É muito comum nos depararmos com a afirmação de que foi encontrado algum “gene para” uma característica. Essa afirmação não tem lugar apenas quando falamos de doenças monogênicas (que envolvem somente um gene), como, por exemplo, a fenilcetonúria, mas também em relação a características complexas, como inteligência, agressividade ou até mesmo felicidade. Para a maioria das pessoas, quando falamos em um gene “para” alguma característica, estamos dizendo que o gene determina a característica. Ou seja, estamos assumindo uma visão determinista genética.
O determinismo genético é um problema importante, de grande alcance e relevância social, como discute, em artigo publicado em Frontiers in Genetics, Eugenie C. Scott, antropóloga física norte-americana que foi Diretora Executiva do Centro Nacional para a Educação Científica (National Center for Science Education), nos Estados Unidos de 1987 a 2013. A cada ano sabemos mais sobre a complexidade dos sistemas genéticos e de suas interações com fatores epigenéticos e ambientais, mas, ainda assim, crenças determinísticas genéticas ainda prevalecem entre os indivíduos. As pessoas geralmente têm dificuldade de entender a ideia de que fatores genéticos e ambientais interagem. A predominância de um discurso determinista na mídia foi documentada por autores como Dorothy Nelkin e M. Susan Lindee, no livro A mística do DNA. Esse discurso não é resultado apenas de uma compreensão limitada da estrutura e dinâmica do sistema genético, mas se ancora em fenômenos sociais e crenças profundas, inclusive religiosas, como mostraram Roxanne Parrott e colaboradores. O ensino de genética e biologia celular e molecular deveria contribuir para questionar tais visões, mas ele termina por reforçá-lo, como mostramos, por exemplo, em estudo sobre como genes são explicados em livros didáticos de seis países.
O determinismo genético pode ter um impacto negativo sobre a compreensão das pessoas sobre saúde e doença. Por exemplo, pode levar as pessoas a desvalorizarem o papel de fatores ambientais e experienciais em condições como doenças mentais, câncer, obesidade, diabetes, o que pode afetar negativamente sua prevenção, com impacto sobre a saúde pública.
Para educar cidadãos capazes de se posicionar e agir com conhecimento e criticidade diante de questões que envolvem conhecimento sobre genes e tecnologias gênicas, é necessário que o ensino de biologia celular e molecular seja baseado em explicações não deterministas, que considerem múltiplas causas em interação, que produzem, por meio de processos desenvolvimentais complexos, múltiplos efeitos alternativos. Isso é ainda mais importante no cenário contemporâneo, no qual entendemos como natureza e cultura se codeterminam, de uma maneira que faz com que questionar se uma característica cognitiva ou comportamental, entre outras, é um produto da natureza ou da cultura não faça mais sentido. Sabemos, por exemplo, que nossas experiências podem alterar padrões de metilação que silenciam genes, levando-os a se expressar. Uma discussão recente sobre esse assunto é encontrada no livro O genoma em desenvolvimento (The developing genome), de David S. Moore.
O filósofo da biologia Lenny Moss, em seu livro O que genes não podem fazer (What genes can’t do), realizou uma análise conceitual que levou à distinção de dois significados atribuídos a esse conceito, gene-P e gene-D.
O gene-P corresponde ao gene como determinante de fenótipos ou diferenças fenotípicas. Esse conceito é a origem da famosa expressão “Gene para” características, que corresponde a um conceito instrumental, uma ferramenta para fazer cálculos experimentais, sem assumir hipótese de correspondência com a realidade. Trata-se de um desvio de uma sequência normal que resulta em alguma previsibilidade numa diferença fenotípica. Investigado a um nível populacional, ele permite estimar a proporção da variação de uma dada característica numa população que é explicada pela variação genética. Para viabilizar esse estudo, assume-se, como simplificação, a hipótese de que aquela sequência determina fenótipos. Essa interpretação determinista somente pode ser assumida porque se trata de conceito instrumental, sem hipótese de correspondência com a realidade.
Quando falamos sobre “genes para olhos azuis”, por exemplo, estamos nos referindo a genes como se determinassem a característica “olhos azuis”. Contudo, alelos em vários loci gênicos distintos podem resultar numa diminuição da pigmentação da íris, através de diferentes efeitos sobre os processos bioquímicos que conduzem a tal pigmentação. Assim, o “gene para cor dos olhos azuis” corresponde a uma disjunção de alelos responsáveis pela diminuição da pigmentação da íris (G1∨G2∨G3∨,…, Gn). Essa disjunção é uma expressão lógica, não uma entidade material à qual possamos dizer que um conceito se refira.
