No início da microbiologia, para identificar uma bactéria era necessário cultivá-la em um meio de cultura apropriado e depois reconhecê-la ao microscópio com o uso de corantes específicos. Com o avanço das técnicas de biologia molecular nas últimas décadas, tornou-se relativamente simples identificar uma espécie de bactéria a partir da sequência do seu DNA. Isso revelou uma surpreendente diversidade de microrganismos que não podiam ser identificados por técnicas tradicionais.
Muitos dos novos microrganismos identificados são simbiontes, ou seja, vivem em estreita relação com outros organismos. Os novos dados mostraram que um número inesperadamente grande de microrganismos co-evoluíram em simbiose com plantas e animais, formando verdadeiras comunidades ecológicas junto com seus hospedeiros. Nós, por exemplo, temos cerca de mil espécies de bactérias ocupando nosso tubo digestivo, distribuídos de maneira organizada e participando da nossa fisiologia.
Novas técnicas mais sofisticadas, além de permitirem identificar quais espécies de microrganismos ocupam nosso corpo, agora também tornam possível identificar as relações de parentesco entre os simbiontes. Por exemplo, se uma bactéria que hoje está na minha mão é descendente de uma bactéria que estava na minha mão há um ano, ou se ela é descendente de uma bactéria que estava no meu rosto. Ou, ainda, se ela é descendente de uma bactéria que estava na mão de outra pessoa e colonizou a minha mão.
Recentemente, pesquisadores nos EUA decidiram explorar estas novas possibilidades técnicas ao extremo (Oh et al., 2016). Eles mapearam todas as espécies de fungos, bactérias e vírus que ocupam diferentes partes do corpo humano e como elas variam no tempo. Foram analisados 17 locais da pele de 12 indivíduos saudáveis em um período curto (1-2 meses) e um período longo (1-2 anos). As principais conclusões, publicadas na revista Cell e resumidas na figura acima, são:
- A biogeografia da pele (quais espécies de microrganismos ocupam quais partes do corpo) é estável e depende de condições da pele como pH, umidade, temperatura, oleosidade e forma;
- A ecologia da pele (a diversidade e a abundância de microrganismos que ocupam cada local na pele) também é estável.
- As bactérias que ocupam determinadas partes do corpo descendem de bactérias que ocupavam as mesmas partes do corpo anteriormente. Isto é, não há recolonização a partir de outras partes do corpo ou a partir de outras pessoas.
- O nível de estabilidade ao longo do ano varia entre pessoas.
- Em um mesmo indivíduo ao longo do ano, a parte com mais variação é o pé.
Em conjunto, estes dados mostram uma surpreendente estabilidade da comunidade de simbiontes que ocupam nossa pele, abrindo novas questões sobre quais os mecanismos que causam esta fidelidade, como e quando os simbiontes são adquiridos, como eles variam entre diferentes povos e qual seu papel na fisiologia saudável da pele.
Do ponto de vista conceitual também surgem perguntas interessantes. A pele, geralmente, é considerada a fronteira entre nós e o mundo, entre um indivíduo e outro. Nosso sistema imunológico aceita estes microrganismos como se fossem nós mesmos e eles participam da nossa fisiologia. Quais, então, os limites individuais de cada um de nós? Nossas células eucariontes da pele ou nossos fiéis e indispensáveis simbiontes?
João Francisco Botelho (Yale University)
Para saber mais:
- Dorrestein Pieter C, Gallo RL, Knight R. 2016. Microbial Skin Inhabitants: Friends Forever. Cell 165:771-772.
- Oh J, et al. 2016. Temporal Stability of the Human Skin Microbiome. Cell 165:854-866.
- Grice EA, et al. 2009. Topographical and Temporal Diversity of the Human Skin Microbiome. Science 324:1190-1192.
- Bouslimani A, et al. 2015. Molecular cartography of the human skin surface in 3D. Proc Natl Acad Sci U S A 112:E2120-E2129.
- Gilbert SF, Sapp J, Tauber AI, Handling Editor James DT, Associate Editor Stephen CS. 2012. A Symbiotic View of Life: We Have Never Been Individuals. The Quarterly Review of Biology 87:325-341.
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