O poder do não-lugar: desafios e oportunidades na pesquisa inter- e transdisciplinar em Ecologia e Conservação

Construir um novo perfil profissional é criar o próprio espaço no mundo

Vincent van Gogh (1853 – 1890), Paris, Dezembro de 1887-Fevereiro de 1888. Óleo sobre tela, 65.1 cm x 50 cm. Créditos: Van Gogh Museum, Amsterdam (Vincent van Gogh Foundation).
O artista tinha o costume de pintar autorretratos, pois não tinha recursos para pagar modelos. Os autorretratos eram feitos para estudar técnicas e, por isso mesmo, ele aparece de diferentes maneiras nos quadros. A obra foi escolhida para ilustrar a ideia de que uma pintura de si mesmo é sempre uma releitura e, para esta reflexão, simboliza a criação desse novo perfil profissional. Além disso, Van Gogh foi responsável por criar um novo estilo artístico, inexistente à época, o que também associo a uma nova forma de fazer ciência.

Um dos maiores desafios na Ecologia e Conservação é a lacuna pesquisa-prática. Este desafio está relacionado à constatação de que o conhecimento produzido na Ecologia, bem como a forma de pensar e investigar questões ambientais, não estão sendo aplicadas para resolver problemas do mundo real. Adicionalmente a isso, na Biologia da Conservação cresce a ideia da importância de considerar a relação humano-natureza, em vez de ver os humanos como separados da natureza. No entanto, a superação dos problemas ambientais utilizando do conhecimento científico e a proposição de soluções criativas baseada em diversos saberes é um trabalho bastante difícil. Isso depende de tradução e fomento ao intercâmbio entre os conhecimentos, de envolver diferentes partes interessadas, de reunir e sistematizar conhecimento(s) de boa qualidade, de compreender novos desafios e manejar relações interpessoais.

A pesquisa inter- e transdisciplinar desempenha um papel importante nesse aspecto, configurando espaços onde diferentes perspectivas possam trazer suas narrativas sobre os  problemas socioambientais, ao passo que desenvolve e reproduz  práticas diferentes da ciência dominante. Criam-se, assim, soluções que potencialmente são mais benéficas para as pessoas e natureza. No entanto, quem fará todo o trabalho árduo de integrar as abordagens reunidas em iniciativas dessa natureza? Quais são as reais necessidades de quem se arrisca a iniciar uma jornada inter- e transdisciplinar? Aqui eu vou compartilhar brevemente minha própria experiência como bióloga em início de carreira que migrou de uma formação disciplinar para uma atuação inter- e transdisciplinar. Vou discutir alguns dos desafios e benefícios que encontrei e argumentar sobre porque a inter- e transdisciplinaridade são cruciais para abordar questões socioambientais.

Vamos começar do início. Durante o período de graduação, estudei Ciências Biológicas por quatro anos. Esse período foi suficiente para moldar minha forma de pensar, meu comportamento e minha visão de mundo. Eu esqueci como costumava pensar quando comecei meus estudos e achava difícil compreender porque alguém discordaria da minha perspectiva sobre a natureza – um assunto implicitamente estudado em minha área e profundamente enraizado em meu conhecimento adquirido através de incontáveis horas de estudo. Isso aconteceu, em parte, porque minha formação acadêmica tinha um foco disciplinar muito forte. Aprendi a evolução como um conceito central na Biologia e subjacente à diversidade, taxonomia, genética, zoologia, botânica e ecologia. Durante esse tempo de graduação, cada disciplina era dividida em dois ou três módulos semestrais, mais ou menos conectados entre si. Eu passei da bioquímica e biologia molecular para a genética e, paralelamente, estudei embriologia, zoologia, botânica e ecologia. Cada uma em suas caixas e com sua relevância. No final da minha graduação, eu tinha um diploma que certificava meu conhecimento em várias disciplinas dentro do campo da biologia. No entanto, embora os seres humanos fossem considerados parte da natureza, o aspecto “humano” não foi abordado de forma abrangente.

Da metade para o final da minha graduação, eu li o texto intitulado “Desafios e Oportunidades de Superar a Lacuna entre a Pesquisa e a Implementação na Ciência Ecológica e Gestão no Brasil”, escrito por pessoas que eu admiro muito por seu excelente trabalho em Ecologia e Filosofia da Ciência. Ainda nesse período, tive a sorte de fazer parte de um grande projeto de pesquisa em que a lacuna entre pesquisa e implementação era foco de discussões profundas e de vários esforços para tornar a Ecologia mais eficaz na resolução de problemas do mundo real, notadamente na agricultura, mas também com comunidades pesqueiras, manejo de áreas preservadas e políticas públicas. Este foi um momento de virada, quando percebi que as questões ambientais com as quais eu me preocupava tinham facetas que não poderiam ser adequadamente estudadas dentro da minha formação disciplinar, devido às limitações metodológicas, falta de ferramentas ou paradigmas prevalentes. De fato, as universidades são tipicamente instituições orientadas por disciplinas e apenas recentemente a área de Conservação começou a abraçar uma perspectiva de “natureza e pessoas” de forma mais ampla, o que tem implicações para a gestão, para a avaliação de currículo e impactos científicos, bem como para o desenvolvimento de teorias, métodos e ferramentas que sirvam para compreender e avaliar os sistemas socioecológicos. 

Para enfrentar esse problema, percebi que precisava entender outras abordagens fora da minha formação acadêmica e começar uma jornada inter- e transdisciplinar. Antes de aprofundar ainda mais essa discussão, é muito importante esclarecer as diferenças entre estudos disciplinares, multidisciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares. Aqui, vou adotar os conceitos apresentados no artigo de Tress, Tress e Fry disponível nesse link. Estudos disciplinares consistem em pesquisas que se concentram em um objeto específico dentro dos limites de uma única disciplina acadêmica. Estudos multidisciplinares envolvem diferentes disciplinas acadêmicas investigando um tema ou problema sob um guarda-chuva temático. O resultado do conhecimento também é disciplinar e a cooperação entre as disciplinas é limitada. Já os estudos interdisciplinares envolvem duas ou mais disciplinas não relacionadas entre si que são postas em uso para investigar um mesmo objeto, de modo que pesquisadores cruzam as fronteiras entre disciplinas a fim de criar novos conhecimentos e teorias que vão além do escopo de cada disciplina isoladamente. E, por fim, os estudos transdisciplinares reúnem não apenas disciplinas acadêmicas, mas também participantes não acadêmicos e suas visões de mundo e conhecimentos, em direção a um objetivo de pesquisa e ação comum. Acho importante mencionar que, do meu ponto de vista, não há nenhum juízo de valor sobre essas abordagens. Penso que todas são relevantes e têm seu lugar e contribuição. Há beleza tanto no estudo de caracteres específicos de uma planta e sua relação evolutiva com outras espécies, como também na colaboração entre ciência e conhecimento botânico de comunidades indígenas e locais. 

Voltando ao meu caso, trabalho com conservação de polinizadores e, mais recentemente, comecei a trabalhar com áreas urbanas. Considerando o primeiro caso, esse tema pode ser abordado de várias maneiras, por exemplo, testando como as práticas agrícolas influenciam a abundância e a diversidade de polinizadores. Temos evidências de que os polinizadores estão em declínio devido à agricultura, às mudanças climáticas, à urbanização, ao uso de pesticidas etc. Também sabemos que há uma falta significativa de dados a esse respeito em muitas partes do mundo. Parte da solução para abordar esse problema requer o envolvimento das pessoas na conservação de polinizadores, seja por meio de ações diretas de conservação seja por conscientização e elaboração de políticas públicas que melhor protejam esse serviço, por exemplo. No entanto, como podemos envolver efetivamente as pessoas na conservação de polinizadores? 

Esta é uma situação típica em que pesquisadores/as da Ecologia precisam cruzar as fronteiras de sua disciplina para encontrar outros pesquisadores em outros campos igualmente disciplinares. Em minha pesquisa de doutorado, recorri teoricamente à psicologia social e metodologicamente às ciências sociais para entender aspectos sociais relacionados à conservação de polinizadores. Vamos explorar alguns dos desafios que encontrei ao conduzir pesquisas inter- e transdisciplinares, os quais merecem grande atenção de quem busca realizar estudos dessa natureza.

Um desafio significativo para o emprego de abordagens inter- e transdisciplinares em ciências ambientais é a dependência epistêmica. Este conceito está relacionado ao fato de que, em atividades de pesquisa colaborativa – como as interdisciplinares -, os cientistas que trabalham em um campo distante de sua formação acadêmica são dependentes epistemicamente de outros cientistas vinculados a este campo para compartilhar ideias, aprender e aplicar métodos e interpretar resultados. Em segundo lugar, na pesquisa inter- e transdisciplinar, geralmente o delineamento experimental ou amostral e a coleta de dados funcionam de maneira bastante diferente, notadamente quando integramos ciências sociais e ciências ambientais. Geralmente, métodos qualitativos se encontram com métodos quantitativos para dar sentido aos resultados e o estilo de escrita e comunicação são bastante diferentes. Além disso, trabalhar com esse tipo de dados requer o desenvolvimento de novas habilidades éticas e a consideração da disponibilidade de outras pessoas para contribuir com sua pesquisa, o que pode levar muito tempo. Por último, mas não menos importante, atualmente os cientistas são avaliados principalmente por seu histórico de publicações. Os resultados de pesquisas inter- e transdisciplinares nem sempre são aceitos em revistas disciplinares, embora haja alguns exemplos de revistas de alta qualidade que se concentram nesse tipo de pesquisa. Mas o mais importante é que manter a excelência na pesquisa – propondo questões que avancem o conhecimento, executando os estudos com rigor metodológico etc. – implica uma aprendizagem profunda de um campo completamente novo, o que traz desafios epistêmicos e linguísticos

Do ponto de vista pessoal, eu adicionaria que lidar com algo desconhecido tanto para a minha formação acadêmica, quanto para a comunidade científica ao meu redor, representou um desafio ainda maior e, muitas vezes, me levou a ser questionada – principalmente por outros professores e colegas – se estava no lugar certo. Não posso deixar de mencionar que um questionamento externo só nos atravessa e nos marca quando há também um questionamento interno; afinal, nunca damos muita atenção a questões que já não existem em nós. No meu caso, como mulher negra fazendo algo diferente, essas questões também surgiram internamente, pois à época não tinha referências e experiências muito concretas que me inspirassem ou me acolhessem nesse caminho. Assim, a necessidade (e vontade) de me manter firme e inovar foram muito importantes nesse caso. Superar esse desafio requer resiliência e disposição. A criação de redes de contatos com pessoas abertas a abordagens inter- e transdisciplinares também é igualmente relevante.

A pesquisa inter- e transdisciplinar também oferece inúmeras oportunidades para ecólogos e conservacionistas. Em primeiro lugar, trabalhar em ambientes colaborativos e diversos promove o desenvolvimento de habilidades eficazes de comunicação, permitindo que os pesquisadores adaptem sua linguagem a diferentes públicos. Em segundo lugar, proporciona oportunidades para criar soluções baseadas na natureza e nas pessoas. No caso da pesquisa transdisciplinar,  diversos conhecimentos são combinados. Isso pode influenciar diretamente a tomada de decisões por meio da participação de múltiplos atores, levando em consideração também a ciência. Por fim, as abordagens inter- e transdisciplinares permitem explorar como métodos e projetos de pesquisa de diferentes disciplinas podem ser combinados para informar esforços de conservação. Apesar dos desafios, a prática contínua e o engajamento com abordagens inter- e transdisciplinares reduzem gradualmente a percepção de estar “fora do seu campo”.

Algumas discussões adicionais sobre esse tema ainda estão em aberto, principalmente se considerarmos que há esse novo perfil profissional em ascensão que ocupa um não-lugar na academia como a conhecemos hoje, mas que também transforma este não-lugar em algo inventivo. Assim, precisamos refletir sobre como os ecólogos disciplinares ensinarão a uma nova geração de pesquisadores inter- e transdisciplinares? Essa nova geração realmente pode trazer mudanças significativas? Como os ecólogos básicos e aplicados podem se engajar efetivamente nesse diálogo? Qual é o estado atual do conhecimento inter- e transdisciplinar em Ecologia e Conservação? Que habilidades outras ainda precisaremos desenvolver para atuar na pesquisa inter- e transdisciplinar? As discussões atuais também destacam a importância de considerar as relações geopolíticas, particularmente entre o Norte e o Sul Global, por meio das quais países da Europa e América do Norte têm sistematicamente oprimido e dominado países da América do Sul e África, por exemplo.  Também não podemos esquecer da necessidade de descolonizar a Ecologia e a Conservação, ou seja, de repensar a predominância do pensamento europeu nas soluções aos problemas socioambientais e abandonar práticas que reforçam injustiças ambientais. Autonomia, curiosidade e coragem são características necessárias para superar os desafios associados à formação em pesquisas inter- e transdisciplinares. Essa abordagem oferece um caminho promissor para construir um pensamento inovador e crítico sobre problemas socioambientais, além de promover a capacitação de futuros líderes e cientistas comprometidos em encontrar soluções criativas em um mundo em rápida mudança.

Caren Queiroz Souza
Pesquisadora de Pós-doutorado
Universidade Federal de São Carlos
Brasil

PARA SABER MAIS

PODCAST IN-TREE. Ep. 15 – Projetos em Siribinha e Poças. 14 jan. 2021. Disponível em:https://open.spotify.com/episode/1bpCrOwrtD2ZPt3R4SlUGG?si=ILwAg9WWR0qVdqFT_iU8NA&nd=1&dlsi=dd0c7730529145d1. Acesso em: 28 set. 2025.

RADIO USP. Transdisciplinaridade: a nova abordagem na área de pesquisas socioambientais. Jornal USP, 29 abr. 2024. Atualizado em: 19 jun. 2024. Disponível em: https://jornal.usp.br/radio-usp/transdisciplinaridade-a-nova-abordagem-na-area-de-pesquisas-socioambientais/. Acesso em: 28 set. 2025.

Gorshkov, VG, Makarieva AM. Biotic Regulation: Main Page. Disponível em: <https://www.bioticregulation.ru/>. Acesso em: 21 de agosto de 2023.

Onde chove, crescem florestas e onde crescem florestas, chove

A relação entre as florestas e as chuvas é conhecida por diversas culturas. A ciência vem descrevendo essa relação cada vez com mais detalhes. Mas existem teorias que explicam essa relação?

As florestas crescem onde chove ou chove onde crescem florestas? Este foi o título dado por Antônio Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), a um de seus textos sobre o papel da Floresta Amazônica na regulação do clima. Nobre costuma enfatizar, em seus textos e entrevistas, a importância da conservação da floresta e dos fenômenos controlados por ela, como a bomba biótica de umidade, a formação dos rios voadores e a emissão de aerossóis capazes de gerar núcleos de condensação de nuvens e núcleos de gelo. Tais fenômenos são imprescindíveis para a manutenção dos padrões regionais de chuva e do conforto climático que experimentamos em algumas regiões do planeta, o qual se estabeleceu nos últimos milhares de anos de história da Terra.

A teoria da bomba biótica de umidade explica que, por meio da transpiração e da condensação, as florestas criam ativamente regiões de baixa pressão, que absorvem o ar úmido dos oceanos, gerando ventos capazes de transportar umidade e sustentar a chuva nos continentes. Como as massas de terra continental estão acima do nível do mar, por efeito da gravidade toda a água líquida acumulada no solo e nos reservatórios subterrâneos flui inevitavelmente para o oceano, na direção da inclinação máxima das superfícies. Então, para acumular e manter reservas ideais de umidade na terra, seria necessário compensar o escoamento gravitacional de água para o oceano, por meio de um fluxo reverso de umidade, do oceano para a terra. Segundo essa teoria, esse fluxo reverso é impulsionado e mantido por grandes áreas contínuas de floresta. Isso quer dizer que, se a floresta for removida, o continente terá muito menos evaporação do que o oceano contíguo – com a consequente redução na condensação –, o que determinará uma reversão nos fluxos de umidade, que passarão a ir da terra para o mar, criando um deserto onde antes havia floresta. Por sua vez, ações de restauração florestal podem aumentar a precipitação local e também contribuir para o fortalecimento do transporte total de umidade do oceano para a terra continental, aumentando a magnitude e a confiabilidade da precipitação.

A Floresta Amazônica mantém o ar úmido em seu interior e exporta rios aéreos de vapor, que contribuem para formação de chuvas fartas e irrigam regiões distantes no verão do hemisfério sul. Nos últimos anos, os rios voadores, como têm sido chamados esses cursos de água atmosféricos, apareceram em matérias da mídia de grande circulação, a exemplo da BBC News Brasil e Revista Galileu. Eles foram definidos em 1992 como grandes volumes de vapor d’água que são transportados na baixa atmosfera. Um dos rios voadores de maior importância para a América do Sul é formado pela ação conjunta da forte evaporação das áreas tropicais mais quentes do Oceano Atlântico e da Floresta Amazônica. Sob ação da bomba biótica de umidade, a intensa evaporação nas áreas do oceano é sugada para dentro do continente e avança no sentido oeste, até atingir a Cordilheira dos Andes. Ao longo dessa trajetória, o vapor d’água recircula, tendo seu volume aumentado ao passar por cima da Floresta Amazônica, graças à atividade de evapotranspiração das árvores. Ele segue então seu caminho e desagua em áreas mais remotas e mais áridas nas regiões Sudeste e Sul do Brasil, além de dispersar-se pelos países fronteiriços, como Paraguai e Argentina.

