Nos últimos anos, cientistas brasileiros vêm alertando sobre cortes no financiamento à ciência e inovação no país. No final de 2017, uma petição com mais de 80 mil assinaturas foi entregue a representantes da câmara de deputados e do senado. A petição afirmava que os cientistas estão “mobilizados contra o desmonte que ameaça a universidade pública e a área de ciência, tecnologia e humanidades”. Ainda alertava que com “o menor orçamento dos últimos 10 anos e novos cortes de recursos e em programas de pesquisa sendo anunciados todos os meses, a sociedade brasileira está rapidamente perdendo sua estrutura de produção de conhecimento e formação profissional”. Quase um ano depois, recebemos a notícia de cortes orçamentários ainda mais profundos e, no dia 2 de setembro, assistimos à destruição do Museu Nacional do Rio de Janeiro, que tinha um papel fundamental na construção e divulgação do conhecimento científico gerado no país. Os últimos acontecimentos reacenderam a discussão do investimento em ciência. A discussão, no entanto, seria enriquecida com uma melhor compreensão das formas de financiamento e sistemática para a distribuição de verbas.
A maior parte do financiamento para pesquisa vem do governo, por meio de diferentes sistemas e agências governamentais, os conselhos ou fundações de apoio à pesquisa. Algumas universidades públicas também possuem suas próprias agências, fundações e fundos independentes, com verbas bastante limitadas. Fundações beneficentes e organizações não governamentais, também financiam a pesquisa em setores específicos. Em menor escala, há financiamento da iniciativa privada, vindo de empresas e do setor industrial. Nesses casos, o financiamento se dá dentro das próprias empresas por meio de seus departamentos de pesquisa e desenvolvimento, ou por meio de parcerias com agencias de fomento e universidades.
Veja as principais agências de fomento à ciência no país:
- Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq): criado em 1951, é a agência de fomento mais antiga do país. A agência é o instrumento de financiamento à pesquisa científica do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Seu principal papel é fomentar a pesquisa científica e tecnológica e incentivar a formação de pesquisadores. Suas linhas de financiamento são voltadas às necessidades específicas de setores de importância nacional ou regional, mas uma de seus maiores editais, o edital Universal, oferece apoio financeiro a projetos em qualquer área do conhecimento.
- Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES): é uma fundação do Ministério da Educação (MEC), e desempenha papel fundamental na expansão e consolidação de porgramas de pós-graduação (mestrado e doutorado) no país. Suas atividades incluem financiamento de bolsas de estudo e pesquisa em instituições de pesquisa no Brasil e no exterior. Como parte do estímulo a programas de Pós-graduação, financia as atividades dos cursos por meio de dois programas, o Programa de Apoio à Pós-Graduação (PROAP) e o Programa de Excelência Acadêmica (PROEX), proporcionando melhores condições para a formação de recursos humanos e desenvolvimento da ciência. A CAPES também promove a cooperação científica internacional, por meio de acordos bilaterais.
- Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP): é uma empresa pública brasileira vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovações e Comunicações (MCTIC). Seu principal papel é o fomento à ciência, tecnologia e inovação em empresas, universidades, institutos tecnológicos e outras instituições públicas ou privadas. A FINEP conta com duas formas de financiamento disponíveis, reembolsáveis e não-reembolsáveis. Instituições de pesquisa e empresas brasileiras recebem apoio para pesquisas básica ou aplicada, inovações e desenvolvimento de produtos, serviços e processos. Os financiamentos reembolsáveis são realizados com recursos próprios ou provenientes de repasses de outras fontes. Os recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) são utilizados para os financiamentos não reembolsáveis. A FINEP também apóia empresas de base tecnológica.
- Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (FAPs): são fundações de apoio vinculadas às unidades federativas do país. A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) foi a primeira FAP fundada e é uma das principais agências de fomento à pesquisa científica e tecnológica do país. A FAPESP está vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação do estado de São Paulo, mas tem autonomia garantida na constituição estadual. Seu orçamento anual correspondente a 1% do total da receita tributária do Estado. Após a criação da FAPESP, e espelhando-se em seu modelo bem sucedido, outros estados da federação criaram suas próprias fundações. Hoje, somente o estado de Roraima não possui uma fundação de amparo à pesquisa. As FAPs apoiam a pesquisa e inovação, o intercâmbio e a divulgação da ciência e da tecnologia produzida em seus estados, por meio de financiamento de bolsas e auxílios à pesquisa.
