringida pela organização institucional da pesquisa biomédica e dos cuidados à saúde. Cada uma dessas tarefas é feita separadamente, com a prática clínica (o fazer) e a pesquisa clínica (o aprender) ocorrendo mais frequentemente em instituições distintas, envolvendo diferentes agentes e procedimentos, e sendo também financiadas separadamente. Daí resulta que diferentes profissionais são prioritariamente responsáveis por cada um dos polos do trade-off, cada qual confiando em sua própria base de conhecimentos profissionais, critérios, métodos, práticas, e comprometidos com seus próprios valores e interesses. Esta é uma situação que alimenta o conflito entre prática clínica e pesquisa biomédica, potencializando o trade-off entre aprender e fazer. E não são baixos seus custos, na medida em que, de um lado, a aquisição e disseminação de conhecimento crucialmente importante se tornam mais lentas, e, de outro, pacientes são submetidos a tratamentos que podem exibir relações risco-benefício inaceitáveis na exata medida em que a pressão para “fazer algo” é amplificada.

Em tal situação, otimizar a relação entre fazer e aprender e, assim, negociar com sucesso o conflito entre medicina clínica e pesquisa biomédica se torna urgente. Para médicos clínicos e pesquisadores biomédicos, coloca-se a necessidade de integrar seus trabalhos e adaptar suas estratégias e abordagens uns aos outros. Três desafios para essa integração são identificados por Angus.

Primeiro, se de um lado a alocação aleatória de pacientes em diferentes grupos num ensaio clínico (randomização) é fundamental para estabelecer vínculos causais bem apoiados entre tratamentos e efeitos, essa randomização pode ser muito desconfortável na prática médica. É  verdade que um médico que simplesmente deseja prescrever uma droga a um paciente, em vez de aceitar uma alocação aleatória, pode não estar servindo ao melhor interesse de seu paciente, uma vez que a droga pode, ao fim e ao cabo, exibir uma relação ruim entre risco e benefício. Contudo, não se deve ignorar o profundo desconforto que pode ser vivenciado por médicos clínicos diante da alocação aleatória de pacientes, dada a angústia de lidar com uma pandemia como a que estamos atravessando. Este é um aspecto central dos dilemas mencionados acima: embora uma médica possa eventualmente reconhecer que a evidência a favor de determinado tratamento é incerta, ela ainda assim pode sentir-se compelida a prescrevê-lo, caso acredite que as chances de benefícios são maiores do que os riscos de prejuízos. Enquanto as consequências para o paciente por quem a médica é e se sente responsável podem ser imediatas e notáveis, os benefícios da aprendizagem a ser alcançada num ensaio clínico e as consequências do atraso na geração de conhecimentos necessários caso não sejam recrutados pacientes podem parecer, para ela, abstratas e remotas, difíceis de serem avaliadas e para além de suas responsabilidades.

É evidente, contudo, que há problemas com a inferência feita, uma vez que os resultados podem ser imediatos e notáveis também de uma maneira maléfica ao paciente, sendo a inferência colocada em xeque diante dos princípios In dubio abstine and Primum non nocere. Além disso, se o medicamento não traz prejuízo mas também não traz benefício, podemos dessa maneira perder a oportunidade de aprender, mantendo-se a prescrição de um medicamento sem efetividade, enquanto outras drogas não são consideradas ou testadas. A solução, portanto, não é confiar simplesmente em inferências que, mesmo mal apoiadas, tragam alívio à pressão cotidiana sofrida pelos trabalhadores da saúde, mas, antes, incorporar não somente sua angústia e urgência, mas também – e especialmente – seus conhecimentos e suas práticas no planejamento e na execução de ensaios clínicos que busquem um compromisso entre aprender e fazer. Trabalho colaborativo e integrado entre médicos clínicos e pesquisadores biomédicos pode propiciar uma plataforma para acomodar suas diferentes demandas, conhecimentos e práticas.

Um segundo desafio diz respeito ao fato de que, quando um ensaio clínico é implementado, as atividades necessárias para sua execução incluem muitos passos que interferem nos procedimentos clínicos e desviam a atenção das médicas de outras ações clínicas importantes. Portanto, um ensaio planejado de modo a integrar-se mais facilmente à prática clínica será mais atraente para médicas que desejem colaborar com a pesquisa clínica, favorecendo a integração de fazer e aprender.

