A teoria darwinista da evolução tem muitas aplicações práticas. A atenção a essa dimensão prática revela dificuldade distinta de um problema mais comumente comentado, a proposição de supostas alternativas pseudocientíficas (como o design inteligente), frequentemente associadas a uma compreensão limitada e/ou equivocada da natureza da ciência. Trata-se de que mesmo aqueles que aceitam a teoria darwinista, ou estão engajados em debates de fato científicos a seu respeito, por vezes perdem de vista seu papel na abordagem de problemas sociais e ambientais importantes. O ensino de evolução, em todos os níveis de escolaridade, poderia fazer mais para superar esse estado de coisas, se concedesse mais espaço a aplicações da teoria. Recursos para isso não faltam, a exemplo de livro de Douglas Futuyma disponível em português, em publicação da Sociedade Brasileira de Genética, que aborda o assunto.
Foi a partir desse cenário que o ensaio intitulado “Reconciliando Pasteur e Darwin para controlar doenças infecciosas”, de Samuel Alizon e Pierre-Olivier Méthot, me chamou a atenção. Eles discutem como uma maior integração da microbiologia clínica, da ecologia e da biologia evolutiva tem importante papel a cumprir na compreensão das patologias, no desenvolvimento de novas terapias e na manutenção da eficácia de terapias existentes, a exemplo da vacinação e do uso de antibióticos.
Não se trata de um trabalho de história da ciência, apesar de algumas menções históricas. As duas personagens históricas são citadas no título sobretudo como símbolos de duas áreas do conhecimento cientifico nas quais tiveram papeis fundadores, e cuja aproximação – como realidade atual e como necessidade – é o tema central do artigo. Somente 150 anos após as grandes realizações de Darwin e Pasteur, que foram marcos do século XIX, as áreas de microbiologia clínica e evolução estão convergindo. E, a partir de uma compreensão da saúde e da doença menos reducionista e unicausal, esta convergência promete uma melhor compreensão de como se relacionam microorganismos, seus hospedeiros e o ambiente, de tal maneira que as interações estabelecidas podem se revelar patogênicas ou não. Afinal, temos um imenso microbioma em nossos corpos, formado por microorganismos que não somente não estão causando doenças, mas têm papel fundamental em nossa saúde. Em contraste com modelos que atribuem as causas de doenças infecciosas a microorganismos unicamente, isso sugere que é nas alterações de relações entre hospedeiros, microorganismos e ambiente que podemos encontrar as melhores explicações para várias doenças.
A reivindicação de uma maior interação da microbiologia clínica e da biologia evolutiva não é novidade. O famoso biólogo molecular Joshua Lederberg lamentava, ainda em 1988, a raridade de tal interação, ao tratar as pandemias como fenômenos evolutivos. Contudo, os frutos de uma interpretação evolutiva e ecológica das doenças infecciosas, especialmente no que diz respeito ao seu controle, apenas em tempos mais recentes começam a ser colhidos de modo mais extenso. E isso apesar de microbiologistas terem reconhecido desde o século XIX que teorias evolutivas podiam ser aplicadas e testadas usando microorganismos, de o próprio Darwin ter escrito a respeito destes, e de médicos terem aplicado ideias evolutivas ainda no século XIX para entender a natureza das doenças infecciosas, assim como as mudanças sofridas por estas.
Doenças emergentes
Entre os temas nos quais ideias evolutivas podem cumprir papel fundamental, temos a emergência de novas doenças infecciosas, um dos principais flagelos da atualidade. Pode-se encontrar nos estudos do próprio Pasteur indícios de que a biologia evolutiva poderia ajudar no entendimento de doenças infecciosas emergentes. Ele mostrou que, após várias passagens por novos hospedeiros, a virulência de uma linhagem de microorganismos – isto é, a capacidade do agente infeccioso de causar doença severa, medida pela proporção de pessoas com a doença que ficam gravemente doentes ou morrem – poderia diminuir para o hospedeiro original, enquanto aumentava para os hospedeiros subsequentes na série. Desse modo, afirmou Pasteur, novos padrões de virulência e contágio poderiam surgir, citando os exemplos da varíola, sífilis, peste e febre amarela.
