O que a pandemia nos ensina sobre o papel da ciência em sociedades democráticas?

Em tempos de pandemia, o imperativo de basear as decisões e políticas para enfrentamento da COVID-19 em conhecimento científico virou discurso político e é amplamente advogado nas redes sociais. Mas o que significa – e o que é necessário para – basear em ciência a tomada de decisão?

Após tempos de descrédito na ciência, a pandemia do novo coronavírus trouxe de volta a ciência para o centro do debate público e tem contribuído para o aumento da confiança da sociedade na pesquisa científica (veja aqui e aqui). Esse cenário não só colocou os cientistas em papel de destaque na mídia e no suporte à tomada de decisão, como desencadeou a formação de amplas redes de parceria e colaboração entre cientistas em todos os níveis – local, regional e global – na busca por testes, tratamentos e vacinas.

Em particular, o  imperativo de basear as decisões e políticas para enfrentamento da pandemia em dados e na ciência tornou-se discurso frequente entre alguns políticos e recomendação de organizações multilaterais. Tornou-se também argumento amplamente advogado em redes sociais pelo público em geral e por muitos cientistas de renome. Não há dúvida de que a ajuda da ciência para decidir como enfrentar o avanço da COVID-19 é mais do que bem-vinda, é necessária. No entanto, o que exatamente significa – e o que é necessário para – basear em ciência a tomada de decisão?

Dan Sarewitz – co-diretor do Consórcio para Ciência, Políticas e Resultados e professor de Ciência e Sociedade da Escola para o Futuro da Inovação na Sociedade, da Universidade do Estado do Arizona, nos EUA – escreveu recentemente um artigo em que argumenta que a pandemia do novo coronavírus “oferece uma lição poderosa e extremamente clara sobre o papel apropriado da ciência em ajudar a nos guiar para um futuro melhor”.  O argumento de Sarewitz se baseia no fato – amplamente reconhecido entre os estudiosos das relações entre ciência e sociedade – de que a tomada de decisão envolve muito mais do que dados e conhecimentos científicos. Envolve a disputa de interesses e o conflito de valores na sociedade, o que requer mediação, negociação e deliberações políticas que permitam compactuar acordos.

Imaginar que a ciência possa, sozinha, levar à tomada de decisão não é apenas ingenuidade, é a causa última da politização da ciência e da cientificação da política. A politização da ciência ocorre quando a ciência é manipulada para ganho político. Essa possibilidade é maior quando o conhecimento científico se refere a sistemas complexos e abertos (isto é, conectados a outros sistemas). Em tais sistemas, múltiplos fatores estão em ação e interagem, tornando as relações de causa e efeito mais difíceis de se estabelecer e as previsões mais variáveis, porque mais dependentes dos detalhes considerados. Este é o caso do clima e da previsão sobre as mudanças climáticas. É maior também quando se refere a temas com múltiplas consequências, uma vez que estas  variam conforme a ênfase disciplinar – ou os interesses e valores – a partir dos quais se olha o problema. No caso de alimentos transgênicos, por exemplo, as consequências são muito distintas se focamos nos efeitos na produtividade agrícola de grandes produtores ou nos impactos para perda de variedades crioulas e para as comunidades que as cultivam. Nessas duas circunstâncias – sistemas abertos e complexos e/ou com consequências distintas em dimensões diferentes –, é fácil distorcer ou descontextualizar informações científicas para dar suporte a determinado ponto de vista, valor, política ou discurso político. Quando isso ocorre, frequentemente a ciência acaba presa em uma guerra, em que é usada, inclusive por cientistas, como arma por lados opostos na disputa política. Presa, em vez de servir como suporte para a tomada de decisão, a ciência frequentemente acaba por piorar a controvérsia.

Uma consequência desse processo de politização da ciência é a cientificação da política. Ao manipular a ciência para ganho político, questões políticas, relacionadas a disputas de valores e interesses, se transformam em questões científicas. Desta maneira, políticos escapam de sua responsabilidade de resolver os conflitos impostos pela diversidade de valores e interesses na sociedade – muitas vezes intensos –, apoiando-se na falsa ideia de que a ciência pode atuar como um árbitro neutro. A política climática nos EUA é um exemplo desse processo. Políticos que divergem quanto à necessidade de ações para mitigar as mudanças climáticas frequentemente se apoiam em argumentos científicos, o que gera enorme controvérsia, enquanto que a mediação democrática de valores e interesses entre os grupos que advogam ações e aqueles que preferem a inação é deixada de lado.

