Diálogos interdisciplinares: um caminho para pavimentar entendimentos mais profundos na modelagem em Ecologia

A modelagem de sistemas ecológicos requer passos que devem ser bem compreendidos por quem realiza a modelagem e por quem deseja entendê-la. A interface da Ecologia com a Filosofia contribui para o esclarecimento de conceitos, além de cumprir um papel heurístico na construção de processos de modelagem mais profundos e inteligíveis.

Da interação interdisciplinar, emergem entendimentos e novos questionamentos. Autor: Jeferson Coutinho.

Como o encontro entre uma filósofa da ciência e um ecólogo pode contribuir para o avanço de uma área da Ecologia? Temos algo a ganhar com esse diálogo? E se a resposta for “sim”, quem exatamente ganha nessa história? Foi na busca de uma solução para os problemas existentes em determinada área da Ecologia que um tal diálogo se iniciou, envolvendo o ecólogo Jeferson Coutinho e a filósofa da ciência Luana Poliseli. A questão central que impulsionou esse diálogo foi a tentativa de modelar conceitualmente sistemas ecológicos para entender mais claramente quais seriam as variáveis ambientais que mais influenciariam a diversidade funcional das abelhas nos agroecossistemas e suas repercussões para o serviço de polinização. Mais precisamente, a intenção era saber como a diversidade de atributos morfológicos, fisiológicos e comportamentais das abelhas poderiam afetar o serviço de polinização em sistemas agrícolas e como um sistema agrícola poderia funcionar como um filtro capaz de selecionar o conjunto de tais atributos disponíveis nesse tipo de sistema.

Esta questão central levantou várias outras questões acessórias que necessitavam de aprofundamento teórico para uma melhor compreensão do fenômeno de interesse. Algumas dessas questões foram: Como medimos a diversidade funcional em Ecologia? Que conceito de função usamos em estudos empíricos? Como entendemos a relação entre variáveis ​​ecológicas em diferentes escalas espaço-temporais? Todas essas questões exigiram uma exploração minuciosa do que já era conhecido na literatura ecológica, mas também demandaram análises da consistência teórica do que estava disponível para se trabalhar.

Notavelmente, também precisávamos encontrar uma maneira de modelar o sistema de interesse por meio de etapas pragmáticas, à luz de uma teoria da explicação consistente com o que estávamos procurando. Diante das necessidades expostas, a interação com Luana, com sua formação e experiência em filosofia da ciência, abriu campos de diálogo muito frutíferos, em particular se tivermos em vista a grande complexidade do sistema em análise. O primeiro avanço foi uma compreensão mais clara do que estávamos tentando analisar. No processo de modelagem teórica, é fundamental termos clareza sobre o que queremos modelar, apontando o contexto relevante do fenômeno. Nos encontros realizados, os questionamentos feitos por Luana serviram como balizadores para minha própria compreensão do fenômeno, pois era inevitável o uso de exemplos didáticos e analogias para uma melhor compreensão do que eu queria dentro da Ecologia. A cada nova indagação, o uso de recursos imagéticos e esquemáticos (Figuras 1 e 2) foi fundamental para estabelecer maior clareza sobre o que buscávamos modelar, requerendo explicações dos mecanismos subjacentes ao fenômeno de interesse, buscando-se compreender cada vez mais quais níveis de análise, ou seja, quantos e quais níveis mecanísticos e contextuais seriam importantes em nosso caso particular.