Um terceiro desafio reside na dificuldade de estabelecer um plano unificado, devido ao caos que se instalou na realização de ensaios clínicos durante a pandemia. Há tantos testes de possíveis medicamentos para tratar a COVID-19 em andamento que é fácil concordar com os muitos apelos a uma maior coordenação entre os estudos. Médicos e hospitais, que já estão sobrecarregados pela própria pandemia, sofrem pressão adicional devido às muitas solicitações para participação em ensaios clínicos. O resultado são ensaios clínicos competindo uns com os outros por financiamento e recrutamento de pacientes, entre outros aspectos. Há, além disso, um conflito em andamento entre ideias rivais sobre quais terapias deveriam ser testadas e quais abordagens seriam mais apropriadas para a realização dos ensaios, às vezes com a discussão chegando a uma defesa de flexibilização da metodologia que pode mostrar-se excessiva, trazendo riscos de que sejam produzidas evidências sem utilidade ou que conduzam a equívocos. Em circunstâncias tão fragmentadas, é improvável que se consiga a integração entre pesquisa e prática clínicas que tornaria possível aprender e fazer ao mesmo tempo.

Não obstante esses desafios, podemos testemunhar no cenário da pesquisa sobre a COVID-19 avanços na direção de uma otimização da relação entre aprender e fazer. À guisa de exemplo, o ensaio clínico SOLIDARITY, coordenado pela OMS, caminha na direção de uma maior integração entre aprender e fazer. Este é um grande ensaio clínico multicêntrico, randomizado, utilizando uma abordagem pragmática e adaptativa, que está sendo realizado em 13 países (incluindo o Brasil), envolvendo milhares de pacientes. Um ensaio “pragmático” busca mimetizar, ao máximo possível, as condições reais das populações alvo e dos contextos clínicos, sendo planejado para dar conta das necessidades de tomadores de decisão sobre a saúde (por exemplo, gestores públicos) e o tratamento clínico (por exemplo, médicos). Num ensaio “adaptativo”, pode-se interromper o teste de drogas que mostram, ao longo do ensaio, falta de efetividade ou trazem preocupações importantes quanto à sua segurança, assim como pode-se adicionar novos medicamentos que pareçam promissores. Inicialmente, foi proposto o teste de quatro tratamentos potenciais no ensaio SOLIDARITY, todos em comparação com tratamento padrão (no grupo controle): remdesivir; lopinavir e ritonavir + interferon-β; apenas lopinavir e ritonavir; e cloroquina/hidroxicloroquina. Em virtude de seu desenho adaptativo, os dois últimos tratamentos foram descontinuados nesse ensaio.

O ensaio SOLIDARITY foi planejado para ser tão simples e rápido quanto possível, mas ainda assim produzir evidência confiável, ajustando suas estratégias e abordagens às condições de funcionamento de instituições de saúde e às práticas da medicina clínica. Por essa razão, ele não foi planejado como um ensaio de duplo-cego, de modo a alcançar um equilíbrio entre o rigor da pesquisa clínica e a necessidade de respostas rápidas e possíveis de serem alcançadas nas circunstâncias objetivas tanto de países de alta quanto de média e baixa renda. Tem sido previsto que esse ensaio clínico será capaz de diminuir o tempo necessário para avaliar os resultados dos tratamentos em teste em até 80%, em comparação a RCTs típicos. Para usar uma metáfora de Angus, ensaios clínicos como o SOLIDARITY armam uma grande tenda internacional e incorporam a liderança e o compromisso que podem nutrir um ambiente integrado, no qual se possa, assim se espera, aprender fazendo com sucesso. Nesses tempos de irracionalidade galopante, esta já é, em si, uma notícia a ser comemorada.

Charbel N. El-Hani

(Instituto de Biologia/UFBA)

PARA SABER MAIS

Angus, D. C. (2020). Optimizing the trade-off between learning and doing in a pandemic. JAMA 323(19): 1895-1896.

Cañás, M. & Urtasun, M. A. (2020). La evidencia en tiempos de coronavirus (COVID-19). Revista Evidencia 23(2): e002057.

Goodman, J. L. & Borio, L. (2020). Finding effective treatments for COVID-19: scientific integrity and public confidence in a time of crisis. JAMA 323(19): 1899-1900.

London, A. J., Omotade, O. O., Mello, M. M. & Keusch, G. T. (2018). Ethics of randomized trials in a public health emergency. PLOS Neglected Tropical Diseases 12(5): e0006313.