Hoje, a contribuição da biologia evolutiva para os estudos sobre a emergência de doenças se tornou evidente, por exemplo, com a construção de filogenias microbianas. Com a disseminação de tecnologias eficientes e rápidas de sequenciamento de DNA, tornou-se corriqueiro usar sequências genéticas de populações de microorganismos que infectam um ou vários indivíduos para inferir filogenias que podem conter informações epidemiológicas importantes. Por exemplo, a importância da transmissão ambiental no ciclo de vida do vírus da gripe aviária foi revelada por meio da análise filogenética de genomas virais. Na epidemia de Ebola na África Ocidental que se estendeu de 2014 a 2016, um novo marco foi alcançado na aplicação de inferências filogenéticas para estudar doenças emergentes, com a publicação de genomas completos de vírus amostrados de 78 infecções, chegando-se posteriormente a 1.000 genomas, o que tornou possível obter uma visão detalhada de como a epidemia dispersou entre os países.
Frequentemente, uma nova doença infecciosa emerge quando o parasita se adapta a novos hospedeiros, o que também torna evidente a relevância de um olhar evolutivo. Mais uma vez, uma antecipação dessa ideia pode ser encontrada em Pasteur, que argumentava que formas atenuadas de parasitas já existem nas populações e que sua virulência poderia ser reforçada em condições ambientais adequadas, o que acarretaria a emergência de novas doenças ou epidemias. Esse fenômeno é ilustrado pelo surto de Chikungunya na Ilha de Reunião, nos anos de 2005 e 2006. No final de 2005, houve um primeiro surto, de menor extensão, com alguns milhares de casos, mas este foi seguido, em 2006, por um imenso surto, com centenas de milhares de casos. Estudos evolutivos explicaram a diferença na extensão dos surtos: em 2006, a maioria dos vírus apresentava uma mutação em uma de suas proteínas, o que aumentou muito a capacidade do mosquito Aedes albopictus de atuar como vetor da doença. A extensão do segundo surto foi decorrente do fato de que, graças a esta mutação, o vírus estava fazendo amplo uso, em 2006, desse novo vetor, além daquele historicamente associado à doença, o bem conhecido Aedes aegypti. Foi possível concluir, inclusive, que a população de vírus que emergiu no final de 2005 estava fadada à rápida extinção, mas foi recuperada pelo evento evolutivo de substituição de um aminoácido por outro numa proteína chave (graças à mutação), que tornou possível que ele persistisse na população de hospedeiros e, com a disponibilidade de um novo vetor, causasse o grande surto de 2006.
Dez anos depois, processos evolutivos similares poderiam estar envolvidos nas epidemias de Ebola na África Ocidental e de Zika nas Américas, agora através da fixação de uma mutação que aumentou a infectividade – isto é, a capacidade de um agente infeccioso de causar infecção, medida como a proporção de pessoas expostas ao agente que se tornam infectadas – associada ao vetor Aedes aegypti.
Evolução da virulência
Outra aplicação importante do pensamento evolutivo no estudo das doenças infecciosas se ocupa da evolução da virulência. Alizon e Méthot retomam a explicação da evolução da virulência proposta pelo patologista comparativo norte-americano da virada do século XIX para o XX Theobald Smith. De acordo com Smith, linhagens altamente virulentas sofreriam seleção negativa, porque a elevada mortalidade de seus hospedeiros diminuiria seu fitness (ou aptidão), pelo simples fato de que, ao eliminar hospedeiros, os vírus estariam se privando do ambiente do qual dependem para se replicar. Consequentemente, a diminuição da virulência seria favorecida evolutivamente e, dado tempo suficiente, os parasitas se tornariam avirulentos.