Isso não nega, no entanto, a utilidade do conceito de gene-P: para explicar e prever os resultados de um cruzamento entre um pai de olhos castanhos e uma mãe de olhos azuis, é possível usar de modo proveitoso a análise de heredogramas, acompanhada da simplificação apropriada (no contexto dessa análise) de que haveria um alelo que determinaria, por si só, a presença de olhos azuis. Por essa razão, podemos dizer que o gene-P é uma ficção útil, um conceito que tem poder explanatório e preditivo em alguns modelos e procedimentos importantes na Genética, mas, não obstante, é um conceito instrumental, ao qual não devemos somar uma hipótese de correspondência a uma entidade real nos sistemas vivos que determinaria, por si só, características fenotípicas. Dentro desses limites, não há qualquer problema em falar num gene para uma característica. O problema é que os limites de aplicabilidade do gene-P frequentemente não são considerados.
O gene-D, por sua vez, é um recurso desenvolvimental tão importante quanto outras causas do desenvolvimento, a exemplo dos fatores epigenéticos e ambientais. Ele é tipicamente concebido no discurso científico de maneira realista, como entidade material definida por alguma sequência molecular no DNA que age como uma unidade de transcrição, fornecendo moldes moleculares para a síntese da estrutura primária de proteínas ou de RNAs funcionais. Genes-D – tipicamente – não determinam características fenotípicas por si mesmos.
Uma confusão entre gene-P (determinante de fenótipos, mas sem correspondência a uma sequência de nucleotídeos específicas) e gene-D (correspondente a uma sequência específica, mas sem papel de determinar características) é uma fonte importante do determinismo genético.
Análises de livros didáticos de Biologia do ensino médio mostram como essa confusão tem lugar e quais suas consequências. Em livros de seis diferentes países (Brasil, Suécia, Austrália, Canadá, Estados Unidos e Grã-Bretanha), o uso do conceito de gene-P é bastante comum, mas, mais do que isso, ao longo dos livros ele é usado em combinação com o gene molecular, sem qualquer referência aos contextos de aplicação e às limitações desses distintos modos de entender genes. A natureza de um uso válido e adequado da ideia de “genes para” características dificilmente se mostra de modo claro no discurso dos livros didáticos. Uma das razões reside na ausência de um tratamento histórica e epistemologicamente informado dos genes, nem mesmo com o objetivo modesto de ensinar com modelos científicos e sobre modelos científicos.
Nesses livros, usualmente os estudantes aprendem sobre genes como determinantes de fenótipos ao aprender e resolver exercícios sobre heredogramas, sem qualquer pista de que estejam lidando com um modelo específico, com suposições simplificadoras da relação genótipo-fenótipo que somente podem ser aceitas no domínio de aplicação daquele modelo. À medida que o discurso dos livros didático sobre genes se desenvolve, eles são localizados no DNA como unidades estruturais e funcionais. Assim, a propriedade de ser um determinante de fenótipos é simplesmente transferida do conceito de gene-P para o conceito molecular clássico. O cenário está pronto para a educação de deterministas genéticos: o uso da mesma palavra, “gene”, sem qualquer discussão do papel de modelos na ciência, conduz a uma mistura de atributos de diferentes modelos, que não corresponde a qualquer modelo construído na história da genética.
Charbel N. El-Hani
(Instituto de Biologia/UFBA)
PARA SABER MAIS:
Gericke, N.; Hagberg, M.; Santos, V. C.; Joaquim, L. M. & El-Hani, C. N. (2014). Conceptual variation or Incoherence? Textbook discourse on genes in six countries. Science & Education 23, pp. 381-416.
Moore, D. S. (2015). The developing genome. Oxford: Oxford University Press.
Moss, L. (2003). What genes can’t do. Cambridge, MA: The MIT Press.
Nelkin, D. & Lindee, M. S. (1995). The DNA mystique: The gene as a cultural icon. Ann Arbor, MI: University of Michigan Pess.
Oyama, S. (1985). The ontogeny of information. Durham, NC: Duke University Press.
Parrott, R. et al. (2004). Deriving lay models of uncertainty about genes’ role in illness causation to guide communication about human genetics. Journal of Communication., v. 54, n. 1, p. 105-122.
Scott, E. C. (2013). This I believe: we need to understand evolution, adaptation, and phenotype. Frontiers in Genetics, v. 3, p. 1-2.
Figura: Cartoon publicado na Newsweek, em 13/01/1997.
Muito bom o texto!
Percebo que tal concepção de como agem os genes reforça ,cada vez mais, uma ideia ingênua de que a biotecnologia é e será a solução para possíveis “erros” referentes a um tal “gene para”. Notamos explícitamente essa ideia quando o mesmo tema é tratado na seção de ciência dos principais jornais.