Vijayvargiya, P., Garrigos, Z. E., Almeida, N. E. C., Gurram, P. R., Stevens, R. W. & Razonable, R. R. (2020). Treatment considerations for COVID-19: a critical review of the evidence (or lack thereof). Mayo Clinic Proceedings 95(7): 1454-1466.

Imagem de abertura:

https://en.unesco.org/covid19/educationresponse/learningneverstops

IMUNIDADE COLETIVA AO SARS-CoV-2

Até que haja uma vacina eficaz, os níveis de imunidade não serão altos o suficiente para atingir o que é chamado de imunidade coletiva à COVID-19. Esse é o ponto em que a doença começa a se extinguir, porque um número suficiente de pessoas está imunes e a transmissão acaba.

Surtos, epidemias e pandemias surgem quando um agente causador de uma doença infecciosa começa a circular dentro de uma população suscetível. A diminuição no aparecimento de novos casos acontece quando pessoas recém-infectadas passam a transmitir a infecção  para menos  uma pessoa suscetível dentro da população. Para essa quantidade de pessoas suscetíveis diminuir, é preciso que boa parte da população esteja imune ao patógeno causador dessa doença.

Apesar de haver vários fatores que contribuem para que uma doença infecciosa pare de ser transmitida, o caso citado acima é conhecido na área de imunologia como “imunidade coletiva”, ou “imunidade de rebanho”. A imunidade coletiva ocorre quando uma grande parte da comunidade se torna imune a uma doença, tornando improvável a transmissão de pessoa para pessoa. Como resultado, toda a comunidade fica protegida – mesmo aqueles que não foram infectados. Para que uma doença infecciosa se espalhe, é preciso que uma porcentagem da população seja infectada. Se a proporção de pessoas imunes à doença for suficientemente alta, a propagação da doença diminuirá. Isso é conhecido como limite de imunidade do rebanho.

O exemplo da infecção pelo sarampo ilustra como a imunidade coletiva funciona, pois é um vírus com alta capacidade de infecção, ou seja, cada pessoa infectada consegue transmitir o vírus para até 18 pessoas. Quando a quantidade de casos diminui, é possível inferir que a população está gradativamente ficando imune, seja pela vacinação, seja pela infecção natural. Na epidemiologia, um parâmetro muito importante é o R0, a taxa que mede a capacidade de transmissão de uma pessoa infectada. O SARS-CoV-2 possui um R0 de 2,5, ou seja, cada pessoa infectada consegue transmitir o vírus para no mínimo 2 e no máximo 3 pessoas. Essa taxa determina a proporção limite da imunidade coletiva da população, uma vez que, quanto maior a capacidade de infecção do vírus, maior a quantidade de pessoas imunes que a população precisa ter para impedir a circulação desse vírus.

Que porcentagem de uma população precisa ser imune para haver imunidade coletiva?

A resposta para essa questão varia de doença para doença. Por exemplo, se 80% da população é imune a um vírus, quatro em cada cinco pessoas que encontrarem alguém com a doença não ficarão doentes (e não espalharão a doença mais). Dessa forma, a propagação de doenças infecciosas é mantida sob controle. Dependendo de quão contagiosa é uma infecção, geralmente 70% a 90% da população precisa de imunidade para que seja obtida imunidade coletiva. Para o sarampo, este limite é perto de 95%, o que significa que 95 em cada 100 pessoas precisam estar imunes ao sarampo, para que as 5 que não possuem imunidade ao vírus estejam protegidas. Já para o SARS-CoV-2, a proporção limite foi proposta como sendo entre 60 e 80%.

Quanto mais contagiosa for uma doença, maior será a proporção da população que precisa ser imune para impedir sua propagação. Esse efeito pode ser visto em simulações, como a do  grupo de pesquisadores da Sociedade de Medicina da Filadélfia, que permite visualizar cenários onde uma população desenvolve a imunidade coletiva a uma doença infecciosa com sucesso (acesse as simulações aqui).

Na figura abaixo, que apresenta os casos de sarampo divulgados pela Agência de Proteção à do Reino Unido (Health Protection Agency ) desde 1940, é possível ver que, apesar de baixos, os números de casos aumentam e diminuem periodicamente, mostrando que o vírus continua circulando em populações. É o que acontece, por exemplo, na população brasileira. Os aumentos periódicos podem ter duas explicações. Primeiro, a população de suscetíveis está aumentando, ou seja, a proporção limite para que a imunidade coletiva aconteça é muito baixa, expondo a população que ainda não tem imunidade contra o vírus. Por outro lado, a cobertura vacinal passou a ter um papel importante a partir de 1968, quando a vacina foi licenciada, resultando numa diminuição grande nos casos. Contudo, ainda há uma persistência, que pode ser explicada com o aumento da população em geral e o tempo até as crianças serem vacinadas. Hoje, no Brasil, a recomendação do calendário de imunizações é a aplicação da primeira dose entre 0 e 3 meses de idade.

