A ciência no centro das atenções

Por que devemos confiar na ciência? O que fortalece e fragiliza a sua capacidade de nos oferecer respostas? A experiência da COVID-19 dá urgência a essa discussão

Frente à pandemia da COVID-19, tornou-se comum defender que decisões devem ser “guiadas pela ciência”, bem como afirmar que dependemos do trabalho dos cientistas para encontrar soluções, através de políticas sanitárias, vacinas ou remédios. Dada a responsabilidade que estamos atribuindo a ela, cabe perguntar: por que devemos confiar na ciência?

A resposta comum é que a ciência “baseia-se num método científico”, o qual balizaria, então, sua objetividade. Essa visão, entretanto, é antiquada e refutada pelos filósofos da ciência. A razão é que não há “um método científico” único que garantiria a objetividade e confiabilidade da ciência. O conhecimento gerado pelos cientistas é fruto de uma imensa diversidade de estratégias, e não é possível identificar “um método” que atribua objetividade àquilo que chamamos de ciência (como já tratamos antes, neste blog).

Felizmente, a filosofia da ciência nos oferece uma outra forma de entender o que torna o conhecimento científico objetivo. Para autoras como Helen Longino e Naomi Oreskes, o conhecimento científico é confiável quando resulta dos esforços de uma comunidade diversa, aberta e afeita ao exercício do debate e da crítica mútua. Nesse ambiente, cientistas individuais podem acertar ou errar, mas as trocas coletivas da comunidade constroem um conhecimento que constantemente se corrige. Nas palavras de Oreskes, “os fatos científicos são afirmações a respeito das quais cientistas estão de acordo”.

A forma como estamos lidando com a pandemia COVID-19 diz muito sobre como o conhecimento científico é construído, sobre como ele pode ser atacado ou fragilizado, e quais seus potenciais e limites. Vamos analisar três histórias recentes, que jogam luz sobre esses temas.

O caso da cloroquina

Antes da atual pandemia, a cloroquina havia se mostrado eficiente para tratar algumas infecções virais e diminuir estados inflamatórios. Portanto, foi natural perguntar se seria eficiente para tratar a COVID-19. Para responder a essa pergunta, sabemos o que fazer: administrar a droga a alguns pacientes e observar se eles sobrevivem mais e/ou têm melhoras mais acentuadas do que aqueles que não receberam a droga. Ainda não dispomos de um consenso sobre a eficiência da cloroquina; porém, um crescente número de estudos vem mostrando que ela é pouco eficaz, trazendo pouco ou nenhum benefício ao paciente com COVID-19.

Então por que a cloroquina tornou-se alvo de tamanho frenesi e empolgação? Vale revisitar estudos feitos no início da pandemia, que atraíram imenso interesse. Numa série de três trabalhos, células cultivadas em laboratório tiveram um decréscimo na quantidade de vírus quando tratadas com cloroquina ou hidroxicloroquina (e aqui vão os links para eles: 1, 2, 3).  Em dois trabalhos que causaram bastante alvoroço, um pequeno estudo francês mostrou um efeito protetivo da hidroxicloroquina (artigos aqui e aqui); porém, foi criticado por não realizar controles estatísticos desejáveis, como a randomização dos indivíduos recebendo o tratamento.

Não obstante, há muitas pessoas advogando a favor do extenso uso da droga. Citando os achados científicos e resultados vistos como promissores, governantes apresentam a cloroquina como solução para uma grave crise sanitária. No Brasil, o presidente apareceu em rede nacional elogiando o remédio. O presidente da França visitou o laboratório que havia obtido os resultados promissores (e que desde então são vistos com cada vez mais ceticismo), fazendo reverências ao pesquisador que havia liderado os estudos.

Esse movimento tem buscado fazer com que a veemência se sobreponha à evidência, o que vai na contramão dos processos que permitem gerar conhecimento confiável. O resultado de experimentos específicos não é sinônimo de “conhecimento científico” num sentido mais amplo. Sim, há estudos científicos que mostram que a cloroquina diminui a carga viral em células. Sim, há estudos indicando possíveis efeitos protetores. Mas o conhecimento não emerge de um ou outro experimento, mas de um consenso construído pela teia de experimentos, de um processo de crítica mútua, que transforma as visões de uma coletividade de especialistas até que se alcance conhecimento confiável. O conhecimento objetivo precisa ser amadurecido pela crítica rigorosa de uma coletividade de pessoas capazes de julgamento treinado.

Frente a esses argumentos, a queixa comum é a de que, em momentos de crise, não podemos nos dar ao luxo de esperar o lento processo científico. Aqui, novamente, uma reflexão filosófica nos ajuda. Se a decisão errada pode ter consequências desastrosas, o amadurecimento da resposta científica (e a espera pelas fundamentais provas clínicas, discutidas em outro post de Darwinianas) nos traz segurança. É o caso da cloroquina: ela não é inócua quando administrada em altas doses, e possui graves efeitos colaterais. Se for administrada de modo descuidado, mais pessoas poderão padecer dos efeitos colaterais do que se beneficiar da prevenção.

Em outros casos, podemos nos dar ao luxo de usar um conhecimento científico ainda não consensual. Por exemplo, considere o pouco que ainda sabemos sobre quanto tempo o vírus SARS-CoV-2 sobrevive em superfícies de cartolina ou plástico, ou se o contágio através dessas superfícies é comum. Será que devemos sempre limpar pacotes que trazemos do mercado? Nesse caso, os custos e benefícios são bastante distintos do caso da cloroquina: limpar recipientes e pacotes com álcool é chato, mas um preço pequeno a se pagar. Se a ciência estiver errada, e o contágio através dessas superfícies for muito raro, teremos perdido alguns minutos de nossas vidas fazendo algo tedioso. Se a transmissão por superfícies for comum, os benefícios serão imensos. Na dúvida, fazer a limpeza parece uma boa aposta. Mas apresentar um conhecimento que não é consensual e que carrega riscos, como o tratamento com a cloroquina, como se fosse cientificamente sólido é uma estratégia política, que pode trazer altos custos: distorce-se o que é conhecimento científico, e a população pode ser exposta a riscos de saúde.