Como a verba é distribuída?
O financiamento para auxílios e bolsas é obtido por meio de um processo competitivo, no qual os projetos de pesquisa são avaliados e apenas os mais promissores recebem financiamento. A preparação e submissão de propostas é um processo longo que demanda bastante dedicação. Um dos documentos mais importantes na submissão é o projeto de pesquisa. No projeto, os proponentes fazem uma descrição do problema que será abordado na investigação e justificam sua importância; descrevem os objetivos do projeto e os resultados esperados, destacando o impacto potencial em sua área do conhecimento; e detalham a metodologia do projeto, informando como o problema proposto será estudado. Por fim, apresentam um cronograma de atividades dentro do intervalo delimitado pelas agencias de fomento (dois a quatro anos, em geral).
Um segundo documento importante é o orçamento do projeto. Nesse documento, o proponente faz uma lista de todo material de consumo, material permanente, serviços de terceiros, passagens aéreas e diárias (para coletas, visitas a instituições ou convite de pesquisadores). A lista contém o valor dos itens, muitas vezes acompanhados de orçamentos de três empresas diferentes. Para equipamentos com custo mais alto, os proponentes podem precisar de declaração de que sua instituição não dispõe do equipamento ou expor as razões que impossibilitam a utilização do equipamento já adquirido por ocasião de outro projeto.
Os proponentes também precisam apresentar um histórico de suas atividades em pesquisa, formação de alunos e coordenação de pesquisa. O histórico é avaliado como um indicativo do aproveitamento dos recursos, em geral públicos, para a geração de conhecimentos e produtos para a sociedade. Nesse histórico, os cientistas enumeram a produção científica em forma de artigos científicos publicados, os projetos que coordenaram, os alunos e pesquisadores que formaram e atividades de extensão (participação em blogs de divulgação científica, por exemplo). No Brasil, por iniciativa do CNPq, foi criado um banco de dados com essas informações, o currículo Lattes. Nele, podem ser consultadas informações sobre a produção científica de cada pesquisador brasileiro. Algumas agências, no entanto, ainda exigem documentos adicionais. Para a grande maioria das oportunidades (editais das agências de fomento), o proponente precisa ter título de doutor e vínculo empregatício com alguma instituição de pesquisa no Brasil.
Uma vez submetida, a proposta (com todos os componentes, projeto, orçamento e currículo) é enviada à assessoria ad hoc. O assessor é um especialista na área do projeto submetido, com qualificação para avaliar a proposta. O papel da assessoria é analisar cuidadosamente toda a documentação e emitir um parecer circunstanciado, destacando o mérito científico do projeto, a qualificação do proponente com relação ao projeto e a viabilidade de realização do projeto com base no cronograma e orçamento propostos. Dependendo do edital e/ou da quantidade de recursos solicitados, um número maior de assessores é consultado. Os pareceres emitidos pela assessoria são analisados por uma coordenação, composta de cientistas de áreas correlatas, e ordenados de acordo com critérios claros da instituição. Uma espera de seis meses não é incomum para que o proponente receba o resultado de todo esse processo. Na maioria das vezes, a resposta é negativa, pois a taxa de aprovação dos editais é muito baixa. Para se ter uma ideia, a o Edital Universal do CNPq em 2016 (último com resultado divulgado) teve 21.640 propostas submetidas, com aprovação de 4.587 delas, ou seja 21% de aprovação. Para propostas aprovadas, há acompanhamento de desempenho, com relatórios e prestação de contas periódicos.
A distribuição de verba entre os pesquisadores é muito competitiva e é regulada por uma sistemática clara de distribuição por mérito. Essa sistemática é uma boa barreira para “cientistas que pesquisam inutilidades”, como comenta-se em tempos de crise e discussão de prioridades de financiamento público. Na prática, o sistema não é perfeito, mas a própria comunidade científica discute e apresenta propostas para aprimorá-lo.