O processo de evapotranspiração é a perda de água pelas plantas na forma de vapor. Esse processo se inicia pela ação de diferentes fatores, em especial pela mudança de temperatura na atmosfera, que interfere no movimento da água que circula pelo corpo da planta e chega à superfície das folhas. Depois que as nuvens precipitam, grande parte da água atravessa o dossel e se infiltra pela floresta. Parte dessa água é armazenada no solo, ou mais abaixo, nos aquíferos. A água que é armazenada no solo retorna para a atmosfera quando é absorvida pelas raízes e posteriormente liberada através da evapotranspiração das árvores. Essa água absorvida pelas raízes ascende para as folhas pelo xilema, tecido condutor de água e sais minerais nas plantas vasculares.

Apesar de a transpiração ocorrer em qualquer parte do organismo vegetal acima do solo, a maior proporção ocorre nas folhas (mais de 90%), o que está associado à sua anatomia. Na superfície foliar, existe uma camada de cera interrompida por poros, denominados estômatos. No interior desses poros, há células agrupadas que emitem vapor d’água para o espaço presente entre elas, no qual há uma abertura para atmosfera, o que possibilita a perda desse vapor, fenômeno que se conhece como evapotranspiração. À medida que a água vai sendo perdida para a atmosfera, o seu movimento pelo corpo da planta continua garantindo a hidratação dos tecidos internos e a manutenção do próprio ciclo de evapotranspiração. Para que exista essa elevação da coluna d’água pelo tecido condutor, as moléculas de água precisam estar coesas e submetidas a uma força de tensão que vence a gravidade. Essa dinâmica no transporte da água do solo para as raízes e das raízes para o caule depende da pressão positiva de raiz e da capilaridade. A pressão positiva de raiz resulta da constante perda de água do interior do corpo da planta, criando uma força de arrasto da água do solo em direção às raízes, que acaba elevando a coluna d’água pela extensão do xilema, mas com um poder de ascensão limitado em função da força da gravidade, que se opõe a essa elevação. A capilaridade contribui, então, para esta ascensão da coluna d’água. Trata-se de um fenômeno físico que ocorre quando líquidos se deslocam na superfície de tubos muito finos, o que depende das propriedades de coesão e adesão.  A força de adesão depende da afinidade existente entre o líquido e a superfície sólida do tubo. Já a força de coesão depende da atração entre as moléculas do próprio líquido e atua no sentido oposto à parede do tubo. Como a água está sendo perdida pela evapotranspiração, as folhas atuam como uma bomba de sucção que mantém este processo funcionando.

No relatório O futuro climático da Amazônia, Nobre revelou que, usando dados de evaporação coletados nas torres de fluxo de um projeto de grande escala, foi possível estimar a quantidade total diária de água fluindo do solo para a atmosfera através das árvores na bacia amazônica. O valor estimado, para uma área de 5,5 milhões de km2, chegou ao total surpreendente de 20 bilhões de toneladas de água transpiradas ao dia para a atmosfera (ou 20 trilhões de litros). Se todas as florestas da porção equatorial da América do Sul fossem consideradas, esse número passaria a 22 bilhões e, se considerássemos as florestas que existiam em 1500, seriam 25 bilhões de toneladas ou mais. Para efeito comparativo, o rio Amazonas despeja no Oceano Atlântico cerca de 17 bilhões de toneladas ao dia, pelo menos 3 bilhões de toneladas a menos do que foi estimado na formação do rio aéreo.

Mais um fenômeno controlado pela floresta e capaz de atuar no clima diz respeito às emissões de aerossóis moduladas pelas árvores. Esses aerossóis são elementos-chave do sistema climático, pois são capazes de mudar os padrões de chuva na região amazônica, como consequência da redistribuição de energia e da formação de núcleos de condensação e núcleos de gelo. Os aerossóis controlam a formação de nuvens e a precipitação através de seus efeitos sobre os núcleos nos quais gotículas de água se condensam ou gelo se forma. Nuvens são agregados de gotículas em suspensão no ar. Em baixas temperaturas, estas gotículas se condensam a partir do vapor. Porém, para formar núcleos de condensação, é preciso haver uma superfície sólida ou líquida que funcione como “semente” para que se inicie a deposição e condensação das moléculas de vapor. Essas sementes são geradas pelos aerossóis encontrados na atmosfera. A depender de sua composição e abundância, eles podem espalhar ou absorver radiação, assim como aumentar ou suprimir a precipitação.

Os aerossóis são classificados em partículas primárias, produzidas deliberadamente pela flora (por exemplo, liberação de pólen e esporos de fungos) e incidentalmente (por exemplo, como restos de folhas e solo ou como microorganismos em suspensão), e partículas secundárias, produzidas na atmosfera pela oxidação de gases residuais, que resulta em compostos de baixa volatilidade. Assim como partículas de aerossóis de outras origens (por exemplo, poeira mineral, sal marinho, fumaça de biomassa – oriunda da queima de biomassa – e partículas de poluição), partículas biológicas podem influenciar a formação de nuvens e processos de precipitação através de diversos mecanismos, os quais são cruciais para a manutenção do ciclo hidrológico. A precipitação induzida por partículas primárias e secundárias, emitidas pelas florestas ou formadas na atmosfera, agindo como núcleos de condensação ou núcleos de gelo, sustenta a reprodução de plantas e microrganismos no ecossistema do qual os precursores dessas partículas são emitidos (Figura 1). Essa causalidade circular é retratada na pergunta feita por Nobre em seu texto de 2007: “As florestas crescem onde chove ou chove onde crescem florestas?” Ela pode ser entendida como um dilema do tipo ovo-ou-galinha e estimular a seguinte conclusão: “[…] onde tem mata, tem chuva” (Nobre, 2007, p. 369).

Há diferentes formas de interpretar a causalidade circular entre florestas e chuvas. Uma delas é uma proposta recente que vem sendo discutida na filosofia da biologia: a teoria organizacional das funções ecológicas. Na próxima seção, falaremos sobre ela e a abordagem que a fundamentou, a teoria da autonomia biológica.

Figura 1: Principais mecanismos associados ao controle da água pela floresta no ciclo hidrológico continental. A água presente no solo entra no corpo da planta, sendo em seguida conduzida até as folhas, onde grande parte é evapotranspirada. As árvores também contribuem com compostos orgânicos voláteis, que oxidam em contato com a atmosfera e são os maiores responsáveis pela formação de núcleos de condensação. As partículas primárias, como esporos de fungos e grãos de pólen, contribuem para a formação de núcleos de gelo, mas também podem agir como núcleos de condensação “gigantes”, gerando grandes gotas e induzindo chuva quente, sem formação de gelo.  Autor da figura: Jeferson Coutinho.

Sistemas biológicos: um tipo específico de regime causal

Uma forma de interpretar a circularidade causal entre organismos e componentes abióticos num ecossistema vem sendo explorada na construção de uma teoria organizacional das funções ecológicas. De acordo com essa teoria, assim como em outras abordagens, como a teoria da construção de nicho ou a teoria Gaia, a vida influencia as condições físico-químicas do ambiente de uma maneira que acaba por contribuir para a sua própria auto-manutenção. A teoria também compartilha com outras versões de abordagens organizacionais a ideia de fundamentar as atribuições de funções a componentes dos ecossistemas com base na proposição de que os sistemas biológicos realizam um tipo específico de regime causal, no qual as ações de um conjunto de partes são condição para a persistência de toda a organização ao longo do tempo. Essa teoria é derivada da teoria da autonomia biológica, que propõe que sistemas vivos são irredutíveis a sistemas físico-químicos, exibindo propriedades qualitativamente distintas porque apresentam uma organização específica, que pode ser descrita como um fechamento, isto é, uma circularidade causal diferente daquela encontrada em sistemas físico-químicos, como explicaremos a seguir.

A teoria da autonomia biológica considera que sistemas vivos são organizacionalmente fechados e termodinamicamente abertos. Quando dizemos que um sistema vivo é organizacionalmente fechado, estamos nos referindo ao que denominamos acima “circularidade causal”. Em termos mais precisos, isso significa que a organização biológica em questão (por exemplo, de um organismo ou ecossistema) exibe “fechamento”, isto é, seus componentes e suas operações dependem umas das outras para sua própria produção e manutenção, e determinam coletivamente as condições para que o próprio sistema exista e siga existindo. Conforme a teoria da autonomia biológica, o fechamento característico dos sistemas vivos é um “fechamento de restrições”. Isso requer, claro, que expliquemos o que são restrições.

Restrições são causas locais e contingentes, exercidas por estruturas e processos específicos, que reduzem os graus de liberdade da dinâmica ou do processo sobre o qual atuam, mas permanecem conservadas na escala de tempo relevante para descrever sua ação causal em relação àquele processo ou dinâmica. Como as restrições reduzem os graus de liberdade dos processos internos ao sistema vivo, elas contribuem para sua coordenação, a qual gera, por sua vez, novas possibilidades de comportamento e adaptação ao meio para o sistema como um todo. Uma variedade de entidades pode desempenhar o papel de restrições em um organismo, por exemplo, macromoléculas (digamos, enzimas ou ribossomos) e configurações materiais específicas (como o sistema de vasos sanguíneos ou os circuitos neurais dentro do cérebro). Reduzir graus de liberdade de um processo significa dizer que, sob a ação da restrição, o processo tem um universo menor de possíveis trajetórias, em comparação com o que teria na ausência da restrição. É essa redução de graus de liberdade que faz com que os processos sejam, sob a influência das restrições, mais coordenados, de tal maneira que a manutenção da vida seja possível. Portanto, quando nos referimos a um fechamento de restrições, estamos considerando uma rede de dependências mútuas entre partes constitutivas de um sistema que atuam como restrições, oque contribui não apenas para a manutenção e existência das outras partes do sistema, como também do próprio sistema como um todo e, consequentemente, de si mesmas.

De modo diferente dos sistemas vivos, cadeias circulares de processos também podem ocorrer sob a ação de restrições externas. Esse comportamento é tipicamente observado em sistemas físicos ou químicos e é caracterizado por sequências ordenadas de ocorrências ou estados dinâmicos que estão ligados sistematicamente uns aos outros, tipicamente de maneira causal. O fechamento de processos, como é chamado, ocorre quando esses estados ou ocorrências formam um ciclo fechado: um processo A causa um processo B, que causa um processo C, que, por sua vez, causa A. É o que ocorre, por exemplo, no fluxo circular que a água percorre sob ação da radiação solar em uma garrafa de vidro fechada e preenchida até a metade (Figura 2).

Figura 2: Fechamento de processos no fluxo circular que a água percorre sob ação da radiação solar em uma garrafa de vidro fechada e preenchida até a metade: (1) a radiação solar atravessa as paredes da garrafa e aquece a água; (2) ao atingir uma determinada temperatura, a água começa a evaporar; (3) o vapor d’água, depois de subir, condensa no topo da garrafa e cai como água líquida; (4) que fica novamente sujeita à evaporação. Autora da figura: Clarissa Leite.

A ciclagem das moléculas de água dentro da garrafa é um fluxo termodinâmico, físico-químico, circular, limitado apenas por entidades externas, a exemplo do vidro. O vidro atuam, então, como uma restrição externa, que não é regenerada pelo fluxo termodinâmico cíclico da água. No caso de um fechamento de processos, as restrições são apenas externas, não dependendo da dinâmica sobre a qual atuam, como no exemplo acima. Em vez de apenas uma cadeia circular de processos influenciada por restrições externas, sistemas biológicos produzem restrições internas, que atuam sobre seus próprios processos e, assim, exibem dois regimes causais distintos, mas interdependentes: um regime termodinâmico aberto de processos e reações e um regime fechado de dependência entre componentes que agem como restrições. Isso é o que significa dizer que esses sistemas são termodinamicamente abertos e organizacionalmente fechados.

De acordo com a teoria da autonomia biológica, funções são sempre atribuídas a componentes que atuam como restrições internas a um sistema vivo. Usando um exemplo clássico nos debates sobre funções, podemos considerar o coração para explicar o que significa atribuir função a uma restrição de acordo com essa teoria. O coração é uma parte constitutiva de muitos animais que tem a função de bombear sangue. Interpretado nos termos da teoria da autonomia biológica, pode-se afirmar que, ao bombear sangue, o coração atua como uma restrição. Primeiro, porque o bombeamento de sangue pelo coração tem o poder causal de alterar, por exemplo, a distribuição de gases e nutrientes num corpo animal, no sentido específico de que diminui os graus de liberdade desse processo de distribuição (o que ocorre, claro, com a contribuição de várias outras restrições, a exemplo de todo o conjunto de artérias, arteríolas, capilares etc.). Segundo, considerando-se que leva cerca de um minuto para o sangue circular por todo o corpo de um ser humano (a título de exemplo), podemos perceber que, na escala temporal em que o coração, ao bombear sangue, restringe a distribuição de gases e nutrientes no corpo, ele se mantém conservado (assim como as artérias, arteríolas, capilares), no preciso sentido de que ele não sofre alterações nas propriedades relevantes para sua atuação como restrição que sejam devidas ao processo de circulação do sangue, naquela escala temporal.

A atribuição de uma função a uma restrição, conforme essa teoria, se apoia exatamente no papel causal que um determinado componente de um sistema exerce, como restrição, em processos vitais de um sistema vivo, dentro do fechamento de restrições que caracteriza sua organização. Isso implica que esta parte contribui para a manutenção da organização do corpo e é, ao mesmo tempo, mantida graças ao papel de outras restrições e desta organização mesma. Apliquemos novamente isso ao caso do coração. Ao bombear sangue e, assim, atuar como uma restrição sobre a distribuição de gases e nutrientes, o coração contribui para a manutenção e existência de todas as outras partes do corpo, bem como do próprio organismo, o que, por sua vez, contribui para a manutenção e existência do próprio coração. Retomando algo que explicamos acima, o fechamento de restrições destaca exatamente essa característica dos sistemas biológicos: que seus componentes constitutivos e operações dependem uns dos outros para sua manutenção e, além disso, contribuem coletivamente para determinar as condições sob as quais o próprio sistema pode existir.   

Na teoria da autonomia biológica, as restrições que são produzidas sob influência de outras restrições são chamadas de dependentes, enquanto aquelas que participam do processo de produção de outras restrições, são chamadas de possibilitadoras. Para fazer parte do fechamento de restrições, uma restrição deve ser tanto dependente, quanto possibilitadora. Mas, e nos casos em que as restrições são apenas dependentes ou apenas possibilitadoras? As restrições que são exclusivamente possibilitadoras ou dependentes estabelecem conexões entre o sistema vivo e outros sistemas (vivos ou não), que ou constituem seu ambiente, ou se situam em níveis físico-químicos de processos internos aos seres vivos. Isso quer dizer que, para caracterizar um sistema como organizacionalmente fechado, não há a necessidade de afirmar que todas as restrições que agem na dinâmica do sistema são parte do fechamento. Mostra também que falar de fechamento organizacional não implica defender alguma independência do sistema vivo em relação ao ambiente. Um sistema que realiza fechamento organizacional de restrições é um sistema fisicamente aberto, inerentemente acoplado ao ambiente com o qual troca energia e matéria. Sem essa conexão com outros sistemas e sem troca de matéria e energia, o sistema vivo não tem como se auto-manter.

A explicação organizacional da teoria da autonomia biológica vem sendo construída desde os anos 1990, focando sobretudo sobre células e organismos. Enzimas e órgãos, como o coração, foram alguns dos exemplos usados para explicar como partes de sistemas vivos assumem funções quando atuam como restrições (p. ex., enzimas catalisando reações em células e, assim, diminuindo seus graus de liberdade; e órgãos, como o coração, diminuindo os graus de liberdade de processos como a distribuição de gases e nutrientes em determinados organismos). Em 2014, três pesquisadores aplicaram a explicação organizacional proposta por essa teoria a sistemas ecológicos, argumentando que as funções que componentes de sistemas ecológicos desempenham em processos ao nível do ecossistema como um todo podem ser entendidas como efeitos precisos (diferenciados) de componentes bióticos (vivos) ou abióticos (inanimados) que atuam como restrições sobre fluxos de matéria e energia nos ecossistemas. Isso demanda que os ecossistemas exibam uma organização que seja entendida em termos de um fechamento de restrições. Nunes-Neto, Moreno e El-Hani usaram para desenvolver a teoria o fitotelma de uma bromélia como modelo de um sistema ecológico organizacionalmente fechado, considerando as relações de predação e decomposição estabelecidas em uma teia alimentar interna a ele, envolvendo uma espécie de aranha, larvas de mosquitos e microorganismos, o que resulta numa diminuição dos graus de liberdade do fluxo de átomos como os de nitrogênio. O modelo foi representado com dois níveis hierárquicos, um relativo ao fluxo dos átomos e outro relativo aos papéis dos componentes bióticos que atuam como restrições. Essa proposta original deu os primeiros passos para a construção de uma teoria organizacional das funções ecológicas, que vem sendo aprimorada desde então.