Segundo Sarewitz, ao colocar em foco um valor universal – o valor da vida humana –, a pandemia teria permitido consenso e acordo e, com isso, facilitado o caminho para que a ciência dê suporte para a tomada de decisão. Assim, o momento atual seria um exemplo das condições necessárias para que a ciência possa ser útil na tomada de decisão: ser precedida por deliberação política que resolva os conflitos de valores e interesses.

Pelo menos no Brasil, no entanto, a previsão de Sarewitz não se concretizou. Não há acordo no país que o primordial agora é a vida humana. Parte da sociedade brasileira – estimulada e incitada pelo presidente – parece não ver a vida como valor primeiro e universal. Sem resolução dos conflitos de interesse através da política, a ciência tem sido ou negada ou cooptada politicamente. Como o exemplo da cloroquina indica, argumentos científicos relacionados à suposta eficácia do remédio como prevenção ou em casos leves da doença têm sido usados como base de um projeto político – para ganhar apoio de pessoas com menor renda ou do setor empresarial e financeiro, já que um tratamento permitiria atender a necessidade de volta ao trabalho e o interesse de retomada da economia. Similarmente, manter o distanciamento físico tem sido associado a “ser de esquerda”. Como reclamou o prefeito de Belo Horizonte: “Politizou a coisa. Fica parecendo que quem não quer morrer é comunista. E quem quer morrer, mas protesta em caminhonete cabine dupla, é de direita.” Ou como declarou publicamente o presidente no dia em que o país ultrapassou 1000 mortes confirmadas pela COVID-19 em 24 horas: “Quem é de direita toma cloroquina. Quem é de esquerda toma tubaína”. Nesse momento, então, a maneira como o governo federal vem conduzindo o enfrentamento da pandemia no Brasil, em vez de permitir e facilitar que a ciência ajude, tem levado à negação e à politização da ciência. A sociedade brasileira é, portanto, um exemplo às avessas; um exemplo de como, mesmo em uma situação excepcional que facilitaria compactuar e alcançar acordo, é possível criar as condições necessárias para que a ciência não consiga ajudar.

Porém, apesar da situação imposta pelo governo federal, o país é hoje um grande laboratório de parcerias entre cientistas e tomadores de decisão. Muitos governos estaduais, prefeituras, assembleias legislativas e outras instâncias da administração pública, como o Ministério Público, têm trabalhado com o apoio de grupos de cientistas. Análise e modelagem de dados a respeito do número de infectados, de óbitos, de leitos ocupados de UTI, entre outros, vêm dando suporte para as decisões sobre como, quando e onde impor ou reduzir o distanciamento físico (veja alguns exemplos aqui, aqui, aqui e aqui). A frequência e intensidade dessas parcerias é sem dúvida uma outra característica única destes tempos de pandemia, e representam uma oportunidade excepcional para aprendermos sobre como concretizar parcerias efetivas entre cientistas e tomadores de decisão no Brasil.

Por um número grande de razões – entre elas a própria inexperiência e falta de treinamento, tanto de cientistas como de tomadores de decisão –, parcerias efetivas não são fáceis de se estabelecer. As análises científicas estão sendo precedidas por deliberações políticas que buscam acordos e estabelecem objetivos claros? Quais valores, interesses e conhecimentos estão sendo considerados? Como podemos usar esse laboratório fornecido pela COVID-19 para estreitar os laços entre a ciência e a tomada de decisão no Brasil? As respostas a essas perguntas podem nos ajudar a refletir e aprender sobre o papel da ciência na tomada de decisão em sociedades democráticas.

As análises científicas estão sendo precedidas por deliberações políticas que buscam acordos e estabelecem objetivos claros?

Como argumentamos acima, a ciência não é um árbitro neutro que pode resolver ou tirar de pauta conflitos de valores e disputas de interesses, sejam eles relacionados à percepção dos efeitos de alimentos transgênicos, de ações para mitigar mudanças climáticas ou de distanciamento físico para enfrentar a pandemia. Tampouco é, em especial do ponto de vista de valores e interesses, um ator que deva ser privilegiado. Chegar a um acordo sobre o que é valorizado e o que é prioridade é papel da política e, em uma democracia, deve ser estabelecido democraticamente. Nesse sentido, parcerias entre tomadores de decisão e cientistas para resolução de problemas específicos do mundo real – como o enfrentamento da pandemia – precisam partir de objetivos claros, que definam o que é prioridade, e que tenham sido alcançados de maneira democrática e legitimada, levando em consideração a diversidade de interesses da sociedade. Dito de outra forma, a ciência só pode ajudar se, através de participação pública ou representação, a prioridade que  se pretende alcançar tenha sido acordada. A ciência pode certamente informar e, através disso, auxiliar o entendimento do que está em jogo, mas a definição de prioridades deveria derivar de discussão e debate que compactuem acordos entre setores com diferentes necessidades, valores e interesses. Análises e modelagens de dados, por mais informativas que sejam, dificilmente serão integradas e darão suporte à tomada de decisão se não estiverem dentro de um processo maior e mais diverso, que inclua compactuar o objetivo a ser alcançado.