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Sim, há relações entre o que alguém considera ser um gene e como entende seu papel nos sistemas vivos e o modo como aprecia e potencialmente fará uso de tecnologias genéticas. Por isso mesmo o entendimento dos genes é um aspecto central do ensino de genética e biologia molecular. Tem sido comum uma apresentação de diferentes atributos do gene, em diferentes modelos, amalgamados. Isso tem favorecido determinismo e educado cidadãos sem as bases conceituais para compreender e agir de modo informado em sociedades cada vez mais marcadas pela genética.
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Parabéns pela clareza e perspicácia.
Creio que as limitações do ensino da genética do nível médio resultam, também, da herança histórica de como os resultados dos trabalhos de Mendel são apresentados nos livros didáticos e da insegurança como o legado de Darwin ainda é tratado.
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Bom vê-lo por aqui Geraldo. Sem dúvida, há muitos problemas no tratamento dos legados de Mendel e Darwin. Isso é em si tema para várias postagens. Mas apenas como uma provocação para discussões futuras: a própria ideia de que o trabalho de Mendel tem relação com o desenvolvimento do conceito de gene, na primeira década da genética mendeliana, é disputada (Veja-se, por exemplo, Kampourakis, K. Mendel and the Path to Genetics. http://link.springer.com/article/10.1007/s11191-010-9323-2, ou o meu artigo Mendel in Genetics Teaching. http://link.springer.com/article/10.1007/s11191-014-9685-y).. Em breve a revista Genética na Escola publicará número muito interessante sobre o legado de Mendel e o ensino de genética (http://www.geneticanaescola.com.br/). Um dos conceitos de gene discutidos nessa postagem emergiu na genética clássica, como um conceito instrumental, sem hipótese de correspondência com a realidade, mas de enorme utilidade na análise de genealogias, o “gene para” um traço, ou o gene-P, nos termos de Lenny Moss (citado na postagem). Ele se confundiu, contudo, com o conceito do gene molecular, que emergiu com a dupla hélice (gene-D, nos termos de Moss), e isso tem levado a incontáveis confusões que afetam sobremaneira a capacidade dos cidadãos de entender claramente o discurso sobre genes e seu papel nos sistemas vivos.
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De fato, eu me permitiria estender o problema de entendimento desses fenômenos, não apenas ao cidadão comum, mas também aos iniciados em Ciências Biológicas e Área da Saúde, de maneira geral.
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Oi Geraldo
Sem dúvida! Mostra a necessidade de aprofundarmos as discussões sobre conceito de gene na formação de nossos alunos
Abs
Charbel
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Prezado Charbel, nesse sentido, como você tem percebido as discussões em torno da epigenética, em especial as ideias da Eva Jablonka?
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Prezado Givanildo, obrigado pelo interesse no blog. A discussão sobre epigenética é central na biologia atual. Mostra, por exemplo, que a questão de se uma característica é produzida pela natureza ou pela cultura deve ser dissolvida, porque nos leva a respostas equivocadas por ser uma questão equivocada, ao criar uma dicotomia que não é apoiada pelo que sabemos sobre a biologia. A alteração epigenética dos padrões de expressão gênica pela experiência faz com que as fronteiras entre natureza e cultura sejam borradas: a natureza age via cultura, a cultura age via natureza. A compreensão disso eliminaria um sem número de confusões nas sociedades atuais, alimentadas por discursos deterministas biológicos, de um lado, ou deterministas sociais, do outro. Em suma, este é um dos desenvolvimentos mais excitantes e importantes do conhecimento biológico das últimas décadas, a espera de uma boa transposição para a formação dos cidadãos. O livro de David S. Moore, The Developing Genome, citado na postagem, é um esforço notável nessa direção. Em relação às ideias de Jablonka, me convencem muito os argumentos sobre os vários sistemas de herança não-genética em operação nos sistemas vivos. Os argumentos sobre algum retorno ao lamarckismo, contudo, não me apetecem tanto. São contextos científicos tão distintos que aproximar ideias de hoje a ideias de Lamarck e seus contemporâneos, na virada do século XVIII ao século XIX, corre riscos que não me disponho a correr, por exemplo, de uma interpretação anacrônica das ideias de Lamarck. Nisso eu não sigo com Jablonka.
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Excelente texto! Gostaríamos apenas de alertar que o link para a primeira referência (GERICKE et al, 2014) não está funcionando. Ele acaba levando ao link de outra referência (PARROT et al, 2004).
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Obrigado Adriano, corrigiremos.
Abs
Charbel
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Muito bom!!! Só assim para melhorarmos o ensino de genética com qualidade.
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