Há mais de dois séculos, o zoólogo e anatomista alemão Johann Friedrich Blumenbach mencionou em seu livro “On the Natural Variety of Mankind” (1795) que o ser humano seria “a mais perfeita de todas as espécies domesticadas”. Para o autor, a “domesticação” seria resultado dos diferentes climas, dietas e estilos de vida que teríamos estado sujeitos ao longo do tempo, e que nos levariam a mudanças morfológicas. Charles Darwin escreveu dois volumes sobre “A Variação de Animais e Plantas Domesticados” (1868), no qual em um trecho salienta: ”o homem em muitos aspectos pode ser comparado a estes animais que foram domesticados”. Em muitos aspectos, mas evidentemente não em todos, e não no principal deles, dado que nossa espécie nunca teve seu acasalamento controlado em larga escala para seleção de certas características. No entanto, isso não impede que ainda assim algumas características tenham sido selecionadas não intencionalmente, e provavelmente algumas delas estejam ligados ao processo de domesticação.
Darwin observou que a domesticação levava a uma série de fenótipos herdados em conjunto aos quais chamou de Síndrome da Domesticação. Neste contexto, as espécies domesticadas tendem a diferir de seus ancestrais de maneiras bem específicas, como foi tratado em um post anterior. Uma característica importante dos animais domesticados é que eles suportam a presença de humanos e tendem a suportar a presença de outros de suas espécies. Os humanos são extremamente sociáveis, ao contrário de seus parentes simiescos, que tendem a não tolerar bandos rivais na natureza. Humanos também são menos agressivos que seus ancestrais e mais cooperativos, além de mais graciosos na sua aparência. Mas seríamos nós domesticados?
Em 2017, um estudo tentou estabelecer as primeiras bases genéticas de uma possível auto domesticação em humanos. Os autores compararam genomas de humanos modernos e antigos, e de várias espécies domesticadas e seus correspondentes selvagens, a fim de procurar genes associados às características de domesticação, como docilidade e fenótipo gracioso. Os resultados mostraram um número de variantes gênicas associadas à domesticação que se sobrepuseram entre animais domésticos e humanos. Tais resultados apontam para um provável processo de domesticação não intencional em humanos, extremamente importante no processo de socialização ao longo de nossa evolução, e que teria usado as mesmas rotas genéticas que a seleção artificial em animais domesticados.
Recentemente, em outro estudo, pesquisadores identificaram uma rede gênica envolvida na trajetória evolutiva da face humana e da pró-socialidade, que está ausente no genoma neandertal. O experimento é baseado nas células de pacientes com Síndrome de Williams, que apresentavam diferentes mutações no gene BAZ1B. A Síndrome de Williams é um distúrbio associado a deficiências cognitivas, crânios menores e extrema simpatia. Analisando as linhagens celulares, os pesquisadores descobriram centenas de genes sensíveis ao BAZ1B que influenciam o formato da face em humanos. Ao comparar esses genes em humanos modernos, dois neandertais e um denisovano, eles então constataram que os humanos apresentam muitas mutações nas regiões regulatórias. Isso sugere que essas regiões poderiam estar sob seleção natural. E como muitos desses mesmos genes também foram selecionados em outros animais domesticados, pode-se inferir que os humanos modernos também podem ter passado por um processo de domesticação recente, mas nesse caso auto-domesticação.
Esses estudos abrem novas perspectivas para as afirmações feitam por Blumenbach e Darwin há mais de um século e constroem uma nova abordagem para as questões levantadas por diferentes linhas de pesquisas que tentam entender a evolução da sociabilidade humana.
Tábita Hünemeier
IB/USP
PARA SABER MAIS:
Sánchez-Villagra MR and van Schaik CP (2019) Evaluating the self-domestication hypothesis of human evolution. Evol Anthropol. 28(3):133-143.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/30938920
Imagem: https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0185306