Quais valores e conhecimentos estão sendo considerados?

Já se discutiu antes aqui no blog que a objetividade e a confiabilidade da ciência não se reduzem a um “método científico” único, mas encontram sua legitimidade no esforço de uma comunidade diversa, aberta e treinada para a crítica mútua rigorosa. A ciência é um fazer humano e, por isso, inerentemente social e interativo. Isso significa que a prática científica não é livre de valores; ao contrário, é permeada por eles. Como Hugh Lacey e Pablo Mariconda argumentam, tipos diferentes de valores desempenham funções distintas em cada momento da atividade científica. A “imparcialidade” da ciência, por exemplo, diz respeito a uma etapa específica do fazer ciência: a da avaliação crítica das teorias e hipóteses. Nela, apenas valores cognitivos, relacionados à verificação da adequação empírica, poder explanatório, consistência e coerência, devem estar presentes. Em outros estágios, entretanto, como no momento em que cientistas escolhem seus objetos de estudo e suas estratégias de pesquisa, durante seu desenvolvimento e também quando disseminam seus resultados, uma série de decisões precisam ser tomadas e necessariamente envolvem, não só valores éticos, mas também valores sociais.

A ciência livre de valores é, portanto, um mito. A legitimação da ciência não depende da ausência de influências sociais e culturais. Pelo contrário, como argumenta Matthew Brown, o ideal da ciência livre de valores é indesejável: os cientistas precisam constantemente fazer juízos de valor justamente para assegurar uma prática científica íntegra – noção que leva em consideração tanto as responsabilidades epistêmicas quanto as éticas. Assim, em qualquer parceria que envolva cientistas e o conhecimento científico, valores estão presentes e são bem-vindos.

Esse é um dos motivos pelos quais é importante que, para a resolução de problemas do mundo real, a ciência contribua de maneira interdisciplinar. Isto é, integrando as perspectivas e os conhecimentos de diversas disciplinas. Isto permite considerar a variedade de pontos de vista e conhecimentos parciais – e dos valores por trás deles – vindos de múltiplas áreas da ciência. Nesse sentido, como discutido em postagem anterior, é evidente que muitas disciplinas além da epidemiologia – incluindo a logística e o urbanismo, passando pela ecologia, economia e psicologia, o serviço social, entre muitas outras – são relevantes para que a ciência contribua para a tomada de decisão relacionada ao enfrentamento da pandemia do novo coronavírus.

Além disso, não apenas conhecimentos científicos de várias disciplinas, mas também conhecimentos vindos da experiência prática de vários atores, são relevantes para dar suporte à tomada de decisão. Todas as instâncias de decisão de uma democracia (por exemplo, secretarias municipais, câmaras legislativas, judiciário) acumulam conhecimento de muitas pessoas da administração pública, que diariamente lidam com o desafio de articular critérios técnicos com a dimensão política da aplicação desses critérios. Há um vasto conhecimento desse grupo de gestores, técnicos e políticos sobre como tornar uma decisão viável e efetiva, que precisa ser integrado a conhecimentos científicos para dar apoio à tomada de decisão.

No caso particular das parcerias entre cientistas e tomadores de decisão para o enfrentamento da pandemia, outro tipo de conhecimento fundamental diz respeito ao funcionamento da vigilância epidemiológica. Trata-se de um conjunto complexo de políticas públicas que organizam uma vasta rede de profissionais e instituições para detectar e prevenir ameaças à saúde pública, do nível municipal ao federal. Entre outras tarefas, é a vigilância epidemiológica que coleta, verifica e organiza dados fundamentais para compreender surtos epidêmicos, como as notificações de casos e a verificação de causas de óbitos. No entanto, um sentimento frequente (e muitas vezes justificado) de técnicos da administração pública é que cientistas apenas querem ter acesso aos dados, sem interesse em integrar técnicos da vigilância na construção do conhecimento. Essa é uma situação que pode bloquear a comunicação dos pesquisadores com pessoas com saberes essenciais para o bom uso dos dados e para propor ações de controle da pandemia. A solução é construir conhecimento com engajamento de técnicos e tomadores de decisão em todas as etapas, o que também aumenta as chances de que este conhecimento permaneça na administração pública.

