O cabo de guerra: mutação versus deriva
A teoria evolutiva é capaz de fazer previsões sobre o que esperamos encontrar na natureza. Uma das mais importantes diz respeito à variabilidade genética. Para evolucionistas, a diversidade genética de uma espécie deve ser proporcional ao tamanho populacional. Esperamos que espécies com muitos indivíduos tenham mais diversidade genética do que espécies com poucos indivíduos.
Essa expectativa resulta de modelos matemáticos que consideram dois processos, a mutação (que gera variabilidade) e a deriva genética (que a elimina). Eles vivem uma espécie de cabo de guerra, e a diversidade resultante deve refletir a força de cada um.
Mutações são alterações no material genético, que acontecem constantemente. A deriva genética já foi abordada num post anterior. Ela é a mudança genética que resulta do acaso. Mesmo na ausência da seleção natural, alguns indivíduos têm mais filhos do que outros, e algumas mutações se tornam mais comuns do que outras. Estudos matemáticos da deriva genética, feitos desde o século passado, mostram que as espécies com tamanho populacional menor perdem variabilidade genética mais rapidamente. Há uma intuição para entender isso: quando há menos indivíduos, aumenta a chance de uma mutação deixar de ser passada para a próxima geração, pelo simples fato de que há poucos indivíduos reproduzindo.
Quando apenas a deriva genética e a mutação atuam sobre populações, esperamos uma proporcionalidade entre tamanho populacional e diversidade genética. O que estudos empíricos revelam? Numa investigação da diversidade genética em mais de 167 espécies, Leffler e colaboradores identificaram que artrópodes (o grupo que inclui insetos) têm diversidade genética maior do que cordados (o grupo que inclui vertebrados), enquanto plantas ocupam uma posição intermediária. Esse ordenamento é, de modo geral, consistente com nossa noção dos tamanhos populacionais: a maior parte dos artrópodes possui tamanhos populacionais maiores do que cordados, então é esperado que possuam maior variabilidade genética. Assim, pelo menos grosseiramente, parece que há uma relação entre diversidade genética e tamanho populacional.
Mas um exame mais atento indica que esse padrão geral oculta resultados bem mais complexos. Leffler e colaboradores notaram que a variabilidade genética entre as espécies variava, mas não drasticamente. Por exemplo, a espécie menos variável estudada era o lince (Lynx lynx, um gato selvagem), que era 800 vezes menos variável do que um cordado marinho, Ciona savignyi. Leffler e colaboradores detectaram um problema: na natureza esperamos que algumas espécies tenham tamanhos populacionais milhões de vezes maior do que outras (imagine a diferença do tamanho populacional entre formigas e elefantes), mas as diferenças genéticas eram sempre menores do que essa diferença de tamanho populacional (o máximo sendo o fator de 800, entre lince e Ciona). Um exemplo adicional reforça essa ideia: o Gibão (Hoolock leuconedys) é uma espécie de primata que possui tamanho populacional de cerca de 50.000 indivíduos, enquanto a mosca Drosophila buzzatii possui tamanhos populacionais milhares de vezes maior (num único alqueire há 50.000 dessas moscas!). Mas quando olhamos a diversidade genética dessas espécies vem a surpresa: ela é 0,21% no gibão e 1,94% na mosca, um diferença de cerca de 10 vezes (a porcentagem reflete o número de posições no genoma que diferem entre indivíduos da espécie). Esse padrão revelou-se recorrente no estudo de Leffler: espécies com tamanhos populacionais milhares de vezes maior tinham diversidade apenas modestamente mais elevada. Isso não bate com a expectativa de que a deriva genética é o único fator que molda a diversidade genética. Essa proximidade nos níveis de diversidade genética, mesmo em espécies com tamanhos populacionais tão diferentes, tornou-se uma questão tão central para a evolução que passou a ser chamada de “paradoxo da variação”.
Carona no genoma
Uma chave para desvendar o paradoxo da variação envolve estudar os efeitos da seleção natural sobre a variabilidade genética. Quando uma mutação traz uma vantagem ao seu portador, ela se torna comum na população. Mas ao subir de frequência, ela carrega consigo mutações que estão próxima a ela no cromossomo, num fenômeno chamado carona genética (Figura 1). As mutações longínquas não pegam carona, pois há muita chance de haver recombinação genética entre elas e a mutação vantajosa, de modo que o aumento de frequência não afeta a outra, que não fica “presa” a ela num mesmo cromossomo.