Health Protection Agency – UK

Podemos prever quando conseguiremos a imunidade coletiva para a COVID-19?

Existem dois caminhos para a imunidade coletiva para a COVID-19: pela imunização com as vacinas, ou pela infecção natural da população, e o consequente desenvolvimento de imunidade pelo próprio indivíduo.

A vacina para o vírus que causa a COVID-19 seria o caminho ideal para obter imunidade coletiva. As vacinas induzem o desenvolvimento de imunidade de modo seguro para a população, ainda que a estratégia de buscar a imunidade coletiva por meio da vacinação às vezes apresente desvantagens. Por exemplo, a proteção de algumas vacinas pode diminuir com o tempo, exigindo revacinação. Além disso, às vezes as pessoas não tomam todas as vacinas que estão disponíveis e recomendadas pelo calendário oficial.

Se a proporção de pessoas vacinadas em uma comunidade cair abaixo da proporção limite de imunidade coletiva, a exposição ao patógeno pode resultar na disseminação rápida da doença. O sarampo ressurgiu recentemente em várias partes do mundo, devido a taxas de vacinação relativamente baixas, incluindo os Estados Unidos e o Brasil. A oposição às vacinas pode representar um verdadeiro desafio para a imunidade coletiva, tão custosamente construída, com campanhas de vacinação anteriores.

A imunidade coletiva também pode ser alcançada quando há um número suficiente de pessoas recuperadas e imunes contra infecções futuras. Por exemplo, aqueles que sobreviveram à pandemia de Influenza (gripe espanhola) de 1918 se tornaram imunes à infecção com a gripe H1N1, um subtipo do vírus Influenza A.

No entanto, existem alguns problemas importantes em depender da infecção da comunidade para criar imunidade coletiva ao vírus que causa COVID-19. Primeiro, ainda não está claro se a infecção pelo vírus COVID-19 torna uma pessoa imune a infecções futuras. Até agora o que sabemos é que há uma resposta imune composta por linfócitos T CD4+, CD8+, células NK e anticorpos, mas ainda precisamos de mais tempo para entender melhor se a imunidade natural e a imunidade induzida pela vacina são suficientes para proteger a população.

Mesmo que a infecção com o vírus COVID-19 crie imunidade duradoura, um grande número de pessoas teria que ser infectado para atingir o limite de imunidade de rebanho. Especialistas estimam que, nos EUA, 70% da população – mais de 200 milhões de pessoas – teriam que se recuperar do COVID-19 para conter a epidemia. Se muitas pessoas ficarem doentes com COVID-19 ao mesmo tempo, o sistema de saúde pode ficar sobrecarregado rapidamente resultando em milhões de mortes.

Apesar de ser a melhor saída, sabemos que há uma movimentação de algumas partes da população em recusar a imunização pelas vacinas. Em 1998, um pesquisador afirmou que a vacina contra o sarampo aumenta a incidência de autismo em crianças. Os pais expressaram suas preocupações e a mídia divulgou amplamente esta declaração. Após muitos estudos, a Organização Mundial da Saúde concluiu que não existia nenhuma evidência de uma associação causal entre a vacina e transtornos autistas, apesar de parte da população ainda usar este argumento para não seguir o calendário de vacinação proposto pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI) (acesse a posição da OMS sobre o trabalho de 1998).

A melhor maneira de obter imunidade coletiva sem perda de vidas é com uma vacina que seja altamente eficaz e administrada para a grande maioria dos indivíduos, de modo que todas as regiões tenham pelo menos 60%-70% da população imunizada. Embora tenhamos várias vacinas candidatas em testes clínicos em estágio final, sabemos que as vacinas são difíceis de se produzir, mas são a nossa melhor chance de proteger a população.

Thais Boccia

Bióloga, mestre e doutora em imunologia pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo

Para saber mais:

Metcalf CJE, et al. Understanding herd immunity. Trends in Immunology. 2015; doi:10.1016/j.it.2015.10.004.

