Nunca estamos realmente sozinhos

Em levantamentos sobre a biodiversidade, muitas regiões geográficas acabam sem uma boa amostragem das espécies que nelas vivem. As remotas ou com um número muito grande de espécies entram nessa lista. Outro local com uma diversidade ainda pouco descrita é, surpreendentemente, a nossa própria casa. Pesquisas recentes se concentraram na caracterização de comunidades bacterianas em ambientes fechados. Dentro de uma casa, cozinhas e banheiros geralmente têm comunidades microbianas distintas uns dos outros. Além disso, a composição de microorganismos em uma determinada casa (ou num cômodo específico dentro da casa) pode ser influenciada por quem a utiliza, e pela presença de animais de estimação. Esses ambientes criados por nós oferecem novos habitats não só para microorganismos como bactérias, archaea e fungos, mas também para artrópodes. Cientistas da Universidade Estadual da Carolina do Norte (NC State), em Raleigh, nos Estados Unidos, observando suas próprias casas, perceberam que os lares poderiam abrigar uma ampla diversidade de vida além dos habitantes humanos, plantas e animais de estimação. Eles então investigaram 50 casas na cidade de Raleigh em busca desses moradores e encontraram mais de mil espécies nas residências, incluindo inúmeras espécies de aranhas, formigas, besouros, ácaros, moscas e mosquitos (Figura 1). Dentre os artrópodes mais comuns estavam: besouros, aranhas, sciarídeos, formigas e cecidomiídeos (Figura 2). Em uma única residência, foram encontradas mais de duzentas espécies!

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Figura 1. Resumo dos resultados encontrados pelos cientistas que investigaram os artrópodes de 50 casas em Raleigh, NC. Figura traduzida a partir da original de Leong et al 2017.

 

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Figura 2. Representantes das cinco famílias encontradas mais frequentemente nas casas em Raleigh, NC. (A) Besouros de carpete (Dermestidae), (B) Aranhas araneomorfas (Theridiidae), (C) Mosquitos sciarídeos comedores de fungos (Sciaridae), (D) Formigas (Formicidae) e (E) mosquitos cecidomiídeos (Cecidomyiidae). Fotos de Matthew A. Bertone, reproduzidas de Leong et al 2017.

Os cientistas descobriram que a limpeza da casa, uso de pesticidas e posse de animais não influenciavam significativamente a composição da comunidade de artrópodes. No entanto, a diversidade de artrópodes nos lares investigados era fortemente influenciada pelo acesso ao ambiente exterior: quartos com mais portas e mais janelas possuíam maior diversidade de artrópodes. Quartos com carpetes também abrigavam mais espécies de artrópodes do que os quartos que não os possuíam. As comunidades de artrópodes eram semelhantes na maioria dos tipos de quartos, mas os porões exibiam comunidades mais exclusivas (Figura 3). A ideia de que salas abertas em andares térreos têm uma maior biodiversidade de penetras pode não parecer atraente, mas evidências de estudos anteriores sugerem que muitas de nossas doenças crônicas e modernas estão associadas à nossa falta de exposição à diversidade biológica, particularmente à microbiota (que pode ser transportada por insetos vetores). Pensando por esse lado, os quartos com mais tipos de artrópodes podem ser quartos mais saudáveis.

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Figura 3. Espécies encontradas exclusivamente em porões das casas em Raleigh, NC. (A) grilo camelo (Rhaphidophoridae), (B) isópode terrestre (Armadillidae), (C) milípede (Paradoxosomatidae), (D) ácaros-escaravelho (Oribatida). Fotos de Matthew A. Bertone, reproduzidas de Leong et al 2017.

Ao estudarem casas em outras cidades, os cientistas encontram ainda mais espécies, algumas delas novas para a ciência, praticamente todas mal estudadas. Motivado por esses levantamentos, um dos autores, Rob Dunn, começou a pedir ajuda fora do mundo acadêmico para catalogar a diversidade dos lares, lançando uma das iniciativas de ciência cidadã (tradução livre de citizen science). O termo é aplicado a projetos que contam com a participação do público leigo na coleta e análise de dados. Os projetos mais comuns pedem ajuda do público para o monitoramento da biodiversidade. No Brasil, temos algumas iniciativas como por exemplo, o projeto SAVE Brasil, que promove a observação e o monitoramento de aves brasileiras. Voltando para os artrópodes que vivem conosco, o projeto Never Home Alone cadastrado na plataforma iNaturalist, agora busca a ajuda do público para registrar as espécies em casas ao redor do mundo. Desde sua criação, em julho de 2018, o projeto já conta com 3878 observações de 972 espécies (acesso em 10/11/2018). As observações foram documentadas por fotos enviadas por mais de 1200 pessoas. De acordo com Dunn, alguns dos dados mais interessantes estão vindo dos trópicos. Uma aranha-caranguejo em particular, assim chamada por sua capacidade de se mover para os lados e para trás, parece ser onipresente nos trópicos. Em um registro enviado da Índia, uma aranha-caranguejo gigante está sobre uma escova de dentes, superando-a em tamanho (Figura 4A). Apesar das pessoas que vivem na Ásia tropical estarem acostumadas com a espécie em suas casas, isso não era conhecido pela maioria dos cientistas. Inúmeras espécies de aranhas também podem ser encontradas em nossas casas aqui no Brasil (Figura 4B-D).