Figura 1: Primeiro esboço dos mecanismos subjacentes ao fenômeno que estávamos interessados em modelar. Nesse primeiro momento, havia noção de 3 escalas espaciais de interesse na modelagem do fenômeno ecológico, que tinha a intenção de propor um modelo preditivo sobre a estrutura funcional de uma comunidade de abelhas nativas, bem como acerca da manutenção de seus serviços de polinização em um agroecossistema. Do lado esquerdo, indicamos que há dinâmicas no nível das metacomunidades, na mancha de hábitat e no nível das flores individuais que são importantes filtros ambientais que determinam a estrutura funcional das comunidades de abelhas. Nesse momento, ainda não estavam claras as possíveis relações dentro de cada escala de observação (lado direito do diagrama), o que apontou para um caminho de busca de entendimento de relações complexas entre níveis de organização, escalas de observação, bem como fatores reguladores de populações e comunidades,  para que houvesse melhor entendimento do fenômeno de interesse.

Figura 2. Esboço dos mecanismos que ocorrem na escala da paisagem, considerando três dos seus descritores: proporção de agricultura, diversidade e configuração. Para cada descritor, são propostas previsões da diversidade funcional de abelhas em agroecossistemas, de acordo com os modelos de metacomunidades. A emergência do entendimento sobre esses mecanismos e a proposição dessas previsões se deram com o uso das heurísticas descritas no corpo do texto e ao longo de constantes interações com Luana Poliseli. Mais detalhes sobre os modelos de metacomunidades podem ser vistos em Leibold et al. (2004). Algumas dessas previsões sobre a configuração da diversidade funcional em agroecossistemas foram testadas e os resultados apresentados no artigo de Coutinho et al. (2021).

Nesse processo, Luana trouxe constantes contribuições à medida que se debruçava sobre meu próprio progresso na compreensão do fenômeno e a minha forma de estabelecer os pilares da modelagem. Detalhes sobre esta análise podem ser vistos em artigo publicado no ano de 2020, no qual ela apresenta um modelo sobre a emergência da compreensão científica, que expõe as principais características dessa compreensão, como sua formação gradual, sua relação entre habilidades e imaginação, e sua capacidade de seletividade do conhecimento disponível.

Contudo, entender o que queríamos modelar foi apenas o primeiro passo. Ao longo de nossas interações, sentimos a necessidade de utilizar uma teoria da explicação científica, apoiando-nos em entendimentos relativamente recentes sobre o uso de explicações mecanísticas na ciência, como podemos ver, por exemplo, em trabalho de John Matthewson e Brett Calcott. Essa escolha decorreu das possibilidades que essa abordagem nos deu para modelar fenômenos que envolviam processos operando em múltiplas escalas de espaço e tempo, bem como da perspectiva de que relações não-lineares aconteciam entre processos ocorridos nessas escalas. Pautamos a escolha em um estudo aprofundado e colaborativo da literatura da chamada nova filosofia da ciência mecanística, guiada por discussões que visavam entender a abordagem e como o fenômeno ecológico poderia ou não ser modelado de acordo com ela. Nesse processo dialógico, percebemos que o fenômeno a ser modelado era de grande complexidade e, consequentemente, uma explicação mecanística não poderia ser totalmente aplicada ao nosso fenômeno, ainda que pudesse – como o fez – desempenhar um papel heurístico, ou seja, de orientação na condução da modelagem dos processos relevantes para o entendimento do fenômeno de interesse.

O novo corpo de conhecimento produzido foi um conjunto de heurísticas construídas de acordo com a nova filosofia da ciência mecanística e com teorias ecológicas. Essas heurísticas tiveram papel fundamental na pesquisa, pois guiaram a atividade de modelagem teórica em Ecologia. Este conjunto de heurísticas é descrito e discutido no artigo Philosophy of science in practice in ecological model building (Filosofia da ciência na prática na construção de modelos ecológicos). Nesse trabalho, discutimos o desenvolvimento de uma estrutura conceitual que unifica a explicação mecanística, as ciências dos sistemas complexos e a teoria de metacomunidades para modelar a estrutura funcional de uma comunidade de abelhas nativas, bem como a manutenção de seus serviços de polinização em um agroecossistema. Além disso, empregamos a teoria organizacional das funções ecológicas para esclarecer os conceitos e processos mais elementares a serem entendidos em termos funcionais ao longo de nosso trabalho, bem como a busca de variáveis, escalas espaço-temporais e relações de causa e efeito que pudessem apoiar a modelagem do fenômeno ecológico.

