Darwin e a Síndrome da Domesticação.

Se você prestar atenção, perceberá que os animais domésticos têm algumas características em comum, tais como orelhas caídas, pelagem apresentando manchas brancas e focinhos mais curtos. Você já se perguntou o porquê dessas similaridades, conhecidas como Síndrome da Domesticação?

A Teoria da Evolução de Charles Darwin, publicada em 1859 sob título de “A Origem das Espécies”, não discorre ao longo de suas mais de quinhentas páginas sobre os mecanismos hereditários que seriam subjacentes a sua revolucionária ideia. No entanto, em seu livro seguinte “A Variação das Plantas e Animais Domesticados”, de 1868, Darwin realiza um detalhado estudo sobre hereditariedade ao analisar espécies domesticadas, apenas poucos anos após a elaboração das Leis da Hereditariedade por Gregor Mendel.

O estudo exaustivo de Darwin sobre as espécies domesticadas revelou um interessante fenômeno: animais domesticados em geral apresentam uma série de características comportamentais, morfológicas e fisiológicas comuns. Comparando as espécies domesticadas com seus ancestrais selvagens, Darwin percebeu que as mesmas além de mais dóceis, apresentavam, em geral, orelhas menores e caídas, manchas claras na pelagem, focinhos mais curtos, dentes menores, menor capacidade cranial, ciclos reprodutivos não sazonais e comportamento juvenil. Para tal combinação de traços presente nos animais domesticados foi dado o nome de Síndrome da Domesticação.

Desde então, o entendimento das bases genéticas da Síndrome da Domesticação vem sendo um dos grandes, e mais antigos, desafios para pesquisadores na área da Genética e Evolução. As primeiras teorias elaboradas para explicar tal fenômeno foram apresentadas pelo próprio Darwin, que sugeriu duas possíveis explicações. A primeira estava relacionada a mudança ambiental sofrida por essas espécies, que transitaram de um ambiente hostil para um ambiente mais ameno, ou gentil, durante o processo de domesticação. Tal explicação carecia de evidências e não contemplava vários aspectos fundamentais, como especificar como se deu essa indução ambiental sobre o fenótipo ao longo das gerações, e quanto dessa mudança se tornou de fato hereditária. Além disso, ao aceitar essa explicação, aceitamos a premissa que animais domesticados ao serem reintroduzidos em seu ambiente selvagem perderiam os traços adquiridos com o passar do tempo. Estudos recentes vão de encontro a essa hipótese, ao mostrar que animais domesticados que se tornaram ferais mantem características adquiridas com a domesticação por mais de 40 gerações em ambiente selvagem.

A segunda hipótese de Darwin dizia que as características associadas a domesticação poderiam ser produtos da hibridização de diferentes espécies. Essa explicação era baseada no fato da possível geração de nova variabilidade ao cruzarmos espécies distintas. No entanto, ela não explica porque sempre as mesmas características tendem a aparecer independentemente das espécies hibridizadas. Mais tarde, diversos estudos mostraram que, ao contrário do que propunha Darwin, as espécies domesticadas de animais são resultado da modificação de uma espécie ancestral, e não dos cruzamentos de espécies distintas.

Alguns estudos experimentais foram realizados no último século no intuito de entender melhor como as características relacionadas a Síndrome da Domesticação surgem nas espécies domesticadas. O mais longo desses estudos envolve a domesticação de raposas e já dura mais de 50 anos. Durante esse período, raposas selvagens foram cruzadas e os filhotes mais dóceis de cada geração eram selecionados, e posteriormente, cruzados entre si. Interessantemente, as características que compõem a Síndrome da Domesticação surgiram concomitantemente e relativamente rápido durante o cruzamento de indivíduos selecionados apenas para docilidade.

Em 1979, o pesquisador responsável pelo estudo com raposas propôs, em sintonia com a ideia de Darwin sobre mudança ambiental, que ao reduzir o nível de estresse nos animais em domesticação, haveria uma mudança nas respostas hormonais, e que a longo prazo isso mudaria de maneira permanente a expressão de certos genes. Mais tarde, outros pesquisadores, propuseram que as mudanças provavelmente ocorriam em reguladores gênicos que se expressam muito cedo no desenvolvimento embrionário, e que são responsáveis por ativar e desativar vários genes em diferentes tecidos, o que explicaria a variabilidade de fenótipos afetados.

Na última década, uma nova hipótese ganhou força para explicar a Síndrome da Domesticação. De acordo com essa hipótese, todos os traços alterados nos animais domesticados estão relacionados do desenvolvimento das células da crista neural, um tipo de célula tronco embrionária. Durante o desenvolvimento embrionário dos vertebrados em geral, tais células se formam perto do tubo neural, e mais tarde migram para diferentes partes do corpo. Ao analisar o destino das células da crista neural, constatou-se que elas influenciam tecidos relacionados a maioria dos fenótipos associados com a Síndrome da Domesticação.

Na prática, poderíamos descrever de maneira resumida como isso acontece da seguinte forma: células da crista neural formam parte das glândulas adrenais, que produzem adrenalina, um hormônio fundamental para a resposta de luta ou fuga nos animais. Glândulas adrenais pouco desenvolvidas podem explicar as mudanças de comportamento, resultando em animais mais dóceis e mansos. Células da crista neural também afetam diretamente a pigmentação, formação do neurocrânio, e desenvolvimento de orelhas, dentes e mandíbula. Sendo assim, ao selecionar um animal mais dócil, estamos selecionando um animal com células da crista neural “danificadas”, o que afetará toda uma série de fenótipos morfológicos secundários: manchas brancas são resultado de problemas de pigmentação, e orelhas caídas resultam de problemas na formação da cartilagem, por exemplo.

Recentemente, um estudo com camundongos criados em um celeiro abandonado na Suíça mostrou, pela primeira vez, a presença de características da Síndrome da Domesticação em animais não selecionados intencionalmente. Nesse estudo, os camundongos eram livres para entrar e sair do celeiro, e eram alimentados pelos pesquisadores. Com o passar do tempo, os animais passaram a não apresentar comportamentos de esquiva em relação aos pesquisadores, e foi notada em alguns animais a presença de manchas brancas na pelagem e diminuição do comprimento da cabeça. Com o passar das gerações, essas características foram aumentando em frequência na população de camundongos desse celeiro.

Os camundongos desse estudo teriam se autodomesticado, e tal processo teria tido os mesmos efeitos fenotípicos da domesticação direcionada por humanos. Esse estudo pode nos fazer repensar se alguns processos de domesticação direcionada, como no caso dos cães, não teriam surgido por uma inicial auto domesticação. Além disso, nos dá subsídio experimental para explicar o processo de domesticação dos gatos, inferido sistematicamente como a mais bem-sucedida autodomesticação conhecida.

Tábita Hünemeier (USP)

PARA SABER MAIS:

Sánchez-Villagra et al. (2016) The taming of the neural crest: a developmental perspective on the origins of morphological covariation in domesticated mammals. Royal Society Open Science 3(6): 160107.

Avise JCAyala FJ (2009) In the Light of Evolution: Volume III: Two Centuries of Darwin. Washington (DC): National Academies Press (US); 2009.

 

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