Teoria organizacional das funções ecológicas e a formação de nuvens nos oceanos

Alguns anos depois, El-Hani e Nunes-Neto abordaram a transição de um mundo pre-biótico – composto de sistemas puramente físico-químicos – para um mundo controlado pela vida, com base na teoria organizacional. Eles descreveram como o sistema de formação de nuvens nos oceanos não resulta apenas de uma sequência de eventos físico-químicos relacionados à evaporação e precipitação da água (i.e., não resulta apenas de um fechamento de processos). Há uma participação ativa e decisiva de uma rede de interações de organismos marinhos, em especial do fitoplâncton, que levam à secreção de uma substância sulfurosa, o dimetilsulfureto (DMS), que contribui para a formação de núcleos de condensação de nuvens sobre o oceano, em um processo semelhante àquele que ocorre no continente envolvendo aerossóis liberados pelas florestas, tal como explicamos acima. Quando as nuvens precipitam, a chuva traz para o oceano precursores do dimetilsulfureto, que se tornam disponíveis para o metabolismo dos organismos marinhos, fechando, então, o ciclo estabelecido entre eles e a formação de nuvens. Como observado por estes autores, é importante notar que existe uma relação de dependência mútua entre a microbiota marinha e as nuvens, que pode ser entendida em termos de sua atuação como restrições, em escalas temporais específicas, sobre processos físico-químicos e, mais especificamente, como restrições dependentes e possibilitadoras no controle que o sistema exerce sobre o fluxo do dimetilsulfureto. A microbiota depende do enxofre depositado pela precipitação das nuvens e carreado pelos rios, assim como as nuvens dependem do enxofre derivado do dimetilsulfureto produzido pelo fitoplâncton. Assim, os autores propõem que a teoria organizacional das funções ecológicas oferece uma fundamentação consistente para explicar a transição de um fechamento de processos, no qual os ciclos do enxofre e da água correspondiam somente a uma sequência fechada de estados dinâmicos físico-químicos, para um sistema caracterizado por um fechamento de restrições, no qual a vida passa a exercer controle sobre estes dois ciclos. Se generalizarmos esse argumento, podemos chegar, então, a uma tese central da teoria Gaia, a de que, quando os seres vivos passaram a controlar parte importante dos processos físico-químicos planetários, passamos de um mundo controlado somente por processos físico-químicos a um mundo controlado pela vida.

Nesse texto sobre a relação da vida marinha com a formação de nuvens nos oceanos, El-Hani e Nunes-Neto tratam da atribuição de funções ecológicas a componentes inanimados ou abióticos. No entanto, para incluí-los como itens funcionais, eles devem, assim como os itens bióticos, atender a um critério fundamental da teoria: estar sujeitos ao fechamento, ou seja, atuar como restrições internas à organização do sistema e, portanto, sob seu controle. Como vimos anteriormente, ser uma restrição interna à organização do sistema quer dizer, segundo essa teoria, que o componente (nesse caso, abiótico) deve ser uma restrição dependente e possibilitadora. Caso não sejam restrições internas ao fechamento organizacional, não se pode atribuir funções ecológicas a esses componentes. Note-se, contudo, que eles ainda podem ser considerados relevantes na dinâmica do sistema ecológico, já que podem agir como restrições externas que afetam seus processos, mesmo não sendo parte de sua organização interna. 

Explorando um outro caso em um texto ainda não publicado, os proponentes dessa abordagem explicam que, em ecossistemas savânicos, o controle exercido por espécies de plantas adaptadas ao fogo, por meio de características relacionadas à sua inflamabilidade, i.e., à facilidade com que entram em combustão, é um exemplo de como uma restrição anteriormente externa ao sistema (o próprio fogo) pode passar a fazer parte de sua dinâmica interna, quando colocada sob controle de sua organização. Quando o fogo é integrado à dinâmica do ecossistema por meio de espécies de plantas adaptadas a ele, que exibem características de inflamabilidade e influenciam sua frequência, ele passa a ter um papel construtivo na dinâmica do ecossistema. O fogo passa a ser uma restrição possibilitadora nos ecossistemas savânicos por seu papel nos processos de rebrotamento das plantas e é, ao mesmo tempo, uma restrição dependente, na medida em que sua produção depende, em parte, das espécies de plantas adaptadas a ele. Nesses casos, pode-se até falar em coevolução do fogo e da biota. Quando o fogo não está sob controle do sistema, ele não age como uma restrição funcional interna ao mesmo, mas apenas como uma restrição externa, que age sobre componentes do ecossistema, mas sem estar sob controle de sua organização, o que pode ser uma razão para que o fogo tenha um papel destrutivo.

Mas além da relação entre os organismos marinhos, a água e o enxofre nos oceanos, bem como das plantas com o fogo em ambientes savânicos, como a teoria organizacional das funções ecológicas poderia explicar a relação entre as florestas e a chuva nos continentes?

Teoria organizacional das funções ecológicas e o ciclo hidrológico continental

A partir dos argumentos apresentados acima, podemos refletir sobre o caso do ciclo hidrológico continental, o qual abordamos no começo desse texto. Seria este também um caso de fechamento organizacional de um sistema ecológico, no qual as árvores assumem papel funcional crucial nas trocas entre o continente e a atmosfera? Assim como no exemplo do coração, tomando como base a explicação organizacional, podemos entender que as árvores são parte constitutiva do sistema hidrológico nos continentes e têm a função de controlar trocas entre o continente e a atmosfera. Mais especificamente, elas restringem o fluxo de água, energia, carbono e outros elementos entre esses dois ambientes. Ao fazerem isso, elas contribuem para a manutenção e existência de outras partes (por exemplo, as nuvens, a água) do sistema hidrológico nos continentes, bem como para a manutenção e existência do próprio sistema e de si mesmas.

Além disso, podemos dizer que a água em florestas úmidas seria inicialmente uma restrição externa, mas teria sido recrutada, como restrição possibilitadora e dependente, para compor a organização interna desses ecossistemas, assim como no caso do fogo em ecossistemas savânicos? A água é considerada um dos principais agentes modeladores em florestas úmidas, afetando a distribuição, fisionomia e diversidade de espécies características desses ecossistemas. A água pode desempenhar, então, funções relevantes nos processos ecossistêmicos de uma floresta úmida, enquanto está sob o controle de restrições internas à sua organização, como as plantas. Por exemplo, características das plantas podem determinar diferentes volumes de evapotranspiração e modular a emissão de aerossóis nucleadores de nuvens nesses ecossistemas. Esses aspectos interagem com outros fatores do clima, determinam o volume de água que circula no sistema e influenciam o regime de chuvas no continente. Uma vez que a água precipita, sua participação na germinação das sementes é de fundamental importância. E são as plantas que germinam dessas sementes que então irão evapotranspirar e emitir aerossóis para a formação de mais chuva, fechando o ciclo.

Se a Floresta Amazônica e a água são restrições no fechamento organizacional do sistema hidrológico continental, podemos interpretar que elas determinam não apenas a manutenção e existência uma da outra, como também do próprio sistema. Sendo assim, a afirmação que podemos fazer, seguindo a teoria organizacional das funções ecológicas, é que as florestas crescem onde chove e chove onde crescem florestas. Assim como nos oceanos, em algum momento da história evolutiva da Terra ocorreu, nos continentes, a transição de um fechamento de processos para um sistema caracterizado por um fechamento de restrições, ou seja, para um mundo controlado pela vida em que as plantas passaram a atuar como agentes facilitadores, mas também dependentes do sistema hidrológico continental. 

Clarissa Machado Pinto Leite (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares em Ecologia e Evolução – INCT IN-TREE, Universidade Federal da Bahia)

Jeferson Gabriel da Encarnação Coutinho (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia/IFBA, Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares em Ecologia e Evolução – INCT IN-TREE, Universidade Federal da Bahia)

PARA SABER MAIS

Gorshkov, VG, Makarieva AM. Biotic Regulation: Main Page. Disponível em: <https://www.bioticregulation.ru/>. Acesso em: 21 de agosto de 2023.

<Nasa Global Tour of Precipitation in Ultra HD (4K) – Youtube. 2016. Youtube NASA Goddard, 20 de maio de 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=c2-iquZziPU/>. Acesso em: 21 de agosto de 2023.

Nobre AD, 2014. O Futuro Climático da Amazônia, Relatório de Avaliação Científica. Patrocinado por ARA, CCST-INPE, e INPA. São José dos Campos, Brasil, 42p.

Pearce, F. 2020. Weather Makers. Science (American Association for the Advancement of Science) 368.6497: 1302-305. Acesso em: 21 de agosto de 2023.

Rios Voadores. 2013. Disponível em: <https://riosvoadores.com.br/> Acesso em: 21 de agosto de 2023.

Amazônia: Uma “causa” perdida?

O estudo da degradação da Amazônia, para além do desmatamento, revela o impacto significativo das ações humanas sobre a degradação florestal e alerta para as consequências desastrosas, a curto, médio e longo prazo.

Foto: Jonathan Lewis, Wikipedia.

No final de janeiro desse ano, uma das revistas científicas mais influentes da atualidade dedicou a sua matéria de capa ao desmatamento da Amazônia. A foto escolhida para a capa destaca o contraste chocante entre o verde da floresta e o marrom-verde-acinzentado das áreas desmatadas para uso humano. Esse número da revista traz dois artigos de revisão que destrincham as causas e consequências do desmatamento, assim como o ritmo atual de degradação da floresta (acesse esses artigos aqui e aqui). Juntos, esses artigos têm a coautoria de mais de 40 pesquisadores do Brasil e do mundo. E é a alguns dos principais pontos discutidos nessas revisões que dedicarei esse post.

Faz tempo que cientistas chegaram a um consenso a respeito do papel ecológico da Amazônia. A região amazônica, com sua incrível floresta e seus vários ecossistemas associados, contribui significativamente para o clima, a biodiversidade, o bem estar e a sobrevivência das comunidades locais e da humanidade de forma global. Além disso, florestas tropicais são locais importantes para a dinâmica do carbono, comportando-se como emissoras de carbono, especialmente quando submetidas ao desmatamento, ou como armazenadoras de carbono. Por exemplo, a Amazônia armazena aproximadamente 180Gt de carbono, na forma de biomassa vegetal e nos solos, o equivalente a 26% de todo o carbono emitido para a atmosfera por atividades humanas desde a Revolução Industrial (entre 1750 e 2020). A real dimensão da importância ecológica da floresta pode também ser entendida com a ajuda de uma simples métrica: riqueza de espécies. A Amazônia é, sem dúvida, o ecossistema de escala subcontinental mais rico do planeta: ela abriga cerca de 1/3 de todas as espécies conhecidas, incluindo mais de 10% de todas as espécies conhecidas de plantas e vertebrados, concentradas em apenas 0,5% da superfície terrestre. Isso sem contar as milhares de espécies ainda desconhecidas para a ciência.

Mas, junto com as calotas polares e os recifes de coral, a Amazônia está entre os maiores ecossistemas em rápida mudança em direção a um estado de degradação. Há inclusive aqueles que argumentam que já ultrapassamos esse limite. Embora o desmatamento esteja diretamente relacionado à derrubada da floresta em si e à utilização da área desmatada para outros fins, a degradação ambiental não requer, necessariamente, a derrubada da floresta. Alguns outros distúrbios que resultam em degradação ambiental incluem, por exemplo, os efeitos de borda, a extração seletiva de madeira, as queimadas e as secas severas decorrentes das mudanças climáticas. Eles resultam em mudanças deletérias, transitórias ou permanentes, nas funções, nas propriedades ou nos serviços ecossistêmicos, como alterações na reserva de carbono, na produtividade biológica, na composição de espécies, na estrutura da floresta, na umidade atmosférica, assim como nos usos e valores da floresta para os humanos. Apesar de a maior parte dos estudos na Amazônia até então focar especificamente no desmatamento, a degradação e o desmatamento são processos independentes e suas causas e consequências precisam ser cuidadosamente estudadas. Só assim, os cientistas argumentam, teremos um panorama mais claro tanto em termos das propostas e prioridades de conservação e manejo da floresta, quanto em termos da modelagem da resiliência da floresta frente a variados impactos.

A análise aprofundada da degradação da Amazônia para além do desmatamento, entre os anos de 2001 e2018, aponta para o fato de que 5.5% da floresta está sofrendo algum tipo de distúrbio ou degradação, o que corresponde a mais do que 110% da área desmatada durante o mesmo período. Quando secas extremas são incluídas na análise, o total de áreas degradadas chega a 38% da floresta remanescente. E, se somadas ao longo das décadas, a perda de carbono para a atmosfera decorrente da degradação da Amazônia pode ser equivalente ou até maior do que aquela diretamente decorrente do desmatamento. As projeções iniciais para 2050 apontam que os distúrbios, principalmente decorrentes da ação humana na Amazônia, continuarão a ter grande impacto na degradação da floresta e contribuirão para o aumento da quantidade de carbono na atmosfera, de forma independente da trajetória do desmatamento. Além disso, muitos desses distúrbios têm efeitos de longa duração. Por exemplo, a mortalidade de árvores e consequente liberação de carbono para a atmosfera resultante da degradação da floresta pode ocorrer durante décadas após o distúrbio inicial.

A Figura 1 compara as dimensões espaciais e temporais de mais de 50 atividades humanas e processos naturais de escalas mundial e regional (América do Sul). Claramente, as atividades humanas atingem escalas espaciais semelhantes aos processos naturais de maneira mais rápida. Considerando que o gráfico da Figura 1 está em escala logarítmica, a velocidade das atividades humanas é maior do que aquela dos processos naturais em algumas ordens de magnitude! Essa capacidade de ação rápida e em larga escala de muitas atividades humanas é o que resulta, em muitos casos, em degradação ambiental, pois os processos naturais de regeneração e resiliência não operam na mesma velocidade.

Figura 1: Escalas temporal e espacial das atividades humanas e dos processos naturais, ambos de repercussão global. As atividades humanas, tanto em escala mundial quanto regional (América do Sul), ocorrem em taxas muito maiores do que os processos naturais. A velocidade e a dimensão das atividades humanas são maiores do que a capacidade de recuperação ambiental por processos naturais. Modificado a partir de Albert, J.S. et al. Science 2023.

Infelizmente, os ganhos materiais a curto prazo decorrentes das principais causas desses distúrbios, como a agricultura ou a ação de madeireiras, beneficia poucos atores regionais e globais, enquanto o fardo permanece para diversos grupos sociais em várias escalas. Mas, o que fazer frente a tamanho desafio? Ambos os artigos de revisão trazem análises importantes a respeito das medidas necessárias para frearmos essa degradação. Por exemplo, enquanto alguns distúrbios, como os efeitos de borda, podem ser minimizados com o controle do desmatamento, outros distúrbios, como as secas extremas, requerem medidas que promovam o engajamento de atores globais na redução das emissões de gases de efeito estufa. Assim, as ações sugeridas pelos cientistas variam desde a necessidade de um novo enquadramento legal para lidar com o manejo e a proteção da Amazônia, até a necessidade de uma nova matriz energética de viés sustentável e com menor impacto ambiental. Os cientistas apontam também para a necessidade de identificação de ações prioritárias, assim como legislação ambiental alinhada a essas ações, além da necessidade de uma visão bioeconômica para a Amazônia que reconheça o valor da floresta em si, não apenas em pé, mas também saudável, a curto, médio e longo prazo.

Sem dúvida, a abordagem desse problema real, complexo e de proporções subcontinentais precisa levar em consideração ações diversas, nas diversas escalas local, regional e global e seus respectivos atores sociais.  Mas a mensagem, unânime entre centenas de cientistas, comunidades locais e outros especialistas, é clara: as atividades humanas na Amazônia têm resultado em mudanças ambientais drásticas e muito rápidas, que não permitem a recuperação e sobrevivência desse ecossistema. A degradação da Amazônia traz impactos significativos e irreversíveis para o clima global e afeta de maneira desproporcional, ao menos inicialmente, as comunidades locais que dependem da floresta para sua sobrevivência. A médio e longo prazo, no entanto, os efeitos da degradação da Amazônia terão efeitos globais e, em muitos casos, irreversíveis.