Como discutem Alizon e Méthot, o trabalho de Smith deu origem a uma visão alternativa sobre hospedeiros e parasitas, que se desenvolveu em paralelo à visão mais convencional e dominante no século XX, que eles denominam “narrativa da bala mágica” (magic bullet narrative). De acordo com esta última visão, a expectativa é de que seremos sempre capazes de encontrar algum medicamento que seja seletivamente capaz de matar qualquer microorganismo. É uma perspectiva similar ao otimismo tecnocrático diante da crise ambiental. Contudo, a expectativa de que sempre teremos uma solução tecnológica para os problemas ambientais que causamos ou para as patologias que nos acometem não me parece razoável. Mais parece um tipo de wishful thinking do que uma avaliação feita sobre bases racionais.
Malgrado sua influência, a proposição de Smith foi desafiada nos anos 1980, a partir de avanços na teoria evolutiva que levaram ao reconhecimento de que a seleção natural pode operar simultaneamente em múltiplos níveis de organização. Com base nessa explicação hierárquica da seleção, epidemiologistas evolutivos propuseram que a virulência poderia ser favorecida pela seleção natural, a depender de soluções de compromisso (trade-off) entre níveis de seleção.
Evidências a favor da hipótese de trade-off foram obtidas em estudos sobre o HIV-1, um dos subtipos do vírus da imunodeficiência humana. Na ausência de tratamento, a virulência do HIV é medida como o inverso do tempo até a manifestação da AIDS. Por definição, portanto, a virulência do HIV diminui a duração da infecção. Contudo, a virulência pode aumentar devido a uma maior probabilidade de transmissão pela via sexual. O trade-off se origina, então, de duas forças opostas: vírus com menor virulência causam infecções mais longas mas pouco contagiosas, enquanto vírus mais virulentos causam infecções curtas e mais contagiosas. A existência desse trade-off foi apoiada pela dinâmica evolutiva observada em estudos epidemiológicos e evolutivos do HIV-1.
Este trade-off tem consequências epidemiológicas: a dinâmica populacional pode gerar uma vantagem transitória para linhagens mais virulentas no começo de uma epidemia. Esse efeito de curto termo foi encontrado em estudos laboratoriais em que uma mistura de bacteriófagos – vírus que infectam bactérias – virulentos e não virulentos foi usada para produzir um surto numa população de bactérias. A partir de uma proporção inicial de 1:1 entre bacteriófagos virulentos e não virulentos, observou-se primeiro um aumento para 100:1, seguido de uma diminuição de 10:1 a favor dos bacteriófagos virulentos. O mesmo efeito foi encontrado em infecções naturais em uma espécie de fringilídeo (Haemorhous mexicanus).
Fenômenos evolutivos explicam, assim, porque doenças infecciosas emergentes podem exibir um pico inicial de virulência que as tornam muito perigosas, ainda mais porque a falta de imunidade na população de hospedeiros também contribui para amplificar a virulência. Implicações sociais e éticas seguem do fato de que intervenções voltadas para a saúde pública que afetem a transmissão de parasitas (por exemplo, vacinação) podem ter impacto sobre a evolução da virulência de uma doença infecciosa. O que é melhor ao nível individual pode exibir relações de compromisso (trade-offs) com o que é melhor para a população, o que aumenta ainda mais a relevância da contribuição que pode ser dada por biólogos evolutivos, acostumados a investigar processos evolutivos operando em diferentes escalas.
Evolução da resistência bacteriana
Uma das aplicações mais conhecidas da teoria evolutiva no estudo das doenças infecciosas diz respeito à evolução da resistência bacteriana a antibióticos. Apesar de uma perspectiva ecológica e evolutiva na compreensão das doenças ter atravessado o século XX, ela somente teve maior atenção com o aprofundamento do problema da resistência em todo o globo, o fracasso de programas de erradicação de doenças e as crescentes mudanças ambientais, associadas com frequência à emergência de novas doenças e surtos. Desde os anos 1980, a compreensão de microorganismos como agentes evolutivos e do papel do ambiente na saúde e na doença tem ganhado cada vez mais espaço.