Repare que a seleção, ao fixar uma mutação vantajosa, reduz a variação ao redor dela. O modelo teórico de carona genética já existia desde a década de 1960, tendo sido proposto pelo evolucionista John Maynard Smith. Agora, na era da genômica, ele pôde ser confrontando com dados empíricos, vindos de sequenciamento de genomas de várias espécies.
Um estudo recente feito por Russell Corbett-Detig e colegas da Universidade de Harvard examinou o efeito de carona genética em 40 espécies de seres vivos. Usando modelos matemáticos, eles quantificaram a variação genética que estava sendo removida pelo processo de carona em cada uma das espécies. O que eles viram está resumido na figura 2. As espécies que possuem tamanhos populacionais maiores, como invertebrados, sofrem uma maior perda de variabilidade genética através da carona do que espécies com tamanhos populacionais menores, como vertebrados e plantas lenhosas (que incluem as árvores).
Há uma explicação para esse padrão. Em espécies com tamanhos populacionais maiores, dois fenômenos favorecem a carona genética. Primeiro, há mais indivíduos, o que aumenta a chance de algum deles sofrer uma mutação vantajosa. Em segundo lugar, há menos deriva genética em populações grandes. Havendo menos mudanças genéticas decorrentes do acaso, há maior efeito de seleção do que em espécies com populações pequenas, nas quais há intensa deriva. Em conjunto, esses fatores sugerem que, em espécies com tamanhos populacionais grandes, devemos de fato esperar mais carona genética. E é isso que eles acharam nos dados estudados (Figura 2).

Esse achado ajuda a explicar o paradoxo da variação. Nas espécies com tamanhos maiores, há menos deriva, o que em princípio permitiria que houvesse mais variação. Porém, nessas mesmas espécies, há condições mais favoráveis para o processo de carona genética, que reduz a variação. Ter um tamanho populacional grande é algo que, ao mesmo tempo, contribui tanto para aumentar (menos deriva, menos perda de mutações) como para diminuir (mais carona genética, mais eliminação de variação) a variabilidade. Qual o saldo final? Apesar de haver espécies com tamanhos populacionais milhares de vezes maior do que outras, a diversidade genética acaba sendo relativamente semelhante entre as mais variadas espécies.
Voltando ao exemplo que usamos no início do ensaio, uma espécie de mosca com tamanho populacional milhares de vezes maior do que o de um gibão não terá diversidade genética milhares de vezes maior. A mosca sofre muito mais carona genética, processo que reduz sua variabilidade. O gibão sofre muito menos carona genética, e menos variação é removida. O saldo final? Apesar de possuírem tamanhos populacionais vastamente diferentes, sua diversidade genética é relativamente semelhante.
Essa explicação para o paradoxo da variação é recente, e vem gerando debate. Ela ilustra de modo elegante um tema recorrente na biologia. Diferentes processos estão conectados uns com os outros de modo complexo. Tamanhos populacionais grandes influenciam a deriva, que influenciam a diversidade. Mas tamanhos populacionais também influenciam a carona, que influencia a diversidade. Processos biológicos estão interconectados, e é um desafio dissecá-los.
Os estudos recentes indicam que o tamanho de uma população tem um papel duplo: modula a intensidade da deriva genética e também a força da carona genética. A consequência é que a ação da seleção, junto com a deriva, molda a diversidade genética dos genomas.
Diogo Meyer (USP)
Para saber mais
Leffler EM, Bullaughey K, Matute DR, Meyer WK, Se ́ gurel L, et al. (2012) Revisiting an Old Riddle: What Determines Genetic Diversity Levels within Species? PLoS Biol 10(9): e1001388. doi:10.1371/journal.pbio.1001388
Corbett-Detig RB, Hartl DL, Sackton TB (2015) Natural Selection Constrains Neutral Diversity across A Wide Range of Species. PLoS Biol 13(4): e1002112. doi:10.1371/journal.pbio.1002112
Meyer D, Torres TT (2017) Evolução de Genes e Genomas. Em: Carlos F. M. Menck; Marie-Anne Van Sluys (Org.) Genética Molecular Básica | Dos Genes aos Genomas. São Paulo: GEN | Grupo Editorial Nacional, 500p.
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Dear Ian, thank you very much for your interest!
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