Financiamento público vs. privado
Uma questão importante que surge no debate é que se não há recurso público, por que as pesquisas científicas não podem ser financiadas com recursos privados? Geralmente essa pergunta vem acompanhada de referências a outros países que apresentam excelência na produção científica, como os Estados Unidos. É importante deixar claro que, mesmo tendo um grande peso do financiamento privado no país, a National Science Foundation (NSF) dos Estados Unidos teve um orçamento de 7 bilhões de dólares em 2016. Esse orçamento é largamente aplicado em estudos básicos, como por exemplo, conhecimento da biodiversidade e processos que a geram e a mantém. Já o National Institutes of Health (também do governo dos Estados Unidos) teve um orçamento de mais de 30 bilhões. Em termos comparativos, o CNPq principal por todo financiamento em nível federal, e que financia projetos de ambas as naturezas, teve um orçamento de 1,9 bilhão de reais no mesmo período (2016). Para 2019, o orçamento previsto é de R$ 800 milhões.
O estímulo ao financiamento privado é, sem dúvida, importante. Uma iniciativa recente foi a criação do Instituto Serrapilheira. O instituto foi lançado em março de 2017 apresentando um novo modelo de financiamento à ciência – é uma instituição privada de financiamento à pesquisa sem fins lucrativos. O Serrapilheira apoia pesquisas de excelência nas ciências da vida, ciências físicas, engenharias e na matemática, com recursos oriundos de um fundo patrimonial de R$ 350 milhões. Em seus dois primeiros editais, apoiou jovens cientistas (com menos de dez anos desde a conclusão do Doutorado) e iniciativas para a divulgação científica. É um modelo de financiamento que privilegia tanto pesquisa básica quanto aplicada, o que a distingue de outras iniciativas de financiamento privado.
Na maioria dos casos, não há como exigir que o financiamento privado seja isento. Em um mundo ideal, a fonte de financiamento não deveria influenciar os resultados científicos. No entanto, há evidências que pode haver viés nos relatos dos resultados de pesquisas financiadas com recursos privados. Uma empresa farmacêutica que paga um estudo clínico para testar uma nova medicação, por exemplo, pode influenciar (intencionalmente ou não), o planejamento dos experimentos e sua interpretação a favor de efeitos positivos da medicação. Uma meta-análise realizada em 2003 detectou que testes clínicos financiados por indústrias podem ter relatos mais favoráveis em relação às drogas que testes financiados pelo governo ou organizações sem fim lucrativo. Outra análise, realizada em 2006, recomenda cautela ao interpretar resultados de testes de medicamentos financiados pela indústria, pois eles podem ser “menos transparentes, apresentar menor relato de limitações metodológicas e conclusões mais favoráveis” em relação às drogas testadas. Os dois resultados foram confirmados em uma meta-análise mais recente, realizada neste ano. O mesmo é observado em pesquisas na indústria alimentar. Por essa razão, a divulgação de potenciais conflitos de interesse é exigida por periódicos para permitir essa leitura mais criteriosa. O viés observado nos resultados já seria um bom argumento a favor do financiamento público complementar ao privado, mas temos ainda outro viés importantíssimo. A iniciativa privada privilegia pesquisa aplicada, o que é perfeitamente compreensível e aceitável. Mas o que fazer com a pesquisa básica dos fenômenos físicos, químicos e biológicos?
Apesar de não apresentar aplicação tecnológica imediata, muitos projetos visam a construção do conhecimento e entendimento de processos naturais. Além disso, muitos produtos e técnicas que usamos hoje só existem como resultado de pesquisa básica que ninguém imaginava que teria uma aplicação. Esse é o caso do GPS e da edição de genomas, por exemplo. A história do GPS mostra muito claramente como a pesquisa básica levou a uma aplicação comercial tão presente em nosso cotidiano. Se não fossem os relógios atômicos e a teoria da relatividade, não haveria GPS e qualquer sistema de posicionamento daria coordenadas com erros de dezenas de quilômetros de distância. O mesmo vale para uma das tecnologias mais discutidas para a edição de genomas, o CRISPR-Cas, cuja descoberta iniciou-se em uma pesquisa básica que investigava o papel de regiões repetitivas em alguns genomas bacterianos. Temos assim, argumentos e exemplos de que é essencial ter financiamento público, mesmo em situações com vasto financiamento privado. E não custa lembrar que ciência não é gasto, é investimento.
Tatiana Teixeira Torres (USP)
Para saber mais:
Ildeu de Castro Moreira (2018) Como caminha o financiamento à ciência no Brasil: o que nos espera em 2018? Ciência e Cultura, 70(1): 4-5. Relato do presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) sobre a crise no financiamento à pesquisa.
Fabrício Marques (2017) Financiamento em crise. Pesquisa FAPESP, 256: 20-29.
Republicou isso em REBLOGADOR.
CurtirCurtir