Ana Almeida

(California State University East Bay, CSUEB)

Para saber mais:

Amigo, I. 2020. When will the Amazon hit a tipping point? Nature 578, 505-507. doi: https://doi.org/10.1038/d41586-020-00508-4

Antonelli, A. et al. 2018. Amazonia is the primary source of neotropical biodiversity. PNAS 115 (23), 6034-6039. https://doi.org/10.1073/pnas.1713819115

Franco-Solís, A; Montanía, C. 2021. Dynamics of deforestation worldwide: A structural decomposition analysis of agricultural land use in South America. Land Use Policy 109, 105619.

Radchuck, V. et al. 2019. Adaptive responses of animals to climate change are most likely insufficient. Nat Commun 10, 3109. https://doi.org/10.1038/s41467-019-10924-4 Science Panel for the Amazon. 2021. Amazon Assessment Report 2021. Nobre C, Encalada A, Anderson E, Roca Alcazar FH, Bustamante M, Mena C, Peña-Claros M, Poveda G, Rodriguez JP, Saleska S, Trumbore S, Val AL, Villa Nova L, Abramovay R, Alencar A, Rodríguez Alzza C, Armenteras D, Artaxo P, Athayde S, Barretto Filho HT, Barlow J,
Berenguer E, Bortolotto F, Costa FA, Costa MH, Cuvi N, Fearnside PM, Ferreira J, Flores BM, Frieri S, Gatti LV, Guayasamin JM, Hecht S, Hirota M, Hoorn C, Josse C, Lapola DM, Larrea C, Larrea-Alcazar DM, Lehm Ardaya Z, Malhi Y, Marengo JA, Melack J, Moraes R M, Moutinho P, Murmis MR, Neves EG, Paez B, Painter L, Ramos A, Rosero-Peña MC, Schmink M, Sist P, ter Steege H, Val P, van der Voort H, Varese M, Zapata-Ríos G (Eds). United Nations Sustainable Development Solutions Network, New York, US.

Pensando sobre nossas relações com a natureza e aprendendo com o pensamento ameríndio

Valores relacionais são elementos centrais em nossa relação com a natureza. Eles têm sido entendidos a partir de tipologias de modos de relação humano-natureza, uma das quais abordarei nessa postagem. Farei um contraponto entre modos característicos do mundo moderno e contemporâneo, como os modelos de dominação e de isolamento, e outras visões que diluem a distinção entre mundo social e natural, em especial, o modelo de troca ritualizada, característico do pensamento ameríndio. Ao fazê-lo, questionarei como e o que podemos aprender a nos defrontarmos com essa forma de entender a natureza tão distinta da nossa.

Cacique Raoni Metuktire (Kapot, Mato Grosso, c. 1932), liderança indígena que subiu rampa do planalto em janeiro de 2023, junto com Lula, ao ser empossado presidente do Brasil pela terceira vez. Foto de Valter Campanato/ABr, CC BY 3.0 BR <https://creativecommons.org/licenses/by/3.0/br/deed.en&gt;, via Wikimedia Commons, https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Cacique_Raoni_(2013).jpg  

Valores intrínsecos, instrumentais e relacionais na conservação

Um dos aspectos centrais nas reflexões sobre práticas e políticas de conservação da natureza diz respeito aos nossos valores e às nossas atitudes frente à natureza. A partir dos anos 1980, na esteira do crescimento dos movimentos ambientalistas, a reflexão a este respeito foi, na maior parte do tempo, estruturada em torno da dicotomia entre valor intrínseco e valor instrumental. A biologia da conservação teve origem naquela década, sendo inicialmente concebida como uma ciência orientada para uma missão. Os biólogos da conservação sustentavam, em sua maioria, que a natureza e os seres vivos deveriam ser conservados por seu valor intrínseco, ou seja, pelo valor que eles têm simplesmente porque são o que são, porque são intrinsecamente valiosos, e não apenas porque têm valor como meio para que se faça alguma outra coisa.

Naquela mesma década, contudo, a pauta ambientalista foi sendo absorvida pelo sistema capitalista de produção e consumo, que buscou uma conciliação entre seu modus operandi e as demandas de conservação, através de fóruns internacionais de tomada de decisão, capitaneados pela ONU, que culminaram com a introdução do conceito de desenvolvimento sustentável. Este conceito, que rendeu bem mais desenvolvimento do que conservação desde então, foi introduzido no relatório Brundtland e consolidado a partir da Rio 1992. Este processo resultou no reforço do valor instrumental da natureza e dos seres vivos e não-vivos, que, no fundo, acompanha o projeto da modernidade desde sua origem – e, inclusive, remonta a tempos mais antigos, como podemos ver em várias religiões ocidentais que também atribuem valor à natureza e aos demais seres principal ou exclusivamente devido aos benefícios que trazem a nós, humanos.  Com a expansão do neoliberalismo, os valores instrumentais ganharam peso cada vez maior, dominando o cenário político e também o cenário científico, a partir de noções como as de desenvolvimento sustentável e de serviços ecossistêmicos. Se ainda persistiu um debate acadêmico em torno da dicotomia valor intrínseco-valor instrumental, nos mais variados meios sociopolíticos o valor instrumental predominou vigorosamente.

Contudo, surgiu recentemente, no campo da conservação, uma tendência conceitual que busca superar a dicotomia intrínseco-instrumental a partir da ideia de valores relacionais, que não operam isolados como valores, mas são elementos de modos de relação humano-natureza. Valores relacionais podem ser instrumentais e podem ser não-instrumentais, o que supera a dicotomia, ao incorporar a ideia de contribuição para os humanos como um elemento apenas dos valores relacionais, que ganha maior ou menor saliência a depender do modo de relação humano-natureza.

Modos de relação humano-natureza

A ideia de valores relacionais levou à construção de tipologias de modos de relação humano-natureza. Não descreverei aqui diferentes tipologias, com os modos de relação que identificam, mas apenas enfocarei alguns modos abordados pelo pesquisador brasileiro Roldan Muradian e pelo pesquisador basco Unai Pascual, em um artigo importante a este respeito.

Dois modos de relação identificados por estes autores são bem característicos do mundo europeu e do mundo colonizado que resultou de sua expansão. Um deles é o modelo de dominação, no qual há uma distinção clara entre mundo social e mundo natural, e, logo, entre humano e natureza, e a natureza é tratada como subordinada aos humanos, algo que atravessa das religiões dominantes no mundo europeu até o sistema político e de produção e consumo capitalista, que se afirmou desde a modernidade. A partir desse modelo, a natureza é entendida como uma ameaça que deve ser colocada sob controle, para servir aos humanos.

Outro modelo é o de isolamento, que mantém a distinção entre mundo social e natural, mas, para além disso, com a crescente urbanização, desacopla de tal maneira os humanos da natureza que esta última termina por tornar-se invisível. Há uma indiferença em relação à natureza e um entendimento de que ela não seria importante, malgrado nossa completa dependência dela. Mas há tantas mediações intervindo nessa dependência que a natureza se torna, para muitos habitantes dos meios urbanos, algo praticamente inexistente. Este é um modo de relação que tem sido favorecido pela ausência de experiências de natureza, especialmente entre os moradores de centros urbanos.

Esses dois modelos se contrapõem a outros que me interessam particularmente nessa postagem, porque diluem a distinção entre mundo social e natural, por exemplo, os modelos da devoção e de troca ritualizada.

No modelo de devoção, característico de culturas e religiões orientais, a natureza é entendida como uma divindade e colocada em posição hierarquicamente superior aos humanos, com uma percepção da natureza como sagrada e como meio para uma transcendência que pode unificar-nos a ela.

O modelo de troca ritualizada, por sua vez, é característico do pensamento ameríndio, que, apesar de sua diversidade, exibe também uma unidade nos diferentes povos originários das Américas, em virtude de sua origem comum (em sua maioria).

Modelo de troca ritualizada e pensamento ameríndio

No modelo de troca ritualizada, todos os seres da natureza são tratados como iguais, sem excetuar os humanos. Todos os seres da natureza são tratados como capazes de agência, de interagirem uns com os outros nos mesmos termos, como diferentes gentes. Em vez de uma visão uninaturalista e multiculturalista, dominante na modernidade ocidental e herdada por nós, há entre os ameríndios uma visão uniculturalista e multinaturalista. Todos os seres são gentes e têm suas linguagens, mas todas as linguagens usam as mesmas palavras, embora estas se refiram de maneira diferente às coisas no mundo. A mesma palavra que para nós significa sangue, para a onça significa cauim (uma bebida alcoólica tradicional dos povos ameríndios, feita através da fermentação alcoólica da mandioca ou do milho). É por isso que onde vemos lama, a anta vê sua maloca cerimonial, onde dança em seus rituais.

Muitas vezes, as pessoas pensam na visão de natureza dos ameríndios como se fosse a de um mundo em harmonia. Mas harmonia é um conceito nosso por demais. O mundo que os ameríndios percebem e experienciam parece bem mais complicado do que isso. Porque se todos os seres são gentes, toda relação no mundo natural é uma relação social, com toda a complexidade que uma sociedade traz, ainda mais povoada por gentes tantas e tão diversas. Ali as relações devem ser cuidadosas e é desse cuidado que segue o que nós, mais uma vez usando categorias que são nossas, chamamos por vezes de sustentabilidade da vida dos povos ameríndios. As trocas ritualizadas têm um papel central no modo de relação com a natureza desses povos exatamente porque elas mediam, de maneira fundamental, todo o cuidado que é preciso ter em todas essas relações. Ao nos referirmos a trocas ritualizadas, estamos tratando de situações nas quais humanos atribuem capacidade de agência a entidades naturais e, a partir disso, se envolvem em relações com elas que são regidas por códigos ritualizados de igualdade, equilíbrio e reciprocidade.

Considerem, por exemplo, os Runa, povo ameríndio da Amazônia equatoriana, com quem o antropólogo Eduardo Kohn trabalhou, tendo publicado sobre eles o livro Como pensam as florestas. Nas trocas ritualizadas desse povo ameríndio com a natureza em que vivem, eles entendem as florestas como seres pensantes. Em princípio, temos aí uma alteridade radical, como chamam os antropólogos as diferenças tão radicais na percepção e no entendimento do mundo, no que os filósofos chamam de ontologia, que se torna difícil traduzir de uma visão a outra. Para a modernidade ocidental, nós e possivelmente alguns outros poucos animais somos seres pensantes. Uma floresta, jamais!

Aprendendo a partir da diferença radical

Eu tenho trabalhado com um arcabouço teórico acerca das relações entre formas de conhecimento que tem como um de seus elementos perguntar como podemos aprender a partir de situações de diferença, de alteridade radical. E a resposta que temos dado é que aprendemos quando essas diferenças radicais desafiam nossos modos de percepção e entendimento, desafiam de tal modo, com tanta intensidade, que inauguram visões que, se impossíveis antes, agora são por nós ao menos contempláveis, dignas de atenção.

Isso foi exatamente o que aconteceu comigo quando me deparei com a ideia das florestas pensantes. Pus-me a pensar sobre como o próprio modo como entendemos a nós mesmos e ao nosso pensamento é marcado pelos modelos de relação humano-natureza ocidentais modernos. Descartes propôs, no nascimento do racionalismo moderno, que o ponto primeiro de toda a compreensão residia na afirmação “Penso, Logo Existo”. Mas, ora, isso é o contrário da ideia de que todos os seres da natureza devem ser tratados como iguais, sem excetuar os humanos. O pensamento seria a marca de nossa existência e somente isso, a mente – atributo da alma –, nos tornaria humanos. No mais, seríamos uma máquina, e todos os seres vivos, não tendo almas e mentes, não seriam iguais, mas inferiores, máquinas somente. Estamos aí muito longe da ideia de um mundo povoado por gentes tantas e tão diversas, marca central do pensamento ameríndio. Aliás, estamos longe também de outras ideias que informam modos de viver outros, como a ideia de Ubuntu, central em grande parte do pensamento africano, “Eu sou, porque nós somos”. Não, eu não sou porque nós somos, diria o moderno, eu sou porque eu penso. Mas, ora, isso é tão próprio de como nós, ocidentais modernos, pensamos o mundo todo a partir de nosso próprio umbigo, afirmando-se o homem desde a Renascença como centro do mundo, dentro de um contexto de crescente individualismo.

Ao longo da modernidade, tipicamente entendemos desta maneira o pensamento e a cognição (os processos mentais pelos quais adquirimos conhecimento e entendimento através do pensamento, da experiência e dos sentidos). Aliás, nós os entendemos também muito sob a influência de Descartes. Pensamento e cognição teriam o cérebro como sua sede e, a partir do cérebro, nós perceberíamos nosso corpo e o ambiente ao redor, criando representações deles no interior do cérebro. É bem assim que entendemos a nós mesmos, filhos e filhas que somos da modernidade ocidental.

Mas, vejam bem, eu me ponho a pensar, provocado pelo pensamento ameríndio, e aí, ao me ver desafiado a considerar as florestas pensantes, me encontro comigo mesmo, no sentido de que me vejo de repente numa posição que tem sido minha, dado que há muito rejeito o entendimento do pensamento e da cognição como se estivessem limitadas ao cérebro. Mas não me encontro idêntico ao pensamento ameríndio. Não! Ele me desafia a dar um passo a mais, antes para mim impensável. E é aí mesmo que está o aprendizado!

Entendo a cognição e o pensamento nos termos de uma corrente das ciências cognitivas que é chamada de “cognição situada”. Desde esta perspectiva, não é o cérebro apenas, ou mesmo em si, que é a sede do pensamento e da cognição. Pensamento e cognição são fundamentalmente incorporados, o que significa que pensamos e conhecemos não apenas com o cérebro, mas com todo o corpo. Ter uma mente não é, nesses termos, como ter um nariz, mas é como andar. Assim como andar, ter uma mente é relacionar-se com o mundo de certa maneira. E esta relação não é do cérebro com o mundo. É do corpo todo com o mundo. São os nossos sentidos, são os nossos movimentos, é a nossa pele…. É o corpo todo…

Mas é mais do que isso. Pensamento e cognição são também embebidos no mundo. Quando pensamos e conhecemos, exteriorizamos parte de nosso trabalho cognitivo no mundo. Nós ordenamos o mundo ao nosso redor para que possamos pensar e conhecer mais e melhor. Organizamos nossas gavetas para facilitar a escolha das roupas, exteriorizamos nossa memória em anotações espalhadas pelas casas, rotulamos o mundo com nossas palavras para facilitar saber o que é comida e o que é veneno, o que é predador e o que é presa…. Levamos isso aos últimos extremos, com mega-ordenações do mundo que exteriorizamos como se fossem representações, criando sistemas inteiros de pensamento, religiosos, científicos e outros…

Mas muitas vezes acabamos perdendo de vista que não se trata somente de perceber e representar o mundo. Trata-se de um conjunto de ações, de práticas, nas quais, incorporados e embebidos no mundo, pensamento e cognição emergem como modos de relação. Não se trata então de representar o mundo, mas de agir de certa maneira para produzir pensamento e cognição, relacionar-se de forma tão recorrente com o mundo em que exercemos nossas práticas de significação que até parece que estamos continuamente mobilizando mapas de nosso cérebro para entendê-lo. Mas não temos esses mapas como algo fixado em nossos cérebros. Vamos sempre mapeando o mundo enquanto andamos, ou enquanto navegamos por ele.

Esse modo de entender o pensamento e a cognição é dito anti-representacionalista porque dá sempre prioridade à ação e à prática situadas no mundo, que sempre são um navegar de nosso corpo embebido nas coisas. É que, como somos seres que aprendemos, a gente tende a navegar de modo recorrente, tão recorrente que até imaginamos que vivemos dentro de nosso cérebro, como o homúnculo cartesiano. Mas não é ali que vivemos. É no corpo embebido no mundo que vivemos.

Mas se seguimos por esse caminho e prestamos bem atenção ao lugar para onde estamos indo, olha que nós nos descobrimos já não tão distantes dos ameríndios! Estamos diluindo as fronteiras humano-natureza, humano-mundo! É verdade, com muita dificuldade, não com a naturalidade dos ameríndios. Mas isso é porque somos ocidentais modernos e desafiar essa visão da gente como um ser que vive, individual e isoladamente, dentro de nossa própria cachola é desafiar tudo que nós somos. Não é fácil. Mas este é exatamente o passo que somos instigados a dar quando levamos realmente a sério o pensamento ameríndio, por mais hesitante que este passo ainda seja.

Queria dar ainda uma palavra final, que é sobre construção de conhecimento. Quem constrói o conhecimento? Na visão ocidental moderna, a resposta é que, em princípio, nós construímos. Mas não apenas isso, porque há também, entre os modernos, os empiristas ingênuos, que consideram que o mundo está de alguma forma pré-rotulado, pré-conhecido, e o que nos cabe é descobrir os conhecimentos que lá estão. Afinal, é o conhecimento construção social e apenas isso? Ou é o conhecimento algo que descobrimos no mundo? O que penso é que estas não são perguntas a serem respondidas. Elas são perguntas a serem dissolvidas, porque se baseiam numa dicotomia a ser superada.