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Figura 4. Aranhas-caranguejo encontrada em casas nas regiões tropicais. (A) aranha-caranguejo gigante registrada em uma casa na Índia (Sparassidae); (B) aranha-caranguejo (Thomisidae) registrada no quintal da minha casa, em São Paulo, SP. A aranha branca fica difícil de localizar na foto pois está camuflada na flor. Ela está logo abaixo da folha, comendo um inseto. (C) aranha papa-moscas também encontrada no meu quintal em São Paulo (Salticidae); (D) aranha papa-moscas (Salticidae) posando para a foto sobre um Darwin de pelúcia na minha sala na USP.

Seu interesse e experiência com a biodiversidade doméstica também forneceu a Dunn material suficiente para um livro com o mesmo nome do projeto, “Never Home Alone”. Nele, Dunn decreve a vida selvagem que se acumula em todos os cantos de nossas casas e de nossos corpos, desde nossos umbigos, axilas e rostos até a ducha do banheiro. Dentre as curiosidades que Dunn cita está a constatação de que chuveiros quentes e úmidos são ideais para o crescimento de biofilmes contendo trilhões de bactérias, incluindo espécies de Mycobacterium que são prejudiciais à saúde humana. Também destaca que o número de espécies de plantas e borboletas em nossos jardins está correlacionado com a comunidade de microorganismos em nossa pele; que algumas baratas evoluíram e agora têm aversão a glicose, evitando assim a armadilha com este açúcar e veneno; e que os cães podem nos transmitir tanto patógenos, como bactérias benéficas. Acima de tudo, Dunn, um cientista simpático e muito entusiasmado, com quem pude conversar brevemente na NC State, quer passar uma clara mensagem: de que a saúde de um ecossistema depende de sua biodiversidade. Uma casa contendo maior diversidade, provavelmente inclui organismos (especialmente microorganismos) que são vitais para estimular nosso sistema imunológico. E um ecossistema com nichos totalmente ocupados por diversas espécies provavelmente é mais resiliente e resistente à invasão por pragas e patógenos.

 

Os resultados desses projetos recentes nos permitiram descobrir que o bioma dos lares é maior do que se imaginava. Em muitas cidades, o espaço das casas e apartamentos excede o espaço não construído. Se quisermos ter uma relação harmoniosa com as espécies que vivem conosco, precisamos entender o máximo possível sobre elas. Precisamos compreender quais são essas espécies, seus hábitos e como as mudanças globais afetam a sua distribuição e frequência. De acordo com Dunn, hoje aceitamos que estamos sujeitos às mesmas leis da evolução pela seleção natural que outras espécies. Isso já foi, inclusive, um tema abordado algumas vezes neste blog, aqui e aqui. Precisamos agora aceitar que também estamos sujeitos às mesmas leis ecológicas. Nos encaixamos na complexa comunidade de organismos com os quais compartilhamos nossas vidas. As mudanças que fazemos em nossas cidades e nossas casas têm implicações diretas na nossa saúde, por exemplo. E você, já parou para observar seus pequenos hóspedes hoje? Da próxima vez que avistar um, em vez de dar uma chinelada, considere tirar uma foto e submetê-la ao iNaturalist para contribuir com o catálogo de espécies tropicais e, quem sabe, montar um álbum de fotografias da família estendida.

Tatiana Teixeira Torres (USP)

Para saber mais:

Nicola Twilley (2018) With Bugs, You’re Never Home Alone. The New York Times, Oct. 29, 2018. Matéria detalhada do The New York Times descrevendo o Never Home Alone, um projeto de ciência cidadã com o objetivo de catalogar as aranhas, insetos e outras criaturas que vivem em nossas casas.

Amber Williams (2018) Monsters That Live on You. The New York Times, Oct. 25, 2018. Matéria especial do dia das bruxas, mostrando em realidade aumentada (com aplicativo que deve ser instalado em smartphone), os organismos que vivem muito próximos ou dentro de nós.

 

2 comentários em “Nunca estamos realmente sozinhos”

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