As seguintes heurísticas tiveram papel central nesse trabalho interdisciplinar de modelagem ecológica:

1) Caracterização do fenômeno: a descrição do fenômeno a ser modelado e do que será considerado em sua explicação;

2) Esboço do mecanismo: o desenvolvimento de diagramas (geralmente incompletos e passíveis de mudança ou mesmo abandono ao longo do processo de modelagem) para representar as relações entre os referenciais teóricos e o fenômeno, como podem ser vistos nas Figuras 1 e 2;

3) Estrutura hierárquica: esta heurística permite visualizar a interação entre diferentes escalas espaciais e temporais, criando uma estrutura que identifica e localiza os (e a quantidade de) níveis em que o mecanismo (ou mecanismos) estão organizados na superestrutura do fenômeno;

4) Condições possibilitadoras: as variáveis ​​envolvidas nas atividades dos mecanismos sob investigação que são relevantes para a produção do fenômeno de interesse;

5) Distinção de componentes operacionais: essa heurística distingue os componentes e as funções das condições possibilitadoras dentro dos mecanismos envolvidos e especifica as relações e os limites entre esses componentes;

6) Mudança nos componentes operacionais: esta heurística permite explorar cenários alternativos e prever possíveis cursos distintos do sistema sob investigação, uma vez que os componentes operacionais sejam modificados;

7) Frequência de evidências: indica a causalidade entre os elementos das condições possibilitadoras, conforme informações probabilísticas e mecanísticas já disponíveis na literatura científica ou obtidas por meio das heurísticas anteriores, apontando, também, o que ainda carece de validação empírica;

8) Esquema do mecanismo: modelo mecanístico final, obtido após a utilização das heurísticas acima.

Esse conjunto de heurísticas auxiliou em diferentes momentos da elaboração do modelo teórico. Na primeira proposição do “esboço do mecanismo”, por exemplo, percebi que não conseguiria chegar a um esquema minimamente razoável de comunicação sobre o fenômeno e as variáveis ​​relevantes. A cada novo esboço de mecanismo, novos desafios e novas soluções foram se apresentando, o que exigia mais esforço para compreender o que estava posto na literatura científica sobre o tema, indicando suas limitações e agregando as evidências que já estavam disponíveis, bem como buscando esforços de sínteses das teorias e dos conceitos que foram mobilizados no trabalho. A heurística “estrutura hierárquica” também contribuiu para a delimitação de processos que interagem em diferentes escalas de espaço e tempo e permitiu uma compreensão adequada do fenômeno sob modelagem.

A cada novo passo na construção do modelo, eu precisava revisar a literatura ecológica de uma perspectiva mais crítica sobre o fenômeno. Não se pode construir um modelo conceitual se não se conhece o conjunto de variáveis ​​e as condições de interação entre elas ​que são relevantes para sua proposição. Isso não significa que devamos começar a proposição do modelo conhecendo todas as variáveis ​​relevantes. Isso tiraria uma das grandes virtudes da arte de modelar: um refinamento gradual de nossas construções teóricas sobre o funcionamento do mundo. À medida que avançava na construção do modelo, mais inteligível o fenômeno se tornava. Foi possível estabelecer com mais clareza relações de causa e efeito de forma não espúria, na medida em que as heurísticas me colocavam em uma posição de investigação cada vez mais profunda acerca do fenômeno.

Os modelos derivados da teoria de metacomunidades, por exemplo, apontavam para processos ecológicos que interagem em diferentes escalas espaço-temporais, o que me ajudou a pensar com mais clareza sobre o sistema de interesse, elencando o que parecia mais fundamental para prever os rumos da diversidade funcional de abelhas no cenário modelado. Esta etapa foi fundamental para derivar novas hipóteses que poderiam ser testadas em estudos empíricos futuros.