Fox JP. Herd immunity and measles. Rev Infect Dis. 1983;5(3):463-466. doi:10.1093/clinids/5.3.463

https://www.historyofvaccines.org/content/herd-immunity-0

https://www.cdc.gov/globalhealth/measles/globalmeaslesoutbreaks.htm

https://www.gov.uk/government/publications/measles-deaths-by-age-group-from-1980-to-2013-ons-data/measles-notifications-and-deaths-in-england-and-wales-1940-to-2013

https://vaccine-safety-training.org/mmr-vaccine-increases.html

Guerra FM, Bolotin S, Lim G, et al. The basic reproduction number (R0) of measles: a systematic review. The Lancet. Infectious Diseases. 2017 Dec;17(12):e420-e428. DOI: 10.1016/s1473-3099(17)30307-9.

Bartsch SM, O’Shea KJ, Ferguson MC, et al. Vaccine Efficacy Needed for a COVID-19 Coronavirus Vaccine to Prevent or Stop an Epidemic as the Sole Intervention [published online ahead of print, 2020 Jul 15]. Am J Prev Med. 2020;S0749-3797(20)30284-1. doi:10.1016/j.amepre.2020.06.011

García LF. Immune Response, Inflammation, and the Clinical Spectrum of COVID-19. Front Immunol. 2020;11:1441. Published 2020 Jun 16. doi:10.3389/fimmu.2020.01441

Long QX, Tang XJ, Shi QL, et al. Clinical and immunological assessment of asymptomatic SARS-CoV-2 infections. Nat Med. 2020;26(8):1200-1204. doi:10.1038/s41591-020-0965-6

Kwok KO, et al. Herd immunity — Estimating the level required to halt the COVID-19 epidemics in affected countries. Journal of Infection. 2020; doi:10.1016/j.jinf.2020.03.027.

Genocídio indígena na era da COVID-19

O aumento das práticas ilegais de garimpo e desmatamento em meio à pandemia agravam a vulnerabilidade epidemiológica dos povos indígenas, podendo ocasionar o extermínio de diversas etnias.

Desde o momento em que invadiram a América, os europeus contaminaram os nativos americanos, causando a morte de centenas de milhares de indígenas por doenças como varíola, cólera, sarampo e gripe. Essas doenças, por serem endêmicas de outros continentes, não estavam presentes na América até sua invasão. Assim, diferentemente dos europeus, que desenvolviam imunidade para essas doenças através da exposição a elas desde a infância, os nativos americanos eram extremamente vulneráveis às mesmas. De acordo com o biólogo Jared Diamond, no livro ganhador do prêmio Pulitzer Armas, germes e aço, a morte dos nativos americanos por doenças excedeu em muito o número de mortes por batalhas e assassinatos – embora estas também não possam ser menosprezadas. Logo, a chegada e as explorações territoriais dos europeus foram responsáveis por inúmeras epidemias, causando a morte de milhares de indígenas e o extermínio de diversas culturas. Continue Lendo “Genocídio indígena na era da COVID-19”

COVID-19 e outras guerras biológicas na América

As viroses vêm moldando a história dos povos nativos da América desde que os europeus começaram a explorar regularmente o Novo Mundo, há cinco séculos. Epidemias virais trazidas pelos imigrantes tiveram um impacto devastador nas populações que aqui viviam. Estima-se que cerca de 90% das populações nativas foram dizimadas por viroses, escravagismo ou guerras. Atualmente, problemas respiratórios resultantes de infecções ainda são a principal causa de morte nas populações nativas brasileiras.

A expressão ‘Virgin Soil’ tem sido usada para enfatizar que as populações em risco de epidemia são as que não tiveram contato prévio com as doenças que as atingem, e são, portanto, imunologicamente indefesas. Embora essa expressão tenha se popularizado, e apresente algumas bases biológicas – dado que as populações nativas das Américas estiveram 15.000 anos isoladas de outras populações, e, consequentemente de seus patógenos – ele também acarreta a noção errônea de que o colapso dessas populações não passou de acidentes históricos, e a enorme perda de vidas dos indivíduos nativos é dada como inevitável após o contato, implicando que as políticas coloniais não contribuíram para talvez o maior desastre relacionado à saúde pública em nossa história. Há que salientar que as doenças pós-contato eram incapacitantes não somente porque os indígenas não tinham imunidade, mas porque as condições criadas pelo colonialismo europeu tornaram as comunidades nativas vulneráveis.

