Como o suspeito foi identificado
Em uma entrevista coletiva no dia 25 de abril de 2018, foi anunciada a prisão de Joseph James DeAngelo, mais de 30 anos depois de seu último crime conhecido. O assassino em série é acusado de pelo menos 12 homicídios e mais de 50 estupros entre 1976 e 1986. O caso havia sido arquivado, mas as novas tecnologias de genotipagem permitiram que o caso fosse reaberto e o criminoso descoberto. O DNA recuperado nos crimes investigados foi comparado a perfis genéticos disponíveis na página GEDmatch.
Há pelo menos 10 anos, algumas empresas vêm oferecendo serviços de genotipagem para determinação de ancestralidade e muitos usuários, de posse dos dados brutos de seus genomas, buscam ferramentas adicionais para descobrir parentes e resgatar genealogias. O GEDmatch é uma das alternativas para esses usuários, que deixam seus genomas publicamente disponíveis para a descoberta de membros da família que eles nunca souberam que tinham. O que eles não imaginavam é que seus dados poderiam ser utilizados para entregar um familiar à polícia.
DeAngelo nunca encomendou nenhum dos serviços de ancestralidade e não havia disponibilizado nenhum de seus dados. A policia chegou até ele por meio de um parente próximo. Em entrevista à revista Science, o geneticista Yaniv Erlich, da Universidade Columbia em Nova York, estima que a descoberta foi feita provavelmente por meio de um primo de primeiro ou segundo grau. Erlich não ficou surpreso com a história – ele já havia previsto o uso de tais bancos de dados para aplicações como investigações criminais.
Como compartilhamos ancestrais com nossos familiares também compartilhamos parte de nosso genoma. A fração compartilhada depende do grau de parentesco; os irmãos normalmente compartilham metade de seus genomas, enquanto os primos de primeiro grau só compartilham 1/8. Mas o padrão do DNA compartilhado é ainda mais revelador. Nós herdamos os cromossomos, moléculas grandes de DNA. Com o tempo, eles vão gradualmente trocando segmentos com cromossomos herdados de outros indivíduos na formação dos gametas. Durante a meiose, cromossomos trocam pedaços entre si durante o processo de permutação, ou “crossing-over” (Figura 1). O embaralhamento do DNA se dá lentamente, já que ocorrem duas ou três trocas, em média, por par de cromossomo na formação de um gameta. Por isso, longos trechos dos cromossomos originais de seus ancestrais são preservados intactos por muitas gerações. Como resultado, o 1/8 de um genoma que você compartilha com um primo não é misturado aleatoriamente em todos os seus cromossomos – ele é encontrado em grandes blocos idênticos, intercalados com partes igualmente grandes não relacionadas. Ao identificar esses fragmentos usando dados genômicos, você pode estimar o grau de parentesco entre dois indivíduos (se houver algum). À medida que as pessoas disponibilizam mais genomas por meio de serviços voltados para o público, a chance de identificar outros membros da família aumenta.

A maioria das empresas que oferecem o serviço para descoberta de genealogias e ancestralidade não realizam o sequenciamento do genoma com três bilhões de nucleotídeos, mas a genotipagem de centenas de milhares posições do genoma. Este processo consiste na determinação dos alelos em uma posição nucleotídica, ou seja, na determinação dos nucleotídeos (A, T, C , ou G) presentes naquela posição. As posições no genoma que variam de pessoa para pessoa são chamadas de polimorfismos de nucleotídeo único (abreviadas por SNPs, do inglês Single Nucleotide Polimorphism) e as diferentes versões de um SNP são chamadas de alelos. Todo mundo carrega dois alelos na maioria dos SNPs, um alelo herdado do pai, outro da mãe. Embora qualquer SNP contenha apenas uma minúscula quantidade de informação sobre sua origem, combinando as evidências de muitos SNPs, é possível traçar a ancestralidade de regiões do genoma, e consequentemente, de seu portador.
Após contratar o serviço, o usuário fornece uma amostra de saliva que é enviada pelos correios. Assim que a mostra é recebida pelo laboratório, o DNA é extraído das células contidas na saliva e fragmentado. Ocorre então a produção de múltiplas cópias idênticas do DNA – um processo chamado amplificação – aumentando a minúscula quantidade de DNA na saliva até que haja o suficiente para genotipagem. O DNA amplificado é então aplicado em um arranjo (ou chip) de DNA (também conhecido como microarray). O chip consiste de uma pequena lâmina de vidro com milhões de esferas microscópicas em sua superfície. Cada uma dessas esferas contém uma “sonda”, um pedaço de DNA que corresponde a uma das variantes genéticas testadas. As partes cortadas do DNA aderem às sondas correspondentes nas microesferas. Uma marcação fluorescente em cada sonda identifica qual versão desse alelo (Figura 2). Para inferir a ancestralidade do usuário, a informação de cada posição é comparada a informações previamente descobertas em iniciativas de grupos de cientistas que visavam conhecer a diversidade genética humana, como o projeto 1000 genomas humanos.

Além da ancestralidade mais recente, como membros próximos da família, o DNA também carrega uma história de migrações e origens humanas. Ao comparar seu DNA com o DNA de indivíduos atuais de diferentes partes do mundo, podemos mapear sua ancestralidade genética. A descoberta das origens é fascinante para muitas pessoas e isso fez com que os testes de DNA atingissem um nível enorme de popularidade. Para se ter uma ideia, a maior empresa que faz esses testes já tem um banco de dados com 10 milhões de usuários, enquanto que a segunda maior tem 5 milhões. Isso garante que muitas pessoas tenham partes do genoma disponíveis online, mesmo que nunca tenham cuspido em um tubo de ensaio. Assim, as decisões sobre quem obtém acesso a esses dados podem estar nas mãos de membros da família com quem nunca conversamos – ou nem sabíamos que existiam. No caso do assassino do Estado dourado parece ser uma decisão simples, mas novas aplicações com bancos de dados como esses surgem a cada momento, antes que legisladores possam discuti-las. Enquanto não são criadas leis claras sobre acesso e uso de informação genética, não é muito agradável pensar que as suas informações, inclusive médicas, podem estar disponíveis sem legislação específica e sem seu consentimento.
Tatiana Torres (USP)
Para saber mais:
Griffiths AJF, Wessler SR, Carroll SB, Doebley J (2016) Segregação Independente de Genes. In:___. Introdução à Genética. 11. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. cap. 3, p. 88-92.
Griffiths AJF, Wessler SR, Carroll SB, Doebley J (2016) Genética de populações. In:___. Introdução à Genética. 11. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. cap. 18, p. 587-593.
Coakley L (2015) Genetic Genealogy Links & Resources. Disponível em: <http://www.genie1.com.au/links> Acesso em: 21 de maio de 2018.
Uma consideração sobre “O DNA de sua família pode ser usado contra você no tribunal”