Se mudamos para uma visão de nosso ser, com seu pensamento e sua cognição, como sempre incorporado e embebido no mundo, podemos chegar à conclusão de que a construção do conhecimento se dá de todos os lados da relação. O conhecimento é co-construído por nós, humanos, com nossos corpos inteiros, e esse mundo que nos embebe. Assim, como nós, ativamente, executamos práticas que produzem significados sobre o mundo, o mundo não se apresenta a nós como uma tela branca em que podemos pintar o que quisermos. Não, o mundo é prenhe de significados. Assim, ele também é agente construtor do nosso próprio conhecimento sobre ele. Afinal, não haveria de ser diferente se nosso pensamento e nossa cognição estão embebidos no mundo! Eles são modos de relação através dos quais nós e o mundo construímos um modo de perceber e entender as coisas.

Não há dúvida de que eu começo sempre longe dos Runa e dos demais ameríndios, ocidental moderno que sou, mas, levando-os realmente a sério, eis que me encontro comigo mesmo no caminho, mas transformado pela aprendizagem que se seguiu de considerar a diferença radical não como fonte de rejeição, mas como fonte de ideias novas, tão novas para mim que há algum tempo atrás poderiam até parecer impensáveis.

Charbel N. El-Hani

(Instituto de Biologia/UFBA)

Produzido a partir de texto elaborado para oficina de imersão na natureza do projeto educacional Macaw Experiências de Natureza, na Reserva Legal Camurujipe, em 05/01/2023

PARA SABER MAIS

El-Hani, C. N. (2022). Bases teórico-filosóficas para o design de educação intercultural como diálogo de saberes. Investigações em Ensino de Ciências 27(1): 1-38.

Kohn, E. (2021). Como piensan los bosques. REUDE.

Muradian, R. & Pascual, U. (2018). A typology of elementary forms of human-nature relations: a contribution to the valuation debate. Current Opinion in Environmental Sustainability 35: 8-14.

Roth, W.-M. & Jornet, A. (2013). Situated cognition. WIREs Cognitive Science 4: 463-478.

Diálogos interdisciplinares: um caminho para pavimentar entendimentos mais profundos na modelagem em Ecologia

A modelagem de sistemas ecológicos requer passos que devem ser bem compreendidos por quem realiza a modelagem e por quem deseja entendê-la. A interface da Ecologia com a Filosofia contribui para o esclarecimento de conceitos, além de cumprir um papel heurístico na construção de processos de modelagem mais profundos e inteligíveis.

Da interação interdisciplinar, emergem entendimentos e novos questionamentos. Autor: Jeferson Coutinho.

Como o encontro entre uma filósofa da ciência e um ecólogo pode contribuir para o avanço de uma área da Ecologia? Temos algo a ganhar com esse diálogo? E se a resposta for “sim”, quem exatamente ganha nessa história? Foi na busca de uma solução para os problemas existentes em determinada área da Ecologia que um tal diálogo se iniciou, envolvendo o ecólogo Jeferson Coutinho e a filósofa da ciência Luana Poliseli. A questão central que impulsionou esse diálogo foi a tentativa de modelar conceitualmente sistemas ecológicos para entender mais claramente quais seriam as variáveis ambientais que mais influenciariam a diversidade funcional das abelhas nos agroecossistemas e suas repercussões para o serviço de polinização. Mais precisamente, a intenção era saber como a diversidade de atributos morfológicos, fisiológicos e comportamentais das abelhas poderiam afetar o serviço de polinização em sistemas agrícolas e como um sistema agrícola poderia funcionar como um filtro capaz de selecionar o conjunto de tais atributos disponíveis nesse tipo de sistema.

Esta questão central levantou várias outras questões acessórias que necessitavam de aprofundamento teórico para uma melhor compreensão do fenômeno de interesse. Algumas dessas questões foram: Como medimos a diversidade funcional em Ecologia? Que conceito de função usamos em estudos empíricos? Como entendemos a relação entre variáveis ​​ecológicas em diferentes escalas espaço-temporais? Todas essas questões exigiram uma exploração minuciosa do que já era conhecido na literatura ecológica, mas também demandaram análises da consistência teórica do que estava disponível para se trabalhar.

Notavelmente, também precisávamos encontrar uma maneira de modelar o sistema de interesse por meio de etapas pragmáticas, à luz de uma teoria da explicação consistente com o que estávamos procurando. Diante das necessidades expostas, a interação com Luana, com sua formação e experiência em filosofia da ciência, abriu campos de diálogo muito frutíferos, em particular se tivermos em vista a grande complexidade do sistema em análise. O primeiro avanço foi uma compreensão mais clara do que estávamos tentando analisar. No processo de modelagem teórica, é fundamental termos clareza sobre o que queremos modelar, apontando o contexto relevante do fenômeno. Nos encontros realizados, os questionamentos feitos por Luana serviram como balizadores para minha própria compreensão do fenômeno, pois era inevitável o uso de exemplos didáticos e analogias para uma melhor compreensão do que eu queria dentro da Ecologia. A cada nova indagação, o uso de recursos imagéticos e esquemáticos (Figuras 1 e 2) foi fundamental para estabelecer maior clareza sobre o que buscávamos modelar, requerendo explicações dos mecanismos subjacentes ao fenômeno de interesse, buscando-se compreender cada vez mais quais níveis de análise, ou seja, quantos e quais níveis mecanísticos e contextuais seriam importantes em nosso caso particular.

Figura 1: Primeiro esboço dos mecanismos subjacentes ao fenômeno que estávamos interessados em modelar. Nesse primeiro momento, havia noção de 3 escalas espaciais de interesse na modelagem do fenômeno ecológico, que tinha a intenção de propor um modelo preditivo sobre a estrutura funcional de uma comunidade de abelhas nativas, bem como acerca da manutenção de seus serviços de polinização em um agroecossistema. Do lado esquerdo, indicamos que há dinâmicas no nível das metacomunidades, na mancha de hábitat e no nível das flores individuais que são importantes filtros ambientais que determinam a estrutura funcional das comunidades de abelhas. Nesse momento, ainda não estavam claras as possíveis relações dentro de cada escala de observação (lado direito do diagrama), o que apontou para um caminho de busca de entendimento de relações complexas entre níveis de organização, escalas de observação, bem como fatores reguladores de populações e comunidades,  para que houvesse melhor entendimento do fenômeno de interesse.

Figura 2. Esboço dos mecanismos que ocorrem na escala da paisagem, considerando três dos seus descritores: proporção de agricultura, diversidade e configuração. Para cada descritor, são propostas previsões da diversidade funcional de abelhas em agroecossistemas, de acordo com os modelos de metacomunidades. A emergência do entendimento sobre esses mecanismos e a proposição dessas previsões se deram com o uso das heurísticas descritas no corpo do texto e ao longo de constantes interações com Luana Poliseli. Mais detalhes sobre os modelos de metacomunidades podem ser vistos em Leibold et al. (2004). Algumas dessas previsões sobre a configuração da diversidade funcional em agroecossistemas foram testadas e os resultados apresentados no artigo de Coutinho et al. (2021).

Nesse processo, Luana trouxe constantes contribuições à medida que se debruçava sobre meu próprio progresso na compreensão do fenômeno e a minha forma de estabelecer os pilares da modelagem. Detalhes sobre esta análise podem ser vistos em artigo publicado no ano de 2020, no qual ela apresenta um modelo sobre a emergência da compreensão científica, que expõe as principais características dessa compreensão, como sua formação gradual, sua relação entre habilidades e imaginação, e sua capacidade de seletividade do conhecimento disponível.

Contudo, entender o que queríamos modelar foi apenas o primeiro passo. Ao longo de nossas interações, sentimos a necessidade de utilizar uma teoria da explicação científica, apoiando-nos em entendimentos relativamente recentes sobre o uso de explicações mecanísticas na ciência, como podemos ver, por exemplo, em trabalho de John Matthewson e Brett Calcott. Essa escolha decorreu das possibilidades que essa abordagem nos deu para modelar fenômenos que envolviam processos operando em múltiplas escalas de espaço e tempo, bem como da perspectiva de que relações não-lineares aconteciam entre processos ocorridos nessas escalas. Pautamos a escolha em um estudo aprofundado e colaborativo da literatura da chamada nova filosofia da ciência mecanística, guiada por discussões que visavam entender a abordagem e como o fenômeno ecológico poderia ou não ser modelado de acordo com ela. Nesse processo dialógico, percebemos que o fenômeno a ser modelado era de grande complexidade e, consequentemente, uma explicação mecanística não poderia ser totalmente aplicada ao nosso fenômeno, ainda que pudesse – como o fez – desempenhar um papel heurístico, ou seja, de orientação na condução da modelagem dos processos relevantes para o entendimento do fenômeno de interesse.

O novo corpo de conhecimento produzido foi um conjunto de heurísticas construídas de acordo com a nova filosofia da ciência mecanística e com teorias ecológicas. Essas heurísticas tiveram papel fundamental na pesquisa, pois guiaram a atividade de modelagem teórica em Ecologia. Este conjunto de heurísticas é descrito e discutido no artigo Philosophy of science in practice in ecological model building (Filosofia da ciência na prática na construção de modelos ecológicos). Nesse trabalho, discutimos o desenvolvimento de uma estrutura conceitual que unifica a explicação mecanística, as ciências dos sistemas complexos e a teoria de metacomunidades para modelar a estrutura funcional de uma comunidade de abelhas nativas, bem como a manutenção de seus serviços de polinização em um agroecossistema. Além disso, empregamos a teoria organizacional das funções ecológicas para esclarecer os conceitos e processos mais elementares a serem entendidos em termos funcionais ao longo de nosso trabalho, bem como a busca de variáveis, escalas espaço-temporais e relações de causa e efeito que pudessem apoiar a modelagem do fenômeno ecológico.

As seguintes heurísticas tiveram papel central nesse trabalho interdisciplinar de modelagem ecológica:

1) Caracterização do fenômeno: a descrição do fenômeno a ser modelado e do que será considerado em sua explicação;

2) Esboço do mecanismo: o desenvolvimento de diagramas (geralmente incompletos e passíveis de mudança ou mesmo abandono ao longo do processo de modelagem) para representar as relações entre os referenciais teóricos e o fenômeno, como podem ser vistos nas Figuras 1 e 2;

3) Estrutura hierárquica: esta heurística permite visualizar a interação entre diferentes escalas espaciais e temporais, criando uma estrutura que identifica e localiza os (e a quantidade de) níveis em que o mecanismo (ou mecanismos) estão organizados na superestrutura do fenômeno;

4) Condições possibilitadoras: as variáveis ​​envolvidas nas atividades dos mecanismos sob investigação que são relevantes para a produção do fenômeno de interesse;

5) Distinção de componentes operacionais: essa heurística distingue os componentes e as funções das condições possibilitadoras dentro dos mecanismos envolvidos e especifica as relações e os limites entre esses componentes;

6) Mudança nos componentes operacionais: esta heurística permite explorar cenários alternativos e prever possíveis cursos distintos do sistema sob investigação, uma vez que os componentes operacionais sejam modificados;

7) Frequência de evidências: indica a causalidade entre os elementos das condições possibilitadoras, conforme informações probabilísticas e mecanísticas já disponíveis na literatura científica ou obtidas por meio das heurísticas anteriores, apontando, também, o que ainda carece de validação empírica;

8) Esquema do mecanismo: modelo mecanístico final, obtido após a utilização das heurísticas acima.

Esse conjunto de heurísticas auxiliou em diferentes momentos da elaboração do modelo teórico. Na primeira proposição do “esboço do mecanismo”, por exemplo, percebi que não conseguiria chegar a um esquema minimamente razoável de comunicação sobre o fenômeno e as variáveis ​​relevantes. A cada novo esboço de mecanismo, novos desafios e novas soluções foram se apresentando, o que exigia mais esforço para compreender o que estava posto na literatura científica sobre o tema, indicando suas limitações e agregando as evidências que já estavam disponíveis, bem como buscando esforços de sínteses das teorias e dos conceitos que foram mobilizados no trabalho. A heurística “estrutura hierárquica” também contribuiu para a delimitação de processos que interagem em diferentes escalas de espaço e tempo e permitiu uma compreensão adequada do fenômeno sob modelagem.

A cada novo passo na construção do modelo, eu precisava revisar a literatura ecológica de uma perspectiva mais crítica sobre o fenômeno. Não se pode construir um modelo conceitual se não se conhece o conjunto de variáveis ​​e as condições de interação entre elas ​que são relevantes para sua proposição. Isso não significa que devamos começar a proposição do modelo conhecendo todas as variáveis ​​relevantes. Isso tiraria uma das grandes virtudes da arte de modelar: um refinamento gradual de nossas construções teóricas sobre o funcionamento do mundo. À medida que avançava na construção do modelo, mais inteligível o fenômeno se tornava. Foi possível estabelecer com mais clareza relações de causa e efeito de forma não espúria, na medida em que as heurísticas me colocavam em uma posição de investigação cada vez mais profunda acerca do fenômeno.

Os modelos derivados da teoria de metacomunidades, por exemplo, apontavam para processos ecológicos que interagem em diferentes escalas espaço-temporais, o que me ajudou a pensar com mais clareza sobre o sistema de interesse, elencando o que parecia mais fundamental para prever os rumos da diversidade funcional de abelhas no cenário modelado. Esta etapa foi fundamental para derivar novas hipóteses que poderiam ser testadas em estudos empíricos futuros.

Neste trabalho, estabelecemos a construção de uma narrativa unificacionista envolvendo um conjunto relevante de processos ecológicos e os potenciais padrões de diversidade que eles podem gerar no contexto dos agroecossistemas. Vejo isso como um avanço no campo da Ecologia, pois conseguimos olhar para o sistema de interesse de forma mais holística, o que também auxilia em propostas de gestão voltadas para a conservação dos processos ecológicos e dos padrões de diversidade que eles geram no espaço.

Dentre os importantes aprendizados derivados dessa pesquisa colaborativa, posso destacar: 1) a interação com a Filosofia da Ciência contribuiu para uma compreensão cada vez mais clara do fenômeno ecológico, na medida em que os questionamentos gerados me colocaram em uma posição de busca profunda por questões não tão claras na Ecologia Funcional; 2) a Teoria organizacional das funções ecológicas indicou caminhos mais robustos de delimitação conceitual na construção do arcabouço teórico, especialmente no que diz respeito à identificação de características ou traços das abelhas que têm importância funcional, os quais podiam ser traços de resposta ou traços de efeito (para mais detalhes a respeito desses dois tipos de traços, veja aqui); 3) o próprio arcabouço teórico contribuiu para a derivação de novas hipóteses que podem ser testadas em estudos empíricos; e 4) aprender a construir o modelo enquanto estava imerso nas etapas metodológicas de sua própria construção ajudou a refazer caminhos de compreensão do fenômeno ecológico, ressignificando a forma como concebo meu fenômeno de interesse.

Encorajo a utilização do conjunto de heurísticas que construímos nesse trabalho interdisciplinar, que aproximou Ecologia e Filosofia da Ciência, em outros estudos ecológicos, de modo que possamos investigar a adequabilidade dessas heurísticas em relação a outros fenômenos de grande interesse para a Ecologia. É importante ter claro, contudo, que não se trata de alguma espécie de receita, a ser meramente seguida, mas de um caminho derivado de uma interação frutífera que vem rendendo a pavimentação de uma linha de pesquisa pautada na interdisciplinaridade como forma de lidar com fenômenos complexos, que requerem múltiplos olhares na tentativa de torná-los mais inteligíveis.

Jeferson Gabriel da Encarnação Coutinho

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA) e Universidade Federal da Bahia (UFBA)

PARA SABER MAIS

Leibold, Mathew A. “The Metacommunity Concept and Its Theoretical Underpinnings“. The Theory of Ecology, edited by Samuel M. Scheiner and Michael R. Willig, Chicago: University of Chicago Press, (2011), pp. 163-184.

Giovanetti, M.; Albertazzi, S.; Flaminio, S.; Ranalli, R.; Bortolotti, L.; Quaranta, M. Pollination in Agroecosystems: A Review of the Conceptual Framework with a View to Sound Monitoring. Land (2021), 10, 540.

Wood, D.S. Karp, F. DeClerck, C. Kremen, S. Naeem, C.A. Palm. Functional traits in agriculture: agrobiodiversity and ecosystem services. Trends Ecol. Evol., 30 (2015), pp. 531-539.

Coutinho, J.G., E., Garibaldi, L.A., Viana, B.F. The influence of local and landscape scale on single response traits in bees: a meta-analysis. Agric. Ecosyst. Environ., 256 (2018), pp. 61-73

Doenças e adaptação ao meio. O que o organismo faz para restabelecer a própria saúde?

As doenças são fenômenos comuns a todos os seres vivos. Quando elas se apresentam, o organismo mobiliza mecanismos internos que podem permitir manter uma adequada interação com o meio. Nesse sentido, ser saudável não significa só possuir um corpo saudável, mas também sentir-se bem quando agimos num meio socioambiental.