Nesse período, estudos evolutivos têm trazido também contribuições para o entendimento da resistência. Por exemplo, a análise de dados obtidos nos Estados Unidos e na Irlanda sugeriu que hospitais grandes favorecem a dispersão da resistência a antibióticos, mostrando-se preferível uma rede de pequenos hospitais, que maximizam o risco de extinções locais de variantes resistentes que tenham surgido recentemente. Resultados como este mostram o alcance que estudos que utilizam uma perspectiva evolutiva podem ter nas políticas públicas no campo da saúde.
Outro exemplo é encontrado na conclusão contra-intuitiva, mas evolutivamente plausível, de que pode ser preferível usar doses menores de medicamentos para conter uma infecção do que tentar eliminá-la. A Figura 1 mostra como isso pode ocorrer, através do fenômeno de liberação competitiva (competitive release).

O fenômeno da liberação competitiva mostra como a biologia evolutiva pode indicar estratégias que são por vezes contra-intuitivas e desafiadoras de uma perspectiva clínica. Contudo, elas podem, ainda assim, ser as melhores estratégias, como mostram modelos matemáticos indicando que alternar entre antibióticos numa população pode selecionar níveis de resistência mais elevados (inclusive, resistência a múltiplos antibióticos) do que ocorre quando se tratam diferentes partes da população com diferentes antibióticos. Como argumentam Alizon e Méthot, isso mostra as consequências potencialmente graves de uma abordagem empírica de tentativa e erro, sem a orientação de uma moldura teórica apropriada à busca de uma estratégia ótima.
A biologia evolutiva propicia parte dessa moldura teórica. Contudo, ela tem lugar marginal na medicina e na formação médica, pelo menos desde a reforma da educação médica fomentada pelo influente relatório de Abraham Flexner, de 1910. Naquele momento histórico, o pensamento evolutivo foi isolado da medicina, num período de crise do darwinismo e de surgimento de uma nova configuração do conhecimento e da formação médica, organizada ao redor de especialidades. Anos depois, a teoria sintética da evolução se afirmaria e a pesquisa sobre evolução aprofundaria cada vez mais nossa compreensão de como as espécies surgem, se adaptam, sofrem mudanças. Biólogos evolutivos de grande renome, como George C. Williams, dedicaram atenção à interação de medicina e evolução desde décadas atrás.
O tempo está maduro para um papel maior da evolução na medicina e saúde pública, em graves circunstâncias nas quais testemunhamos cada vez mais doenças emergentes e abordagens terapêuticas que tiveram papel fundamental no aumento da expectativa média de vida e na qualidade da vida humana começarem a falhar. É preocupante, assim, que num mundo pós-factual, de verdades alternativas, de crescente adesão à pseudociência, a humanidade dê menos atenção ao papel que a ciência pode ter em nossa sobrevivência. Uma visão crítica das relações entre ciência, tecnologia, sociedade e ambiente é certamente necessária, mas ela deve ter o equilíbrio requerido para que se compreenda o papel que a pesquisa científica e, no caso particular dessa postagem, a pesquisa evolutiva pode desempenhar diante de problemas prementes, como os que atingem a saúde pública nesse começo de século.
Charbel N. El-Hani
Instituto de Biologia/UFBA
PARA SABER MAIS:
Alizon, S. & Mëthot, P.-O. (2018). Reconciling Pasteur and Darwin to control infectious diseases. PLoS Biol 16(1): e2003815.
Lederberg J. (1988). Pandemic as a natural evolutionary phenomenon. Social Research 55(3):343-359.
Nesse, R. M. & Williams, G. C. 1996. Evolution and Healing: The New Science of Darwinian Medicine. Phoenix.
O’Malley, M. A. (2009). What did Darwin say about microbes, and how did microbiology respond? Trends in Microbiology 17(8): 341-347.