Quando a evolução e a medicina se encontram

Populações africanas são as mais geneticamente variáveis do mundo. Infelizmente, essa alta variabilidade pode representar um problema para os indivíduos com ancestralidade africana, na hora em que eles precisarem encontrar um doador de medula óssea.

Todas as populações humanas são variáveis, pois os indivíduos diferem uns dos outros em seus genomas. Porém, a quantidade de variação genética não é a mesma em todas populações. Há algum tempo já se sabe que populações africanas são aquelas que possuem a maior variabilidade. Isso significa que os indivíduos africanos são, em média, mais diferentes uns dos outros do que aqueles de outras regiões. Consequentemente na África cada gene ocorre em mais “versões” (ou alelos) diferentes. Neste post vou apresentar uma ideia originalmente publicada por Noah Rosenberg e Jonathan Kang num artigo que mostrava que as diferenças nos níveis de diversidade genética têm implicações para além das questões acadêmicas, influenciando assuntos de relevância social.

Primeiro, cabe perguntar: o que determina a diversidade genética de populações humanas? Hoje em dia temos uma boa hipótese para explicar a distribuição mundial da variabilidade.  Com base em achados fósseis, estudos arqueológicos e análises genéticas, temos evidências de que nossa espécie se originou na África, e de lá se dispersou para o restante do globo. O êxodo da África teve como primeira parada o oriente médio, com subsequentes ocupações da Europa e da Ásia. A partir de lá, populações ocuparam regiões do Sudeste Pacífico, o Nordeste Asiático e finalmente a América.

Esses deslocamentos deixaram uma marca na variação genética de populações, pois quando populações saem de uma localidade e ocupam um novo território, apenas um subconjunto dos indivíduos se desloca para o novo local. Assim, parte da diversidade genética é perdida quando um novo território é ocupado. Isso explica porque a diversidade é maior na África, e torna-se progressivamente menor em populações mais distantes, que ocupam lugares longe da África, e cuja ocupação dependeu de sucessivas rodadas de deslocamentos populacionais. As populações menos variáveis do mundo estão na América, pois são aquelas que se originaram pela maior sucessão de migrações desde a África (Figura 1).

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Figura 1. Os círculos grandes representam populações e os pequenos círculos coloridos representam variantes genéticas. As setas indicam a direção de eventos de migração. Repare que à medida que populações se dispersam, ocupando novos territórios, parte da variação genética existente é perdida. Assim, populações que ocupam regiões mais remotas apresentam menos diversidade genética (veja a América, por exemplo).Figura de Rosenberg e Kang (2015).
Da diversidade à compatibilidade

Esse achado genético tem implicações para questões biomédicas. Para certas doenças humanas, incluindo vários tipos de câncer, o transplante de  medula óssea é uma solução. A medula óssea contém células que são capazes de produzir novas células sanguíneas. As células com esse potencial são chamadas de “células-tronco hematopoiéticas”. O transplante de medula consiste em transferir as células de um indivíduo saudável para um que possui alguma doença ou limitação na produção de células sanguíneas. Para que o transplante tenha sucesso, é necessário que as células de hospedeiro e do doador sejam semelhantes do ponto de vista imunológico (ou “compatíveis”), o que evita que o tecido transplantado seja rejeitado.

A compatibilidade imunológica é particularmente importante para um conjunto de proteínas envolvidas na resposta imune, chamadas de proteínas HLA. Havendo diferenças entre paciente e doador para os genes que codificam proteínas HLA, há imensas chances de o tecido transplantado ser rejeitado, ou de haver sérias complicações após o procedimento. Por causa disso, no processo de triagem de possíveis doadores, quatro genes HLA são cuidadosamente investigados, e o transplante ideal é aquele entre indivíduos idênticos para esses genes.

Não é fácil encontrar um doador e um receptor idênticos. São 4 genes que precisam ser iguais entre eles, e para cada gene todo nós carregamos dois alelos, um que herdamos de nossas mães e outro de nossos pais. Assim, deve haver uma correspondência perfeita entre genótipos formados por 10 alelos. Como há literalmente milhares de alelos para cada um dos genes HLA, a chance de se encontrar um doador idêntico em todos os genes ao paciente torna-se muito baixa. É por essa razão que a primeira opção para buscar doadores são os familiares do paciente: como eles compartilham ancestrais em comum, aumenta a chance de haver compartilhamento de alelos. Mas, caso não exista um doador apropriado entre os familiares, torna-se necessário procurar um doador não aparentado. É aí que entram os Registros de Doadores de Medula Óssea: grandes bases de dados com informações sobre o HLA de até milhões de doadores.