Um médico curando um peixe. Uma parodia de Esther Aarts, disponível em: https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2019/05/pharmaceutical-pollution/586006/

Um fato muito comum na vida dos seres vivos é que eles, às vezes, ficam doentes. Quando as doenças se apresentam, o organismo, por exemplo, o organismo humano, reage com mecanismos fisiológicos que, para remediar eficazmente a condição patológica, tentam ajustar o estado interno ao contexto ambiental externo. Isso permite que o individuo se sinta no melhor estado de saúde possível quando tiver de se relacionar novamente com este contexto.

Tomemos o exemplo de uma doença ocular chamada de “hemianopsia”. Nos casos em que esta doença se apresenta, a hemianopsia envolve a perda da metade do campo visual do sujeito. Uma completa hemianopsia direita, como aponta, por exemplo, David Hubel, implica o escurecimento do centro do campo visual: é como se, observando a palavra “céu” e tentando se concentrar no “é”, não se pudesse ver o “u”, mas apenas o “c” e o lado esquerdo do “e”.

Um aspecto interessante dos mecanismos regulatórios que podem ser observados quando esta doença surge foi salientado pelo filósofo da medicina francês Georges Canguilhem em “Visão como modelo do conhecimento”, um manuscrito inédito de 1956-57 que pode ser consultado, junto com outros textos inéditos de Canguilhem, na École Normale Supérieure de Paris.

Canguilhem salienta que, apesar da doença de que sofrem e, por conseguinte, do escurecimento total da parte central de seu campo visual, vários pacientes hemianópicos parecem não perceber nenhuma sensação de cegueira quando interagem com um interlocutor ou com os objetos externos.

Na verdade, um dos comportamentos típicos dos pacientes afetados por hemianopsia é o seguinte: ao invés de manter um olhar reto quando observam um objeto ou um interlocutor, eles olham de lado, mantendo a cabeça levemente reclinada. Nos sujeitos saudáveis, umas das partes do olho que permitem a visão se chama de fóvea. Como nos sujeitos hemianópicos a ação da fóvea está comprometida, o que se observa é que, em seus olhos, cria-se muitas vezes uma outra fóvea na metade intacta da retina, isto é, uma espécie de “nova fóvea”, que substitui a ação da fóvea danificada. Esta nova fóvea responde às necessidades do sujeito de focalizar os objetos externos ao seu redor. E o que é importante destacar é que a posição dela não é fixa, não é estática dentro da retina, mas muda de acordo com as necessidades e as intenções do sujeito, dependendo do ponto no espaço exterior que ele quer observar. Em suma, para restabelecer um certo estado de saúde, o organismo em questão lida com a patologia através de mecanismos fisiológicos que reorganizam os componentes orgânicos da retina, e isso a fim de manter, mesmo em condições anatomicamente anormais, uma interação eficaz com o contexto exterior.

São, portanto, o ambiente e a forma como um organismo específico interage com ele o que determina, entre outras coisas, os processos de adaptação e o estado de saúde dos organismos.

Estes argumentos de Canguilhem são similares a algumas teorias recentes da filosofia da biologia e da medicina, por exemplo, as teorias de Cristian Saborido e colaboradores sobre a mau-função orgânica. Saborido e colaboradores apontam que estabelecer o que é patológico num organismo, isto é, o que é uma “mau-função”, não deriva meramente de um cálculo estatístico, ou de uma simples observação dos estados fisiológicos do organismo. Estabelecer a existência de uma mau-função num paciente significa avaliar a relação concreta entre o organismo em questão e seu meio socioambiental. Por exemplo, uma síndrome de Gilbert não envolve nenhuma mau-função naqueles pacientes que se sentem saudáveis, na medida em que eles não percebem obstáculos durante as próprias atividades diárias (como sensações de cansaço), apesar de um aumento excessivo ou descontrolado da bilirrubina, um pigmento contido na bílis. Por um lado, a mau-função é algo objetivamente relacionado com a fisiologia de um organismo. Mas, por outro lado, se o organismo não perceber nenhum obstáculo durante sua interação com o contexto externo, pode-se dizer que ele não apresenta mau-funções e, por conseguinte, que ele é saudável.

Isso se deve àqueles mecanismos internos de regulação adaptativa aos quais Canguilhem também fazia referência. No caso da síndrome de Gilbert, estes mecanismos podem compensar com sucesso um excesso de bilirrubina, razão pela qual o sujeito se sente saudável durante sua interação com o meio. Em termos gerais, quando as condições ambientais mudam, o sistema adaptativo do organismo desencadeia ações para modular adequadamente o seu funcionamento. Neste caso, pode-se falar de regulação adaptativa, que é desencadeada pela forma como um ser vivo específico interage concretamente com um meio. Isso também é análogo ao que Canguilhem salientava relativamente ao processo generativo da “nova fóvea” que se desenvolve nos sujeitos hemianópicos. Para Canguilhem, com efeito, este tipo de fóvea surge (também) das necessidades ou intenções especificas de um indivíduo em um meio determinado, permitindo a este indivíduo agir adequadamente no meio e, assim, fazendo-o sentir-se saudável.

Ser saudável, como nos dizem os filósofos da medicina Canguilhem e Saborido, não significa apenas ter um corpo fisiologicamente saudável. Um corpo saudável previne tanto quanto possível a ocorrência de doenças, mas quando elas acontecem, o organismo desenvolve reações adaptativas internas que podem permitir manter uma interação adequada com o ambiente. Em resumo, ser saudável significa também sentir-se saudável.

Emiliano Sfara

(Pós-doutorando, Instituto de Biologia/UFBA)

PARA SABER MAIS:

Canguilhem, G. (1956-57) La vision comme modèle de la connaissance. Este manuscrito pode ser consultado no CAPHÉS (Centre d’Archives en Philosophie, Histoire et Édition des Sciences) em Paris, colocação: GC. 13. 2.

Canguilhem, G. (1966), O normal e o patológico, trad. port. 2009, Forense Universitária, Rio de Janeiro.

Hubel, D. (1988). Eye, brain and vision, New York, W. H. Freeman & Co.

Saborido, C. et al. (2016). Organizational malfunctions and the notions of Health and Disease. In Giroux (ed.), Naturalism in the Philosophy of Health, History, Philosophy and Theory of the Life Sciences, 17, 101-120.

Saborido, C. (2012). Funcionalidad y organización en biología. Reformulación del concepto de función biológica desde una perspectiva organizacional. Tese de doutorado. University of the Basque Country.

Seguem os prejuízos da politização dos debates sobre tratamento e prevenção da COVID-19

Ainda em 2020 evidências mostraram de modo consistente que a hidroxicloroquina não é um tratamento efetivo para a COVID-19. Isso não diminuiu o debate em torno dessa droga, que tem gerado muito burburinho. Um dos resultados foi a interrupção prematura de estudos sobre o uso dessa droga na prevenção da COVID-19. Quais lições devemos tirar desse episódio?

Verdade versus pós-verdade. Cartoon de Martin Shovel. Disponível em: https://twitter.com/martinshovel/status/804968341471457280?lang=en

Há alguns dias, comecei a receber de diversos amigos e colegas, que sabem de meu interesse sobre os debates em torno dos estudos sobre um possível papel da (hidroxi)cloroquina no tratamento e na prevenção da COVID-19, uma revisão sistemática e meta-análise recente sobre o uso profilático desse medicamento, ou seja, na prevenção dessa doença. A razão de meu interesse reside no fato de que o caso da (hidroxi)cloroquina é um prato cheio para uma estratégia de ensino que uso em meus cursos na UFBA, combinando questões sociocientíficas e aprendizagem baseada em problemas. Isso porque muitos estudos que testaram essa droga foram marcados por inúmeros problemas metodológicos e é possível detectar a interferência de interesses e valores em sua condução, sem falar da ampla controvérsia sociopolítica.

Questões sociocientíficas são problemas ou situações controversas e complexas vivenciadas por sociedades contemporâneas nas quais o conhecimento científico tem papel fundamental nas origens, na compreensão e/ou na busca de soluções. Além disso, uma questão sociocientífica é passível de transposição para a sala de aula, como uma ferramenta de ensino e aprendizagem, favorecendo a discussão de relações entre ciência, tecnologia, sociedade e ambiente, bem como de aspectos éticos dos problemas sociais e da pesquisa científica. A caracterização do que é uma questão sociocientífica já sugere, de imediato, por que o caso da (hidroxi)cloroquina desperta interesse para uso em tal abordagem pedagógica.

O que mais me despertou a atenção, contudo, foi o relato de que o artigo que me foi enviado estava circulando em determinados grupos como referência fundamental a favor de um papel da (hidroxi)cloroquina na prevenção da COVID-19, inflamando ânimos já muito excitados na controvérsia fortemente carregada de conotações políticas em torno desse medicamento.

O problema é que o artigo em questão não apresenta de fato evidências a favor de um papel da hidroxicloroquina na prevenção da COVID-19. O que ele conclui é que as evidências disponíveis ainda são insuficientes para excluir um papel profilático desse medicamento no caso dessa doença. A diferença é muito importante: falta de evidências suficientes é algo muito diferente de evidência a favor de uma tese que se pretende defender. Além disso, o artigo já se inicia com uma conclusão que contradiz expectativas muito defendidas, com um ardor tão grande que gera muito calor e pouca luz: “A hidroxicloroquina não é um tratamento efetivo para COVID-19 estabelecida”. Esta, sim, é uma conclusão já muito bem estabelecida a partir das evidências disponíveis. Ora, tudo isso deveria ser bastante claro. Afinal, estas são conclusões que saltam aos olhos quando lemos o artigo.

Como, então, as pessoas não viram isso? A primeira razão que me vem à cabeça é muito óbvia, provavelmente correta: elas nem leram o artigo e convenceram-se das supostas conclusões disseminadas por determinado grupo apenas por memes e mensagens nas redes sociais. Quanto a esta razão, a indicação é simples e direta: informem-se em fontes de qualidade, busquem – se possível – inclusive verificar as fontes originais, certifiquem-se de que não estão sendo enganados por fake news, antes de sair defendendo conclusões visceralmente.

Contudo, o que gostaria de examinar aqui é uma razão mais interessante, ainda que mais hipotética no atual estado de coisas. Suponhamos que uma pessoa se dispõe a ler o artigo original, ou, ao menos, um relato fidedigno dos seus achados. Será que há condições em que ela chegaria a conclusões diferentes daquelas que saltam aos olhos no artigo, por exemplo, de que ele apresenta evidências favoráveis ao uso da hidroxicloroquina na prevenção da COVID-19? Uma condição que poderia resultar nessa situação é o chamado “raciocínio motivado”, um fenômeno psicológico no qual as pessoas elaboram e avaliam argumentos e/ou examinam dados e evidências de forma enviesada, buscando alguma interpretação que se acomode a e/ou favoreça alguma crença preexistente. Outra condição, contudo, consiste na dificuldade de as pessoas entenderem como o trabalho científico é realizado, como os argumentos científicos são construídos, que fatores intervêm na construção e defesa de tais argumentos, entre outros elementos.

Antes de seguirmos com esse argumento, devemos, no entanto, examinar o artigo que me foi enviado, para considerar o que é ali relatado.

Uma revisão sistemática e meta-análise de estudos sobre o uso da hidroxicloroquina para prevenção da COVID-19

A publicação que estamos examinando relata os resultados de uma meta-análise de ensaios clínicos randomizados e controlados (randomized controlled trials, RCTs) que investigaram a efetividade da hidroxicloroquina na prevenção da COVID-19. Nessa meta-análise, foram incluídos 11 RCTs, sete que investigaram o uso da hidroxicloroquina como meio de evitar contrair a doença antes de exposição conhecida a um indivíduo infectado (profilaxia pré-exposição), e quatro que investigaram o uso desse medicamento após tal exposição (profilaxia pós-exposição). Todos os sete ensaios clínicos voltados para profilaxia pré-exposição eram testes que usaram placebo (ou seja, uma substância ou tratamento inerte, que não apresenta interação com o organismo) como controle e método duplo-cego (nos quais nem pesquisadores nem participantes sabem, durante o teste, quais tratamentos foram atribuídos a cada participante, se placebo ou medicamento). Todos eles foram realizados com trabalhadores da área da saúde que estavam sujeitos a exposição a COVID-19 em seu ambiente de trabalho, mas não apresentavam exposição conhecida a pacientes infectados. Os quatro ensaios clínicos voltados para profilaxia pós-exposição foram realizados com pessoas assintomáticas que haviam entrado em contato com casos confirmados de COVID-19. Estes ensaios têm, contudo, uma fragilidade importante: o tempo entre a exposição a contatos infectados e o início do tratamento foi tão longo que eles podem confundir-se com testes de tratamento precoce da doença com hidroxicloroquina. Assim, os resultados destes últimos ensaios devem ser considerados com maior cautela.

Os critérios de inclusão na meta-análise possibilitaram eleger apenas estudos capazes de produzir evidências de maior qualidade, na medida em que foram admitidos apenas testes controlados e randomizados, com indivíduos cuja infecção pelo coronavírus SARS-CoV-2 havia sido confirmada por PCR (com poucas exceções que, quando excluídas da análise, não afetaram de modo relevante os resultados), e que haviam sido publicados em periódicos arbitrados ou estavam disponíveis como preprints (ou seja, antes de sua publicação em periódico).

Dois autores do estudo avaliaram independentemente os riscos de vieses nos ensaios clínicos. Isso é importante para controlar, na meta-análise, o grau de interferência nos resultados dos ensaios devido a fragilidades no desenho metodológico. Esta avaliação identificou ensaios clínicos com fontes moderadas de viés ou interferência nos resultados, em virtude de dados incompletos sobre a infecção dos participantes e a exclusão de participantes do estudo após terem sido atribuídos ao grupo que recebeu hidroxicloroquina como medida preventiva ou ao grupo controle.

É importante estar atento aos resultados obtidos na meta-análise. Como escrevem os autores, “o benefício da hidroxicloroquina como profilaxia para a COVID-19 não pode ser descartado com base na evidência disponível de ensaios randomizados”. Portanto, a conclusão é de que as evidências disponíveis ainda são insuficientes para excluir um papel profilático da hidroxicloroquina, o que é algo inteiramente distinto de oferecer evidências a favor de um papel dessa droga na prevenção da COVID-19. A razão pela qual as evidências são insuficientes reside na quantidade pequena de ensaios clínicos que puderam ser completados. A principal preocupação dos autores é de que os ensaios randomizados e controlados disponíveis produziram achados que não são estatisticamente significantes, mas isso não deve ser interpretado no sentido de que eles teriam produzido evidências convincentes da falta de efetividade do medicamento na prevenção da COVID-19, mas apenas de que esses estudos não produziram evidências suficientes para uma decisão consistente acerca da hipótese. Em contraste com o uso da hidroxicloroquina no tratamento da COVID-19, cuja ineficácia foi estabelecida de modo convincente ainda no segundo semestre de 2020, como os autores do próprio artigo afirmam já em sua primeira frase, ainda há bastante incerteza sobre os benefícios dessa droga na prevenção ou profilaxia da doença.

Esta incerteza se mostra claramente nos resultados obtidos na meta-análise feita pelos autores. Embora os ensaios clínicos voltados para profilaxia pré-exposição resultem, quando analisados conjuntamente, numa estimativa de risco cerca de 28% menor de contrair COVID-19 no grupo de participantes que recebeu hidroxicloroquina, qualquer efeito entre 5% e cerca de 45% de redução no risco é altamente compatível com os dados colhidos nesses ensaios. Quanto aos ensaios voltados para profilaxia pós-exposição, tanto uma redução substancial quanto um aumento moderado no risco de contrair COVID-19 uma vez administrada hidroxicloroquina se mostrou altamente compatível com os dados obtidos. Não há dúvida, então, de que as evidências disponibilizadas pelos ensaios incluídos na meta-análise são insuficientes para qualquer conclusão mais segura sobre os benefícios, a ausência de benefícios ou os riscos de usar hidroxicloroquina na prevenção da COVID-19. Ou seja, há mais incerteza do que segurança nas conclusões que podemos obter quanto ao uso dessa droga na profilaxia da doença, como a ampla variação nas estimativas de risco obtidas mostra.

A situação poderia ser diferente se os 30 ensaios clínicos planejados no começo da pandemia para investigar uso profilático de hidroxicloroquina tivessem sido realizados, em vez dos 11 somente que foram reunidos na meta-análise. A maioria desses ensaios não foi completada, contudo, porque as comunidades médica e científica chegaram à conclusão de que esse medicamento não tinha efetividade na prevenção da COVID-19 e de que testes adicionais não seriam necessários após os achados de apenas dois desses ensaios terem sido publicados. Essa conclusão prematura envolveu uma confusão entre ausência de efeito e ausência de significância estatística: concluiu-se que a hidroxicloroquina não tinha efeito profilático na COVID-19 quando a conclusão correta era de que as evidências obtidas nos ensaios clínicos disponíveis possibilitavam estimativas de efeito do medicamento na prevenção da doença que eram demasiadamente imprecisas. Os resultados desses ensaios apoiavam, assim, a necessidade de mais testes de um possível papel profilático do medicamento, e não a tese de que não era mais preciso realizar estudos a este respeito.