A ciência do distanciamento físico

Planejar e definir a forma de distanciamento físico, estimar seu impacto sobre a saúde humana, prever o seu impacto social e planejar a transição para uma etapa de distanciamento reduzido são desafios imensos no contexto da COVID-19. As decisões a serem tomadas a respeito do momento e da forma de fazer a transição não são simples e envolvem a análise de perdas e ganhos em frentes de saúde, economia e educação, entre outras. A ciência tem ferramentas para auxiliar: modelos matemáticos constroem cenários e fazem previsões da transmissão da doença, dependendo do grau de isolamento adotado.

Como a ciência está sendo ferida nesse caso? Os governantes, as pessoas a quem delegamos a responsabilidade para tomar decisões em benefício da sociedade, muitas vezes tomam decisões com base naquilo que seus cálculos políticos identificam como desejável. O recurso exclusivo à opinião pessoal numa questão em que há argumentos técnicos significa ignorar a ciência, é diminuir sua importância, é desprezar sua forma de chegar ao conhecimento. Poderíamos ir além: recorrer à opinião exclusivamente pessoal para fundamentar decisões que afetam a coletividade é eticamente reprovável e, ademais, fere a racionalidade. Fica patente nesse caso porque Platão, ao tratar da política, insistiu na distinção entre conhecimento (episteme) e opinião (doxa), como já discutimos em outra postagem de Darwinianas.  

Entretanto, os achados científicos nem sempre conduzem a decisões objetivas. A dificuldade no planejamento de políticas sanitárias frente à COVID-19 é um bom exemplo. Há consenso de que o distanciamento é uma medida preventiva para a propagação da doença, mas como faremos a transição para sair dele? Qual nível de relaxamento é tolerável? Qual grau de ocupação de UTIs sinaliza que o relaxamento pode ser considerado? Quais atividades devem ser consideradas básicas, por trazerem benefícios para a população que justificam os riscos ao qual os funcionários estão expostos? Essas respostas não virão exclusivamente da ciência, mas de sua estreita convivência com instâncias políticas e de tomadas de decisão. É desejável que decisões sejam tomadas baseadas na ciência, mas a ciência, por si só, não prescreve um único curso de ação. Como discutido em outro post, é necessária uma visão integrada do problema, dentro da academia e para além dela.

O design inteligente e a cloroquina se encontram

A ciência é atacada por diversos grupos. Um deles é o dos criacionistas que defendem o design inteligente, que negam a teoria darwinista da evolução e invocam um designer. O debate com eles é difícil, e não pelas boas razões que tornam conversas difíceis instrutivas, mas porque suas críticas à evolução não são construídas considerando-se o que propõe de fato a ciência, mas a partir de uma visão de mundo prévia que os leva a questionar a objetividade da ciência. Estas costumam ser conversas pouco produtivas, porque nenhum dos lados parece em posição de aprender com o outro e transformar suas visões.

Será que há semelhanças entre a negação da ciência feita por criacionistas que atacam a evolução com pseudociência, e daqueles que sustentam a eficácia da cloroquina, apesar de evidências contrárias? Nós achamos que sim. Em ambos os casos, ignora-se o que é um consenso sólido na comunidade científica. No caso do criacionismo, a teoria evolutiva darwinista é tratada como uma ideia frágil e pouco corroborada, apesar de ser consensualmente apoiada. No caso da cloroquina a falta de consenso é deixada de lado, apesar de ser evidente que há muitas dúvidas sobre a eficácia da droga. 

Ambas são distorções graves do que constitui conhecimento científico. Tanto no design inteligente, quanto na defesa da cloroquina, as posições estão sendo construídas não a partir da ciência, mas a partir de interesses políticos ou crenças pessoais. Isso é grave, pois introduz dúvidas infundadas sobre a credibilidade da ciência, e semeia-se dúvida sobre sua objetividade. Atacar um instrumento tão valioso como a ciência, quando dela precisamos para resolver problemas tão imediatos, é um comportamento que só podemos chamar de autodestrutivo.

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Dependemos de uma vigilância constante –e de recurso à filosofia da ciência– para decidir qual conhecimento é objetivo. Precisamos estar atentos à forma como o conhecimento científico pretende ser usado, para decidir se aceitamos incertezas. Precisamos distinguir ciência de pseudociência, para não minar nossa confiança nesse instrumento. Mas precisamos também distinguir entre diferentes formas de conhecimentos que devem ter seu valor reconhecido, científicos ou não-científicos. Precisamos de uma dose de humildade, ao lembrar que o conhecimento científico não tem voz própria, e constitui apenas um –sem dúvida importante– elemento no processo de tomada de decisões. Em crises complexas, não há “balas de prata”, que tudo resolvem.

Diogo Meyer (USP) e Charbel Niño El-Hani (UFBA)

Sugestões de Leitura

Alonso Soto. Cuando la vehemencia supera la evidencia: el caso del uso de hidroxicloroquina para el tratamiento del COVID-19. Acta Med Peru  2020

Naomi Oreskes. Why Trust Science? Princeton University Press, 2019

6 comentários em “A ciência no centro das atenções”

    1. Prezado Elias,
      Muito obrigado pelo interesse e pelo comentário. Não entendi bem quanto ao login. Poderia explicar melhor?

      Abraços
      Charbel

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