O movimento dos animais depende de células musculares conectadas por tendões ao esqueleto, ou pele, e de neurônios que as coordenam através de impulsos elétricos. Esses dois tipos celulares permitem toda a variedade de comportamentos que reconhecemos como tipicamente animais, desde rastejar a escrever estas linhas. Para a surpresa dos zoólogos, trabalhos recentes indicam que neurônios e células musculares evoluíram duas vezes, independentemente.
As esponjas têm poucos tipos celulares e nenhum tecido ou órgão bem definido. Vivem presas ao substrato e alimentam-se gerando correntes de água que filtram através de seus corpos estáticos. Suas células são pouco integradas e os movimentos celulares não são transmitidos ou coordenados entre elas. O mesmo vale para um grupo pouco conhecido de animais, chamados de Placozoa.
As versões mais simples de sistemas muscular e nervoso são encontradas nos cnidários – corais, anêmonas e águas-vivas. Os cnidários movem-se ativamente e reagem ao toque, luz, gravidade e outros estímulos. Tais movimentos são possíveis graças à presença de células mioepiteliais cobrindo a superfície do corpo. Essas células, como seu nome indica, funcionam tanto como células da pele, quanto como células musculares. Elas possuem um lado voltado ao exterior, as laterais estreitamente grudadas às células vizinhas e um citoesqueleto capaz de contrair e relaxar rapidamente sua base. Como o citoesqueleto de todas as células mioepiteliais têm filamentos com a mesma orientação, a contração simultânea das células gera a contração da pele como um todo.

Mas como coordenar para que todas as células se contraiam ao mesmo tempo? Entre os epitélios que cobrem a superfície dos cnidários, existe uma rede de neurônios que conecta e controla as contrações das células mioepiteliais, gerando movimentos sincronizados que resultam no nado ritmado das águas vivas, ou o rápido recolhimento dos tentáculos das anêmonas. Um grupo menos conhecido de animais, chamados de ctenóforos ou águas-vivas-de-pente, possuem uma organização similar dos seus sistemas muscular e nervoso.
Em praticamente todos os outros animais, chamados de bilatérios por sua simetria entre os lados direito e esquerdo do corpo, ocorre a concentração de neurônios na região da cabeça, onde estão a maioria dos órgãos sensoriais, e a presença de cordões de neurônios que transmitem impulsos elétricos entre o corpo e a cabeça. No caso dos vertebrados, cérebro e medula, respectivamente (Figura 1).

Portanto, a visão que temos hoje sobre a origem do sistema nervoso é a de que um sistema nervoso simples, em rede, sem hierarquia e polarização, como observado hoje nos cnidários e ctenóforos, deu origem a um sistema nervoso complexo e centralizado. No entanto, existe outra possibilidade surpreendente para essa história: o sistema nervoso em rede pode ter surgido independentemente em ctenóforos e cnidários, e só o sistema nervoso dos cnidários tem uma origem comum ao sistema nervoso de bilatério (Figura 2, Hipótese Ctenóforos-Primeiro).
Vários estudos comparando sequências de DNA sugerem que os ctenóforos representam o primeiro ramo a divergir na árvore evolutiva dos animais, seguidos das esponjas, placozoas, cnidários e bilatérios, hipótese conhecida como Ctenóforos-primeiro. Neste contexto, é mais parcimonioso pensar que o sistema nervoso de ctenóforos se originou primeiro, do que pensar que esponjas e placozoas perderam seus sistemas nervosos (Figura 2).
Além disso, a hipótese é apoiada por diferenças na morfologia e bioquímica das suas sinapses. Por exemplo, ctenóforos usam neurotransmissores completamente diferentes daqueles usados por cnidários e bilatérios. Outro apoio à hipótese ctenóforos-primeiro foi a descoberta de fósseis que sugerem que os ancestrais dos ctenóforos eram sésseis e que, portanto, eles teriam adquirido a capacidade de nadar também independentemente.

A Hipótese Ctenóforos-Primeiro é recebida com cautela e ceticismo por diversos cientistas, que preferem a hipótese tradicional das Esponjas-primeiro. Uma das críticas lança dúvidas sobre a capacidade de resolução para divergências tão antigas na árvore genealógica dos animais. Outra crítica leva em conta as grandes implicações para o entendimento da evolução da morfologia dos animais (teria o sistema digestivo também evoluído independentemente?!).
Recentemente, o assunto chegou às páginas do New York Times, relembrando o debate entre os naturalistas George Cuvier e Geoffroy Saint-Hilaire sobre a homologia dos sistemas nervosos dos vertebrados e invertebrados que, em 1830, cativou a atenção do público e de cientistas em toda Europa. A história do sistema nervoso volta a despertar paixões.
João F. Botelho (PUC de Chile)
PARA SABER MAIS:
Daley, Allison C., and Jonathan B. Antcliffe. “Evolution: The battle of the first animals.” Current Biology 29.7 (2019): R257-R259.
Nielsen, Claus. “Early animal evolution: a morphologist’s view.” Royal Society open science 6.7 (2019): 190638.
Whelan, Nathan V., et al. “Error, signal, and the placement of Ctenophora sister to all other animals.” Proceedings of the National Academy of Sciences 112.18 (2015): 5773-5778.