A emergência de um consenso sobre a ineficácia da hidroxicloroquina na prevenção da COVID-19 foi considerada surpreendente pelos autores da meta-análise, porque os dois ensaios nos quais este consenso se baseou encontraram um risco menor de contrair a doença entre as pessoas às quais foi administrada hidroxicloroquina. Contudo, como as amostras dos dois estudos eram pequenas, os resultados não foram suficientes para excluir seja o benefício seja o prejuízo de tomar essa droga como medida profilática. Mas por que será que houve este salto para uma conclusão negativa sobre o uso da hidroxicloroquina como prevenção da doença na ausência de evidência suficiente? Não há dúvida de que todo o barulho em torno do emprego dessa droga no tratamento da COVID-19, motivada pelo uso político dos achados de ensaios clínicos que produziram evidência frágil e insuficiente a favor de seu papel terapêutico, foi decisivo para que se saltasse a tal conclusão com evidência muito menor do que aquela que estabeleceu, convincentemente, a falta de efetividade da droga como medida terapêutica. Assim, esse uso político causou prejuízos, ao impedir a geração de evidências suficientes e estimativas precisas acerca do uso da hidroxicloroquina na gestão da pandemia antes de vacinas estarem disponíveis. Isso ocorreu porque a convicção sobre a falta de efetividade da hidroxicloroquina na prevenção da doença diminuiu substancialmente a velocidade de recrutamento de pessoas para os ensaios clínicos ainda em andamento que visavam testar esse uso da droga.

Os autores da revisão sistemática e meta-análise que estamos discutindo estavam realizando um ensaio clínico para testar o uso da hidroxicloroquina na prevenção da COVID-19 e, como ocorreu em outros estudos, enfrentaram sérias dificuldades para recrutar pacientes para participar do estudo. Na extrema politização do debate em torno do uso dessa droga no tratamento da doença, foi ignorado o fato de que, ainda em 2020, já havia evidência suficiente para mostrar que a hidroxicloroquina não tem papel na terapia da doença, e isso levou, paradoxalmente, a dificuldades em estudos que buscavam testar outro papel para a droga na gestão da pandemia. Estas são águas passadas, uma vez que a disponibilidade de vacinas eficazes para a COVID-19 reduz a necessidade de medidas farmacológicas de prevenção. Contudo, é importante aprender com esse evento, de modo a aprimorar a geração e interpretação de evidências antes que enfrentemos a próxima emergência de saúde pública, climática e/ou ambiental.

Quais seriam as lições?

Quais as lições a ser derivadas desse episódio? Mais alguma lenha na fogueira dos conflitos e discursos sobre (hidroxi)cloroquina nas redes sociais? Esta parece ser a lição que muitos têm derivado. Mas certamente não é a lição correta, porque reforça a fonte do problema analisado no artigo, que mostra como a politização extrema dos debates em torno da (hidroxi)cloroquina tem sido prejudicial. Em vez de deslocar os juízos sobre o uso de um medicamento para controvérsias sobre opiniões nas redes sociais, teria sido mais apropriado aguardar as conclusões de estudos feitos por comunidades científicas relevantes (como as de pesquisadores biomédicos, epidemiologistas, virologistas etc.), desde que tivessem a qualidade esperada nas práticas científicas aceitas por essas comunidades. Certamente não é o caminho para alcançar julgamentos de melhor qualidade usar o artigo que estamos discutindo para alimentar ainda mais debates mal-informados sobre a (hidroxi)cloroquina, mal-informados tanto no sentido do entendimento do conhecimento científico em si mesmo quanto em termos do modo como este é produzido e validado. Um caminho mais preferível é utilizar esse artigo para entender o impacto negativo das controvérsias em torno do medicamento, que tiveram e seguem tendo lugar especialmente nas redes sociais; o papel fortemente político dessas controvérsias (nas quais não é a busca de conclusões seguras, mas sobretudo a construção de discursos que favoreçam a posição politica de certos grupos que tem sido almejada); e a necessidade de aguardar conclusões mais seguras da comunidade científica sobre o que está sendo pesquisado, antes de criar um acalorado debate que gera mais fogo do que luz.

Como argumenta Bruno Latour, em Políticas da natureza, se não temos boas razões para questionar uma conclusão científica, ela deve ser tomada como um ponto de partida para deliberação (notem: não como um ponto final, porque há mais envolvido na deliberação social do que apenas resultados consolidados pela pesquisa científica). Mas, antes disso, é preciso que haja espaço para que tais boas razões sejam alcançadas. Um debate que busca usar resultados científicos ainda não-consolidados para defender posições em embates sociopolíticos cria, por assim dizer, um curto circuito no processo que poderia levar-nos a ter segurança sobre as conclusões científicas, antes de nos metermos a deliberar. Deliberamos, então, sobre bases insuficientes, no que tange ao conhecimento científico disponível, e isso pode levar-nos a cometer grandes equívocos. Os processos naturais não querem saber, contudo, de nossas confusas e acaloradas controvérsias sobre terrenos pantanosos: eles seguem seu curso… E, em seu curso, podem muito bem aumentar nossas incertezas. Necessitamos entender melhor o conhecimento científico e o modo como ele é produzido, bem como a maneira como argumentos científicos são construídos. Como temos defendido desde os primeiros dias de Darwinianas, é urgente que a educação científica e a comunicação pública da ciência se tornem mais capazes de oferecer aos cidadãos melhores ferramentas para compreender como se dão a construção e a validação dos conhecimentos científicos, de como achados da ciência são mobilizados na argumentação, e de como relações entre ciência, tecnologia, sociedade e ambiente intervêm na elaboração e defesa de argumentos que se utilizam de achados científicos.

Charbel N. El-Hani

(Instituto de Biologia/UFBA)

PARA SABER MAIS

García-Albéniz, X., del Amo, J., Polo, R., Morales-Asencio, J. M. & Hernán, M. A. (no prelo). Systematic review and meta-analysis of randomized trials of hydroxychloroquine for the prevention of COVID-19. European Journal of Epidemiology.

Latour, B. (2019). Políticas da natureza. São Paulo: Editora UNESP.

Mais uma barreira para mulheres no mundo acadêmico

Além das várias barreiras enfrentadas por meninas e mulheres, principalmente na área de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (abreviadas em inglês como STEM), as mulheres recebem também menos crédito autoral do que seus colegas do sexo masculino.

Modified from Projektiveplane4bb.jpg, CC BY-SA 3.0 by Darapti

Não deve ser surpresa para a maioria de nós o fato de que vivemos em uma sociedade desigual. As desigualdades sociais são inúmeras, e podem ser estudadas por diversos ângulos, incluindo a desigualdade de renda, de escolarização, e de acesso a cultura ou a serviços básicos como saúde, saneamento e segurança. Podemos também analisar as desigualdades de raça, orientação sexual, ou habilidades físicas e cognitivas, e como essas desigualdades são acentuadas por uma combinação de fatores (ou uma combinação de desigualdades), o que hoje chamamos de interseccionalidade. Mas um artigo publicado recentemente na revista Nature me inspirou a escrever especificamente sobre a desigualdade de gênero e, particularmente, a desigualdade de gênero na comunidade científica e áreas afins. Antes disso, no entanto, é importante ressaltar que falar em desigualdade de gênero não significa acreditar que todas as mulheres estão igualmente sujeitas a discriminação. As mulheres negras, as mulheres homossexuais e as mulheres trans são, sem dúvidas, alvos de mais opressão do que as mulheres brancas, por exemplo, pois estão expostas a situações nas quais o racismo, a homofobia e a transfobia se superpõem ao sexismo. Antes de embarcarmos nessa jornada, não poderia deixar de ressaltar que o papel da mulher na ciência, particularmente na Genética, já foi discutido aqui no Darwinianas em um post incrível intitulado “As mães da Genética”, de Fevereiro de 2020.

Então, vamos lá. Historicamente, as mulheres foram impedidas de cursar o ensino superior, de se engajar profissionalmente, ou mesmo de participar de reuniões e sociedades acadêmicas. Por exemplo, The Linnean Society of London, a mais antiga sociedade voltada ao estudo das Ciências Naturais, foi fundada em 1788 por Sir James Edward Smith. Seus mais ilustres membros incluem Charles Darwin, Alfred Russel Wallace, Henry Walter Bates e Robert Brown, cujas contribuições resultaram em avanços significativos para o nosso entendimento do mundo natural. Apesar da grande importância dessa sociedade para o desenvolvimento do conhecimento científico da época, as primeiras naturalistas mulheres só foram admitidas como membros em 1904, 116 anos após a sua fundação. E não foi por falta de contribuições de importantes naturalistas mulheres da época, como, por exemplo, Margaret Jane Benson, Emma Louisa Turner e Beatrix Potter, para citar apenas algumas. Infelizmente, essa desigualdade de gênero não é coisa do passado, como alguns podem pensar. The Linnean Society levou mais 69 anos para eleger a sua primeira presidente mulher, Irene Manton, em 1973.

Aqui no Brasil, a Faculdade de Medicina da Bahia, a primeira faculdade de Medicina do país, fundada em 1808, levou mais de 40 anos para aceitar alunas. Foi apenas em 1887 que a primeira mulher, a Dra. Rita Lobato, venceu a discriminação e o sexismo estrutural, tornando-se a primeira mulher Médica a se formar no país. No ocidente, a primeira mulher a se formar em Medicina foi a inglesa Elizabeth Blackwell, em 1849.  Não há como negar que muito mudou desde então. Na Medicina, por exemplo, o documento Demografia Médica no Brasil 2020 descreve que, apesar de os homens ainda serem a maioria entre os médicos, em 2020 as mulheres já representavam 46,6% dessa população, um aumento de mais de 15% nos últimos 30 anos. E, de acordo com o Censo da Educação Superior de 2020, as ingressantes em cursos de graduação entre 2011 e 2020 tiveram, consistentemente, maiores taxas de conclusão do que os ingressantes do sexo masculino.

Segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), no documento Decifrando o código: educação de meninas e mulheres em ciências, tecnologia, engenharia e matemática (STEM), de 2018, as matrículas de mulheres quase dobraram entre 2000 e 2014, com as mulheres constituindo a maioria dos estudantes de graduação e mestrado em todo o mundo. No entanto, estatísticas mundiais apontam, constantemente, para uma significativa desigualdade de gênero nas áreas de ciências, tecnologia, engenharia e matemática (STEM). Nos Estados Unidos, por exemplo, as mulheres perfazem apenas 28% dos profissionais em ciências, tecnologia, engenharia e matemática, com desigualdades ainda mais significativas em áreas como engenharia e computação, que são as de mais rápido crescimento e com salários mais altos. As razões são, sem dúvida alguma, multifacetadas: é surpreendente notar que diferenças de gênero na educação científica podem ser observadas desde muito cedo. Por exemplo, segundo o mesmo documento da UNESCO, estudantes de 15 anos de idade do sexo masculino apresentam desempenho em média 10% superior ao desempenho de estudantes do sexo feminino em Ciências e Matemática no Brasil. E a mesma desigualdade é observada em inúmeros países do mundo, como no Chile, na Costa Rica, na Itália e na Áustria, onde a desigualdade ultrapassa 15%, principalmente em Matemática.

Segundo a UNICEF, as desigualdades de gênero no engajamento, no interesse e nas aspirações profissionais em STEM são moldadas por normas sociais, vieses e estereótipos. Os dados apresentados nesse documento sugerem que meninas em idade escolar têm a mesma (ou maior) probabilidade de alcançar níveis de proficiência mínima em Ciências e Matemática, mas que as meninas possuem menos probabilidade de alcançar altos níveis de proficiência em STEM. Essas desigualdades de gênero estão correlacionadas a uma menor autoconfiança das meninas em habilidades ligadas a ciências, tecnologia, engenharia e matemática, quando comparada à dos meninos. E, como é de se esperar, essa baixa autoconfiança resulta em falta de interesse e engajamento, resultando, como consequência, na desigualdade de gênero que observamos no meio profissional em STEM. E no Brasil não é diferente: as normas sociais relativas àquelas que são consideradas “profissões de mulher” e “profissões de homem” continuam influenciando as decisões dos jovens. Por exemplo, o mesmo Censo da Educação Superior de 2020 ressalta que 72,8% das matrículas em cursos de licenciatura são do sexo feminino, alinhando-se à visão da ‘professora escolar’, historicamente atribuída à mulher no Brasil.

Mas, como já podemos imaginar, as barreiras não param no período escolar. O estudo recente que serviu de inspiração para esse post desvenda mais uma barreira para a diminuição da desigualdade de gênero na ciência: as mulheres recebem sistematicamente menos crédito autoral por suas contribuições do que contrapartes do sexo masculino (Figura 1).

Figura 1 – Mulheres têm menor probabilidade de serem creditadas com autorias de trabalhos científicos, independentemente do nível de desenvolvimento profissional (gráfico da esquerda), ou da área de conhecimento (gráfico da direita). Os gráficos apresentam a relação entre as contribuições de pesquisadoras em trabalhos acadêmicos e o crédito de autoria dado a essas pesquisadoras. A linha pontilhada, em ambos os gráficos, demarca uma situação onde o esforço de trabalho das pesquisadoras é proporcional ao seu reconhecimento como coautora do trabalho. Enquanto pontos acima da linha indicariam que pesquisadoras estavam recebendo crédito proporcionalmente maior do que o seu envolvimento no trabalho, pontos abaixo da linha apontam para a situação em que as mulheres se dedicam proporcionalmente mais ao trabalho do que o credito recebido pelo mesmo. Fonte: Modificado de Ross et al. (2022), Nature 608, p.137.

Esses dados são interessantes não apenas pela descoberta de mais um viés de gênero, mas também por apresentar dados relacionados à autoria de trabalhos científicos. Na ciência moderna, um dos índices sob maior escrutínio durante concursos, entrevistas de emprego e decisões de financiamento de pesquisa, tanto no Brasil como internacionalmente, é o número de publicações de um candidato. O número de publicações é um dos critérios, também, de avaliação da qualidade de um pesquisador. Esse viés, assim como muitos outros, podem resultar em um ciclo vicioso no qual a ausência de crédito autoral para mulheres resulta em pesquisadoras com menor número de publicações e com menor visibilidade na comunidade científica, interferindo na busca de empregos e financiamentos para pesquisa em STEM, e contribuindo para a redução do número de pesquisadoras mulheres em STEM. Além disso, esses dados sugerem que a desigualdade de gênero não está atrelada ao esforço e à dedicação das mulheres ao trabalho, quando comparadas a cientistas do sexo masculino. Ele derruba, assim o famoso mito da produtividade, de acordo com o qual cientistas do sexo masculino seriam mais produtivos do que cientistas do sexo feminino. É possível, assim, que a diferença no número de publicações entre pesquisadores homens e mulheres se deva ao viés de reconhecimento da autoria de pesquisadoras, e não à sua produtividade.            

Ainda temos muito caminho pela frente para gerarmos uma comunidade científica menos desigual. O primeiro passo, no entanto, é o estudo dos fatores que promovem essa desigualdade. Ao entendermos os diversos fatores, podemos combater mais efetivamente  as desigualdades por meio de políticas públicas e educação científica inclusiva e com equidade.

Ana Almeida

California State University East Bay

(CSUEB)

Para saber mais:

García-Peñalvo, F.J.; García-Holgado, A.; Dominguez, A.; Pascual, J. 2022. Women in STEM in Higher Education: Good PRactices of Attraction, Access and Retainment in Higher Education. Springer.

Gewin, V. 2019. How the scientific meeting has changed since Nature’s founding 150 years ago. Nature, 576: S70-S72.

Guarino, C. M.; Borden, V. M. H. 2017. Faculty Service Loads and Gender: Are Women Taking Care of the Academic Family? Research in Higher Education, 58: 672–694.

UNICEF. 2020. Mapping gender equality in STEM from school to work. Último acesso: 12/08/2022.

Presente animal

Mês de junho chegou ao fim e com ele acabou também o frenesi do “mês dos namorados”. Restaurantes lotados, propagandas em vermelho e rosa por todo lado e a pressão de escolher o presente perfeito. Essa não é nem de longe a descrição do cortejo mais esquisito do mundo animal.