Assim, para que a ciência contribua com a tomada de decisão para a resolução de problemas do mundo real, como o enfrentamento da pandemia, é necessária tanto a deliberação democrática que articule valores e interesses, e legitime o objetivo a ser alcançado, quanto a integração de saberes científicos e não científicos. Dessa forma, parcerias efetivas entre cientistas e tomadores de decisão deveriam ocorrer como processos transdisciplinares, como vem sendo ressaltado aqui no blog. A transdisciplinaridade visa a resolução de problemas da sociedade através da aproximação entre cientistas, tomadores de decisão e outros atores (como sociedade civil, comunidades tradicionais, ONGs, empresas, entre outros) e implica definição conjunta das demandas e, assim, negociação de posições e valores entre esses atores, assim como integração e co-produção de conhecimentos, em ambiente horizontal de confiança e respeito mútuo. Esse cenário reforça o papel essencial, porém não privilegiado, da ciência no processo da formulação de estratégias para resolução de problemas do mundo real.

Como podemos usar esse laboratório fornecido pela COVID-19 para estreitar os laços entre a ciência e a tomada de decisão no Brasil?

A experiência com a pandemia pode servir para colocar em evidência os muitos desafios que hoje enfrentamos para a formação de parcerias efetivas entre cientistas e tomadores de decisão. Em resposta às demandas de que a ciência retorne o investimento público que recebe, cada vez mais tem sido advogado que cientistas participem de – e o treinamento acadêmico dê a formação necessária para o engajamento em – processos transdisciplinares que aproximem a ciência dos problemas do mundo real. No entanto, nem a política científica, nem a estrutura de ensino e pesquisa das universidades atuais, favorece o desenvolvimento de projetos transdisciplinares. Tanto a política científica quanto o treinamento científico, portanto, estão no centro da atual desconexão entre ciência e sociedade.

As políticas científicas em geral são ainda influenciadas por um modelo linear de interface ciência-política, que assume que conhecimento robusto é produzido por cientistas isolados das influências da sociedade e é posteriormente usado por outros atores para a tomada de decisão ou o desenvolvimento tecnológico (veja uma explicação detalhada neste livro). Sob essa premissa, publicações em periódicos científicos são consideradas suficientes para que a ciência traga benefícios para a sociedade, sem necessidade que cientistas se engajem em processos transdisciplinares. Portanto, avaliações de projetos de pesquisa e pesquisadores – componentes centrais das políticas científicas que decidem quem recebe financiamento público – frequentemente focam apenas em indicadores da produção e citação de artigos científicos. Como resultado, a definição das prioridades de pesquisa (o que e como pesquisar) acaba caindo nas mãos das grandes editoras de periódicos (em vez de ser estabelecidas de acordo com as necessidades de um país) e o engajamento dos cientistas em processos transdisciplinares – que demandam tempo e esforço e nem sempre resultam em grande número de publicações – não é estimulado.

Além disso, a maioria das universidades e programas de graduação e pós-graduação é orientada apenas para a formação disciplinar e especialização científica. Embora fundamental, tal formação, se não acompanhada de outros treinamentos, dificulta o aprendizado sobre como interagir e dialogar com outras disciplinas, atores e tipos de conhecimento. Ademais, o treinamento científico atual raramente enfatiza o papel da ciência na sociedade, o que poderia auxiliar na compreensão da utilidade e dos limites da ciência para a resolução de problemas do mundo real.

Esses desafios associados ao treinamento científico, em conjunto com a política e cultura científicas, tendem a criar um feedback positivo que mantém a orientação disciplinar da academia e sua desconexão com os problemas da sociedade. Para romper esse ciclo, uma proposta é que os cientistas diversifiquem suas interações – para além de sua disciplina – durante as atividades de pesquisa, ensino e extensão, e engajem-se em processos de definição de políticas científicas. Talvez as parcerias estabelecidas durante a pandemia da COVID-19 possam servir como um estímulo nesse sentido, já que colocam em evidência para os muitos pesquisadores envolvidos os desafios de dar suporte para tomada de decisão sem treinamento prévio e sem apoio das políticas científicas atuais.