Neste trabalho, estabelecemos a construção de uma narrativa unificacionista envolvendo um conjunto relevante de processos ecológicos e os potenciais padrões de diversidade que eles podem gerar no contexto dos agroecossistemas. Vejo isso como um avanço no campo da Ecologia, pois conseguimos olhar para o sistema de interesse de forma mais holística, o que também auxilia em propostas de gestão voltadas para a conservação dos processos ecológicos e dos padrões de diversidade que eles geram no espaço.

Dentre os importantes aprendizados derivados dessa pesquisa colaborativa, posso destacar: 1) a interação com a Filosofia da Ciência contribuiu para uma compreensão cada vez mais clara do fenômeno ecológico, na medida em que os questionamentos gerados me colocaram em uma posição de busca profunda por questões não tão claras na Ecologia Funcional; 2) a Teoria organizacional das funções ecológicas indicou caminhos mais robustos de delimitação conceitual na construção do arcabouço teórico, especialmente no que diz respeito à identificação de características ou traços das abelhas que têm importância funcional, os quais podiam ser traços de resposta ou traços de efeito (para mais detalhes a respeito desses dois tipos de traços, veja aqui); 3) o próprio arcabouço teórico contribuiu para a derivação de novas hipóteses que podem ser testadas em estudos empíricos; e 4) aprender a construir o modelo enquanto estava imerso nas etapas metodológicas de sua própria construção ajudou a refazer caminhos de compreensão do fenômeno ecológico, ressignificando a forma como concebo meu fenômeno de interesse.

Encorajo a utilização do conjunto de heurísticas que construímos nesse trabalho interdisciplinar, que aproximou Ecologia e Filosofia da Ciência, em outros estudos ecológicos, de modo que possamos investigar a adequabilidade dessas heurísticas em relação a outros fenômenos de grande interesse para a Ecologia. É importante ter claro, contudo, que não se trata de alguma espécie de receita, a ser meramente seguida, mas de um caminho derivado de uma interação frutífera que vem rendendo a pavimentação de uma linha de pesquisa pautada na interdisciplinaridade como forma de lidar com fenômenos complexos, que requerem múltiplos olhares na tentativa de torná-los mais inteligíveis.

Jeferson Gabriel da Encarnação Coutinho

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA) e Universidade Federal da Bahia (UFBA)

PARA SABER MAIS

Leibold, Mathew A. “The Metacommunity Concept and Its Theoretical Underpinnings“. The Theory of Ecology, edited by Samuel M. Scheiner and Michael R. Willig, Chicago: University of Chicago Press, (2011), pp. 163-184.

Giovanetti, M.; Albertazzi, S.; Flaminio, S.; Ranalli, R.; Bortolotti, L.; Quaranta, M. Pollination in Agroecosystems: A Review of the Conceptual Framework with a View to Sound Monitoring. Land (2021), 10, 540.

Wood, D.S. Karp, F. DeClerck, C. Kremen, S. Naeem, C.A. Palm. Functional traits in agriculture: agrobiodiversity and ecosystem services. Trends Ecol. Evol., 30 (2015), pp. 531-539.

Coutinho, J.G., E., Garibaldi, L.A., Viana, B.F. The influence of local and landscape scale on single response traits in bees: a meta-analysis. Agric. Ecosyst. Environ., 256 (2018), pp. 61-73

2 comentários em “Diálogos interdisciplinares: um caminho para pavimentar entendimentos mais profundos na modelagem em Ecologia”

  1. Muito bom este texto, parabéns!
    Confesso que tive um pouco de dificuldade em entender algumas partes mas entendi a ideia geral. Acho interessante que mais estudos ecológicos sejam feitos assim, com um entendimento mais bem pensado do fenômeno e não simplesmente testando hipóteses que às vezes nem tem muito embasamento (algo que me parece ser comum na ecologia atualmente).

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