Sexo é bom para os genomas e para as espécies. Como já discutido em um post anterior aqui no blog, a reprodução sexuada cria conjuntos inéditos de cromossomos por meio da combinação dos cromossomos parentais (recombinação) e permite reunir as mutações vantajosas e descartar as desvantajosas (permutação). Raramente, algumas espécies abrem mão do sexo e passam a apresentar algum tipo de reprodução assexuada. Nesses casos, as diferenças genéticas entre parentais e progênie ocorrem apenas por mutações. A maioria dessas linhagens estão destinadas à extinção. Um estudo recente testou essa predição ao examinar genomas de cinco espécies do bicho-pau do gênero Timema com reprodução exclusivamente por partenogênese e os comparou aos genomas de seus primos mais próximos com reprodução sexual. Os pesquisadores observaram que a partenogênese resulta em uma redução extrema da diversidade genética e muitas vezes leva a populações geneticamente uniformes. Também encontraram evidências de que a seleção positiva era menos efetiva em espécies partenogenéticas, sugerindo que o sexo é onipresente em populações naturais pois facilita taxas rápidas de adaptação. O estudo revela como a ausência de sexo afeta a evolução do genoma em populações naturais, fornecendo suporte empírico para as consequências negativas da partenogênese conforme previsto pela hipótese inicial. Este e outros exemplos mostram a importância do sexo para a manutenção da variabilidade genética, adaptação e sobrevivência das espécies. Já que existe sexo e ele é tão difundido, o sucesso evolutivo de uma estratégia de corte depende também do sucesso de atrair parceiros. Dada a importância evolutiva de ser atrativo, o investimento em um bom presente na hora do cortejo parece um pequeno preço a pagar perto dos benefícios de uma cópula bem-sucedida. 

Em muitas espécies, as fêmeas somente copulam com machos que oferecem presentes nupciais. Esses presentes são de diferentes formas, dependendo da espécie. Na barata Xestoblatta hamata, as fêmeas se alimentam de secreções anais produzidas e “presenteadas” por seus parceiros após a cópula. Em outras espécies, as secreções não são tomadas oralmente, mas entregues juntamente com o esperma. Durante a cópula da mariposa Utetheisa ornatrix, o macho transfere um composto alcalóide para a fêmea para eventual incorporação nos ovos e a própria fêmea é a primeira beneficiária do alcalóide que recebe do macho. No final do acasalamento, o alcalóide recebido do macho já está geralmente distribuído por todo o corpo da fêmea (incluindo até as asas) e torna a fêmea protegida contra aranhas, que liberam a mariposa de suas teias devido a sua aversão ao composto. Um presente parecido é oferecido pelos machos da vespa Cosmosoma myrodora. Durante o cortejo, os machos recobrem as fêmeas de filamentos ricos em alcaloides com ação protetora contra aranhas. Em muitos casos, como na aranha Pisaura mirabilis, os presentes são presas nutritivas que a fêmea usa como recurso alimentar. Em casos mais extremos, o próprio macho é o presente nutritivo, como no caso do louva-deus e de muitas aranhas.

E quando aquele presente escolhido com tanto carinho não é bem o que o mozão estava querendo? Parece que isso está acontecendo com a baratinha, Blattella germanica. Machos dessa espécie oferecem às fêmeas um presente pré-acasalamento constituído de uma secreção rica em oligossacarídeos que inclui maltose e maltotriose, além de fosfolipídios, colesterol e vários aminoácidos. Ao atrair a fêmea para sua secreção altamente palatável, o macho coloca a fêmea na posição adequada para a cópula e, enquanto ela se alimenta da secreção nupcial, o macho ganha tempo suficiente para a cópula. Um estudo publicado em maio, mostrou, no entanto, que algumas fêmeas estavam recusando o presente nupcial (e as investidas do macho) e buscaram as causas desse novo comportamento.

Geralmente, as baratas adoram açúcar. Acontece que, devido ao uso de iscas tóxicas contendo glicose, as populações da baratinha desenvolveram rapidamente uma aversão comportamental adaptativa à glicose. Um artigo publicado em 2013 mostrou o mecanismo por trás dessa aversão em baratinhas (falamos rapidamente sobre esse exemplo em um post aqui no Darwinianas). As secreções das baratas macho têm diferentes tipos de açúcares –maltose e maltotriose, que geralmente são preferidas pelas fêmeas– assim como algumas gorduras. À medida que as fêmeas se alimentam de seu presente, a maltose é rapidamente convertida em glicose, e as fêmeas com aversão à glicose sentem um gosto amargo e param de se alimentar, o que também encerra a oportunidade de acasalamento. Os pesquisadores realizaram vários experimentos para verificar como a aversão à glicose afetava o cortejo das baratas. Eles descobriram que as fêmeas com aversão à glicose interrompiam a alimentação com maior frequência, especialmente quando o presente era oferecido por um macho selvagem (sem aversão à glicose). Os machos com aversão à glicose geralmente tinham níveis mais altos de maltotriose em suas secreções. A maltose é relativamente fácil de converter em glicose, enquanto a maltotriose é mais complexa e demora um pouco mais para se decompor em glicose e, portanto, machos com aversão à glicose tinham tempo extra para começar o acasalamento. Os pesquisadores também alteraram a qualidade da secreção masculina, substituindo as secreções de glicose e maltose por frutose. As fêmeas avessas à glicose desfrutaram de frutose e se alimentaram dela por mais tempo, resultando em sessões de acasalamento mais bem-sucedidas. No geral, a aversão à glicose evoluiu sob a seleção natural, favorecendo a sobrevivência na presença de iscas tóxicas, mas levando à interrupção da cópula. Assim, a seleção sexual está levando à modificação da secreção e comportamento sexual dos machos, que para garantir o sucesso da cópula, secretam mais maltotriose e copulam mais rapidamente.

Passamos do presente amargo para a propaganda enganosa. No caso da aranha P. mirabilis, o oferecimento de presentes nupciais pelo macho é mantido por seleção sexual. Os machos que presenteiam as fêmeas, têm uma taxa de 90% de sucesso na cópula, enquanto 40% dos machos sem os presentes conseguem copular. A duração da cópula é positivamente correlacionada com o tamanho do presente e a proporção de ovos fertilizados aumenta com o tempo de cópula. Assim, o presente nupcial é um bom investimento de recursos para o macho: induz a fêmea a copular, facilita o acoplamento e, ao prolongar a cópula, pode aumentar a quantidade de espermatozóides transferidos. O presente nupcial na espécie consiste em uma presa que o macho capturou e embrulhou em seda. O macho oferece esse presente e, se a fêmea aceitar o convite, ela agarra a presa embrulhada. Enquanto a fêmea está comendo, o macho realiza a transferência de esperma. Algumas vezes, no entanto, os presentes não são o que a fêmea esperava: os machos embrulham carcaças de animais que eles encontraram (ou comeram). Esses presentes não nutritivos são descobertos pela fêmea no meio da cópula, encurtando o período de transferência de esperma e aumentando a competição entre espermatozóides de machos diferentes. O oferecimento dos presentes “inúteis” tem um custo para esses machos e a escolha da tática de presente depende da disponibilidade de presas, de seu tamanho e tempo de maturação.  Também existe o risco do próprio macho virar a refeição em vez de seu presente enganoso e, para fugir desse destino, alguns machos têm uma estratégia curiosa: eles se fingem de mortos ao apresentar seu presente para evitar o canibalismo. Assim que a fêmea começa a desembrulhar o presente, o macho volta à ação para copular.

Claro que os presentes dados no dia dos namorados não têm uma origem biológica comum aos presentes nupciais dos artrópodes. Nossos presentes (os chocolates, as flores) são resultado da nossa cultura e um prato cheio para o capitalismo, mas são oportunidades para reafirmar a atenção, investimento de tempo e recursos, algo que é realmente desejável em termos de cortejo humano. Quem não dispensa um chocolatinho, já tem um bom pretexto para garantir o do ano que vem: o ato de dar presentes é um comportamento ancestral cultivado pela seleção sexual! E quem não ficou satisfeito com o presente deste ano, pense que poderia ter sido bem pior.

Tatiana Teixeira Torres (USP)

Para saber mais:

– Olivia Judson (2002) Dr. Tatiana’s Sex Advice to All Creation: The Definitive Guide to the Evolutionary Biology of Sex. New York: Metropolitan/Owl Book, 2003.

Neste livro, a minha xará fictícia, a Dra. Tatiana, recebe cartas dos mais diversos animais e responde às dúvidas sobre corte, cópula e comportamentos pré- e pós-copulatórios. De uma forma bem divertida, explica a seleção sexual em seus conselhos aos animais aflitos.

Há também uma versão traduzida.

Sangue de plástico?

Há muito tempo é de senso comum que o plástico é um grande problema para o meio ambiente. O microplástico vem ganhando cada vez mais atenção, principalmente no ambiente marinho. Embora pouco se saiba sobre o efeito do microplástico na saúde humana, recentemente um estudo mostrou que foram encontrados diferentes tipos de microplástico na corrente sanguínea. Se está interessado em saber um pouco mais sobre este assunto, seja bem-vindo, neste post falaremos a seu respeito.

Imagem de abertura: Fonte Pixabay (Pixabay License)

Já não é a primeira vez que idealizo escrever sobre um tema aqui no Darwinianas e mudo de ideia em cima da hora. Estava bolando um texto sobre os efeitos da Covid-19 na saúde mental, incluindo a perda de memória. Já tinha arrumado uma estrutura legal para o texto, pensado em relações com aspectos ecológicos, epidemiológicos e sociais… e eis que me deparo com uma matéria do The Guardian sobre a descoberta de microplásticos na corrente sanguínea de seres humanos. Mudança total de planos…

Vamos compreender um pouco mais sobre esse tema, que tem sido cada vez mais frequente em conversas e que está muito longe de ser divulgado no nível que merece. É importante avaliarmos o que podemos fazer, como podemos buscar soluções para um problema planetário tão amplo e desafiador. No entanto, para entendermos o tamanho do problema com o qual já estamos lidando, precisamos compreender um pouco melhor o que são os microplásticos e quais são suas origens. Assim, ficará mais claro o impacto desta descoberta.

A produção de plástico vem crescendo exponencialmente. Atualmente, são produzidas 400 milhões de toneladas anualmente, das quais apenas 12% são incineradas e 9% são recicladas, de acordo com relatório do Programa Ambiental das Nações Unidas (UNEP, sigla em inglês). O restante é descartado em aterros ou simplesmente lançado no ambiente, incluindo o oceano. Com isso, é esperado que o fluxo de plástico para os ambientes aquáticos triplique, passando de 11 milhões de toneladas em 2016 para 29 milhões de toneladas em 2040. É muita coisa! Todo plástico produzido sofre algum tipo de desgaste, seja durante o uso ou quando descartados no ambiente. É justamente a partir deste desgaste que fragmentos chamados de microplásticos, menores do que 5 mm de comprimento, são liberados e causam a poluição ambiental. As fontes de entrada dos microplásticos nos ambientes são muitas, incluindo cosméticos, roupas, embalagem diversas e processos industriais. O microplástico é classificado como primário, quando entra no ambiente já fragmentado, como é o caso de microfibras de roupas, por exemplo, ou como secundário, quando é fragmentado a partir de partículas maiores no ambiente, como exposto acima. Independentemente da origem e da classificação, sabe-se há muito tempo que o microplástico é persistente no ambiente em níveis altíssimos, particularmente em ambientes aquáticos, pois sua degradação total é muito lenta, podendo levar de centenas a milhares de anos.

Só para termos uma ideia, 35% do microplástico de todo o oceano tem como origem a erosão de poliéster, acrílico ou nylon de roupas. Imagina isso! Podemos refletir um pouco sobre como nos vestimos e qual é o impacto dessas nossas escolhas no ambiente, certo? É simples? Não, claro que não! Sem dúvida, é muito desafiador deixar de usar roupas leves, como camisas UV ou shorts para corrida, e passarmos a usar algodão, não é? Você também pode questionar, “pois é! E onde vão plantar todo esse algodão? Vão terminar de derrubar a Amazônia e o Cerrado?!” Como vocês podem ver, a questão é complexa e não é possível “culpar” simplesmente o consumidor, no caso, você e eu. É importante que pensemos de modo integrado e que possamos vislumbrar uma solução sustentável para este problema, que parece só se acumular.

Tudo bem, já entendemos que o problema é generalizado e fruto do nosso próprio modo de vida, mas qual é o problema de fato de esse “plastiquinho” ficar boiando no mar, depositado no solo e flutuando pelo ar, já que mal conseguimos vê-lo? Por ser muito pequeno, o microplástico tem alta probabilidade de ser ingerido por animais, podendo se acumular em seus tecidos, como ocorre com esponjas, corais, camarões, peixes e até pequenos organismos que vivem no solo. Como outros tipos de poluição, os microplásticos se acumulam na cadeia alimentar, ou seja, um animal que come outro que esteja contaminado também ficará contaminado, estando sujeito a sofrer com seus efeitos tóxicos, que causam, por exemplo, a morte de células. Quando colocamos isso em perspectiva, fica mais clara a importância de procurarmos entender os impactos do microplástico na nossa própria saúde, a curtíssimo prazo.

Voltando ao estudo divulgado pelo The Guardian, os pesquisadores avaliaram a presença de cinco tipos de plástico no sangue de doadores voluntários. Setenta e sete por cento dos pacientes apresentaram microplástico no sangue, sendo que alguns pacientes apresentaram até três tipos de plástico. PET, plástico usado para fabricação de garrafas de água mineral ou refrigerante, por exemplo, foi o tipo de plástico mais prevalente nas amostras. A descoberta de microplásticos em seres humanos não é novidade. Eles já foram encontrados em fezes de adultos e crianças e em praticamente em todos os tecidos humanos estudados, incluindo cérebro e trato gastro-intestinal,. Contudo, eles nunca tinham sido encontrados na corrente sanguínea. Ainda não sabemos ao certo as possíveis consequências para a saúde humana, mas certamente devemos acender um sinal de alerta. Um estudo mostrou que microplástico de PVC (plocloreto de vinila) é mais tóxico para células (linfócitos) de humanos do que de peixes. Alguns efeitos já relatados do microplástico são: deformação de células, morte celular e reações alérgicas, inflamação, distúrbios na microbiota intestinal, desbalanço imunológico entre mãe e feto, causando toxicidade reprodutiva ou danos em neurônios no cérebro.

Já estamos habitando um planeta onde podemos encontrar plástico desde as profundezas do oceano até o cume do Monte Everest, a mais de 8 mil metros de altitude! É estimado que um ser humano consuma em média mais de 50 mil partículas de plástico por ano e, se considerarmos o que é inalado, muito mais. Com tudo isso, e com a projeção de a produção ser o dobro da atual em 2040, torna-se imperativo que o máximo de esforços sejam feitos para que possamos reduzir esse impacto, bem como para que possamos de fato conhecer profundamente o tamanho do problema, o qual ainda não conhecemos suficientemente.

Ao passo em que reconhecemos que o acúmulo de plásticos no ambiente, e agora no corpo humano, é crescente, existem diversas propostas para mitigar o problema ou remediá-lo. Estas propostas incluem filtração dos sistemas de coleta de água, sistemas de coleta automatizada no oceano, reforço na educação e uso consciente de plástico e reciclagem, que constituem algumas das frentes para a possível resolução do problema. Além disso, diversos países vêm tentando reduzir a produção e o consumo de plásticos descartáveis através de leis, como é o caso da China. Há eventos onde a redução da produção e descarte de plástico é praticamente inevitável, precisamos a aprender a lidar com isso. No entanto, situações emergenciais, como a pandemia da Covid-19, podem trazer uma explosão no descarte de produtos plásticos e impor mais um desafio para a redução no consumo de plástico. Um parêntesis: para muitos a pandemia pode parecer uma situação inesperada, mas não é. A comunidade científica previu desde uma década atrás a emergência de uma nova pandemia de origem zoonótica, em virtude das mudanças ambientais causadas pela humanidade. No mesmo ano. foi argumentado que devíamos adaptar estratégias de pesquisa e vigilância para superar desafios relacionados à predição, prevenção e controle de uma futura pandemia. Foi sugerido, além disso, que a futura transmissão direta de coronavírus de morcegos para humanos era um evento provável. A COVID-19 foi a doença que realizou essas predições.

Sem dúvida, um olhar mais consciente sobre o problema que estamos vivendo pode auxiliar a resolvê-lo, mas certamente uma estratégia que seja realmente eficiente necessita incluir o máximo de abordagens possíveis. Por fim, uma abordagem que me parece muito promissora e na qual eu tenho interesse especial é a biodegradação do plástico. Esse processo compreende a ação de microrganismos, como fungos e bactérias decompositores, como é ilustrado no filme “Fungos Fantásticos”. Hoje, possuímos ferramentas e abordagens que nos permitem descobrir organismos que podem ser utilizados para esse propósito, além de termos à disposição técnicas moleculares que nos permitem “engenheirar” organismos já conhecidos para serem ainda mais eficientes.

Pedro Milet Meirelles

Laboratório de Bioinformática e Ecologia Microbiana

Instituto de Biologia da UFBA

meirelleslab.org

Para Saber mais:

Vethaak, A. Dick, and Juliette Legler. “Microplastics and human health.” Science 371.6530 (2021): 672-674.

Danopoulos, Evangelos, et al. “A rapid review and meta-regression analyses of the toxicological impacts of microplastic exposure in human cells.” Journal of Hazardous Materials (2021): 127861.