No Brasil o REDOME (Registro de Doadores de Medula Óssea) possui mais de 4 milhões de doadores registrados. Já no Estados Unidos o NMPD (National Marrow Donor Program) mantém o registro chamado “be the match”, com 16 milhões de doadores registrados. É nesses bancos que um paciente busca doadores com a combinação de genes HLA idêntica à sua. Quando há um doador compatível, ele é contactado para que as células hematopoiéticas sejam extraídas e o transplante realizado.

E é aqui que as questões de diversidade genética e de transplantes se encontram. Uma suspeita originalmente levantada por pesquisadores com base em modelagem de dados era a de que indivíduos de populações com muita diversidade genética teriam mais dificuldade em encontrar doadores. A lógica é relativamente simples: se na África há mais diversidade genética, cada indivíduo com ancestralidade africana poderá ter um de muitos tipos de genótipo HLA, dificultando que se encontre um doador idêntico a ele. Já em populações europeias há menos variação, e consequentemente há mais indivíduos geneticamente semelhantes. Isso aumenta a chance de se encontrar um doador apropriado. Assim, a maior diversidade genética em genes HLA de africanos pode potencialmente dificultar as chances de eles encontrarem doadores. A análise de dados do registro de doadores norte- americano, ilustrada na Figura 2, deixa clara essa dificuldade. Indivíduos norte-americanos que se identificam como “afro-americanos” tem têm uma chance de apenas 66% de encontrar um doador compatível em 7 entre 8 alelos HLA. Já um europeu tem 97% de encontrar alguém com esse nível de compatibilidade.

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Figura 2. As chances de encontrar um doador diferem dependendo da ancestralidade. Em verde está indicada a chance de um indivíduo encontrar um doador compatível (com 7 dos 8 alelos idênticos), em azul a chance dele não encontrar um doador. Os dados são para o registro de doadores dos Estados Unidos. A chance de encontrar doadores compatíveis é muito mais baixa entre africanos (http://blackbonemarrow.com/why-race-matters/).

E não é só a maior diversidade genética entre africanos que dificulta suas chances de realizar um transplante. Entre afro-descendentes nos Estados Unidos, a chance de localizar o potencial doador compatível é reduzida em relação àquela para europeus, assim como a chance de o possível doador estar em boa saúde, viabilizando o transplante. Esses fatores, não surpreendentemente, parecem resultar de diferenças na renda entre indivíduos de ancestralidade europeia e africana.

Diante desse quadro, o que fazer? Nos estados Unidos, grupos já se organizaram para divulgar entre afro-americanos a necessidade de aumentar o recrutamento para o registro de doadores, de modo dirigido a essa parcela da população. E no Brasil, onde estamos? No momento ainda estamos diagnosticando a magnitude do problema, realizando os primeiros estudos para avaliar se há diferença entre brasileiros com maior e menor ancestralidade africana na hora de encontrar um doador compatível. Esse é um trabalho que está sendo desenvolvido na USP, liderado pela pós-doutoranda Kelly Nunes.

Esse exemplo ilustra a interação entre aspectos aparentemente muito distintos de uma população: a sua diversidade genética, fatores sociais que influenciam o recrutamento, saúde e disponibilidade de doadores, e o consequente impacto desses fatores sobre a chance de um transplante ser realizado com sucesso. O conhecimento a respeito de um processo evolutivo, que resulta na perda de variantes genéticas à medida que populações migram, tem relevância direta para o planejamento de uma área de saúde pública. A diversidade genética das populações carrega uma marca de sua história evolutiva mas também influencia características socialmente relevantes, às quais precisamos ficar atentos.

Diogo Meyer (USP)

Para saber mais:

Noah A. Rosenberg and Jonathan T. L. Kang . 2015. Genetic Diversity and Societally Important Disparities GENETICS September 1, 2015 vol. 201 no. 1 1-12

Bergstrom T.C., Garratt R. J., Sheehan-Connor D., 2012 Stem cell donor matching for patients of mixed race. B.E.J. Econ. Anal. Policy 12: 30.

Prugnolle F., Manica A., Balloux F., 2005 Geography predicts neutral genetic diversity of human populations. Curr. Biol. 15: R159–R160.

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