O primeiro relato de uma epidemia na América é praticamente concomitante ao contato com os europeus. Em abril de 1520, as forças espanholas desembarcaram no que é agora Veracruz, no México, trazendo involuntariamente um escravo africano infectado com varíola. Dois meses depois, tropas espanholas entraram na capital do Império Asteca, Tenochtitlán, e em meados de outubro o vírus estava varrendo a cidade, matando quase metade da população, estimada em 200.000 pessoas. Em 1548, os habitantes indígenas de Hispaniola, ilha colonizada por Cristóvão Colombo, foram vítimas de varíola, gripe e outros vírus. Em 1563, calcula-se que cerca 30.000 nativos tenham morrido nos primeiros 90 dias após a eclosão de um surto de varíola na Bahia, trazida de Portugal. Na Amazônia, a exploração da borracha expôs os nativos a uma série de patógenos, e a um colapso ambiental na região, que agravou os impactos das epidemias. Concomitantemente à entrada de novos patógenos, as expedições europeias de exploração levaram também a surtos de doenças que aqui já existiam, como a disenteria, resultado de guerras, privação de recursos e alterações no ambiente.

As investidas colonialistas contra os povos nativos sempre foram violentas, no entanto, algumas estratégias historicamente usadas contra populações nativas norte e sul-americanas, se apresentaram como uma guerra biológica. No século XVIII, o comandante Henry Bouquet ordenou o uso de cobertores infectados com varíola contra os nativos dos grupos Mingo e Shawnee, nativos da América do Norte, durante um levante desses grupos contra os colonizadores. No mesmo período, os Timbira foram presenteados com roupas infectadas por varíola, no estado do Maranhão, com intuito de espantar os nativos de suas terras. Auguste de Saint-Hilaire relata em seus livros de viagens pelo Brasil uma história semelhante, na qual brinquedos infectados também com varíola teriam sido distribuídos entre os índios Botocudos do sudeste brasileiro.

Infelizmente esses ataques não terminaram com o final do período colonial. Em 1950, cerca de mil indígenas da etnia Cinta-Larga, residentes no Mato Grosso, foram mortos por uma epidemia de sarampo. Os indígenas relataram que “aviões atiravam brinquedos doentes dos céus”. Segundo um relatório da Comissão Nacional da Verdade, de 2014, tal ação foi coordenada por mineradores, madeireiros e garimpeiros, interessados nas terras indígenas, com a conivência do governo federal. Existem também diversos relatos recentes sobre aviões pulverizando agrotóxicos sobre aldeias Guarani no Paraná e Mato Grosso, causando danos à saúde indígena. Antes disso, na década de 1970, pesquisadores norte-americanos participaram de um estudo de imunização ao sarampo entre os indígenas amazônicos. Tal estudo é visto por muitos como um experimento in vivo, ou seja, uma epidemia controlada de sarampo nas populações indígenas.

Em 2020, a epidemia da COVID-19 atinge cinco vezes mais indígenas do que não indígenas, sendo a taxa de mortalidade 2,5 vezes maior. Ao mesmo tempo, falhas e omissões do poder público desrespeitam preceitos constitucionais, tornando as populações nativas ainda mais vulneráveis e negligênciadas pela saúde pública. Outra vez, a epidemia não é apenas em relação à doença causada entre as populações indígenas. Ainda que possam realmente existir fatores genéticos subjacentes ao aumento do risco de infecção nessas populações, fatores sociais e culturais parecem ser mais decisivos para a mortalidade e evolução da infecção. Os exemplos mais gritantes atualmente são a invasão das terras Yanomami pelos grileiros e garimpeiros e a situação de abandono dos povos nativos nas periferias das grandes cidades. Assim como as catástrofes ocorridas com os Cinta-Larga na década de 1950 ou os demais massacres biológicos dos séculos passados, os efeitos da epidemia atual nos povos indígenas são uma consequência direta e previsível das decisões tomadas pelo Estado de desapropriar os povos nativos de terras desejáveis e empurrá-los para outro lugar, afastados de sua cultura e seu modo de viver tradicional.

Tábita Hünemeier

IB/USP

PARA SABER MAIS:

Suzanne Austin Alchon (2003) A Pest in the Land: New World Epidemics in a Global Perspective. University of New Mexico Press.

Kristine B Patterson  and Thomas Runge (2002) Smallpox and the Native American. Am J Med Sci. 2002 Apr;323(4):216-22. doi: 10.1097/00000441-200204000-00009.

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