Para além das mudanças na política e no treinamento científicos, outro componente essencial para o fortalecimento dos laços entre ciência e tomada de decisão é a forma como informações sobre problemas da sociedade são divulgados e debatidos na mídia. A politização da ciência está fortemente associada à disseminação massiva de fake news (ou notícia falsa), fenômeno que no Brasil e no mundo tem raízes em grupos políticos. No Brasil, políticos, incluindo o presidente, disseminam fake news relacionadas à pandemia, manipulando a opinião pública e impondo um desafio enorme – e a necessidade de cuidado redobrado – a jornalistas e cientistas ao relatar ou debater informações científicas. Como disse o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, “Não estamos apenas lutando contra uma epidemia; estamos lutando contra uma infodemia”.

Além do combate às fake news, a cobertura jornalística de temas que envolvem problemas complexos ou cujos estudos científicos estão ainda em andamento, como os relacionados à origem do novo coronavírus ou ao tratamento e enfrentamento da COVID-19, impõe um outro desafio para os meios de comunicação. Isso porque o debate desses temas pode facilmente ser influenciado por interesses políticos, a exemplo da divulgação da hidroxicloroquina como cura, da gravidade da crise e da origem do vírus. Nesse contexto, tem ganhado destaque tanto o trabalho de entidades científicas, de comunicação e artísticas, que vem se organizando para disponibilizar conteúdo para o público ou para a imprensa, quanto o trabalho de divulgadores de ciência, que têm conseguido alcançar o público através das redes sociais. O entendimento das relações entre ciência e tomada de decisão – em especial os limites da ciência, a importância da integração de diferentes campos científicos, a relevância de outros conhecimentos para além do acadêmico e a necessidade de debate sobre valores e interesses – é fundamental para uma cobertura jornalística adequada e que contribua com o enfrentamento da pandemia e de outros problemas da sociedade.

O Brasil da pandemia é um país dual: exemplo às avessas de intensa disputa política em um cenário que facilitaria o acordo e, ao mesmo tempo, laboratório de parcerias entre cientistas e tomadores de decisão. Argumentamos aqui que esta dualidade representa uma grande oportunidade: a de refletir e aprender sobre o papel da ciência na sociedade e sobre os desafios para que a ciência possa dar suporte à tomada de decisão, retribuindo o investimento que recebe da sociedade. Enfrentar esses desafios requer ações em múltiplas frentes. Que a política faça a sua parte, promovendo o debate democrático que permita compactuar, de maneira legitimada, acordos a respeito de prioridades e objetivos. Que cientistas se empenhem para a modificação das políticas científicas e do treinamento científico, de modo a facilitar a participação de cientistas em processos inter- e transdisciplinares. Que se atente, em todas as esferas, incluindo a imprensa e a mídia em geral, para as características e limitações da ciência e dos problemas do mundo real. A ciência também tem valores e não é um árbitro neutro que pode, sozinha, levar à tomada de decisão; é também disciplinar e, assim, sem integração entre disciplinas, parcial. Os problemas do mundo real, por sua vez, são complexos e multifacetados em suas consequências. Sua resolução requer, para além do conhecimento científico, conhecimentos experienciais e estratégicos de outros atores e deliberação de valores e interesses. O que vem ocorrendo no Brasil durante a pandemia põe em evidência a relevância de parcerias entre cientistas e tomadores de decisão, e deixa clara a disposição de ambos para experimentar essas parcerias.

Renata Pardini

Beatriz Demasi Araújo

Beatriz Moraes Murer

Diana Bertuol-Garcia

João Pedro Mesquita

Marcella do Carmo Pônzio

Mariana Laganaro Rossi

Grupo de Pesquisa em Ciência da Conservação, Instituto de Biociências, USP

 

Paulo Inácio Prado

Laboratório de Ecologia Teórica, Instituto de Biociências, USP, e Observatório COVID-19 BR

 

Para saber mais

Sarewitz, D. How science makes environmental controversies worse. Environmental Science & Policy 7, 385 (2004).

Pielke, R.A. The honest broker – making sense of science in policy and politics. Cambridge University Press (2007).

Bertuol-Garcia, D., Morsello, C., El-Hani, C. N., Pardini, R. Shared ways of thinking in Brazil about the science–practice interface in ecology and conservation. Conservation Biology 34, 449 (2020).