Falamos sobre raças humanas o tempo todo. Livros didáticos e artigos científicos se referem a “Caucasianos”, “Negros”, “Amarelos” e “Índios”, por exemplo. O que geneticistas têm a dizer sobre essa categorização dos humanos?
Vimos num post anterior que estudos genéticos mostraram que o emprego de categorias raciais é cientificamente criticável. Isso se baseia no fato de que cada um desses grupos não é nem internamente homogêneo e nem altamente diferenciado dos demais, como a ideia de raças leva a crer. Pelo contrário, há muitas diferenças entre indivíduos dentro de um mesmo grupo racial, e poucas diferenças adicionais quando comparamos indivíduos de grupos diferentes. A rejeição do conceito de raças repousa em argumentos firmes, e teve um grande impacto, levando geneticistas a defenderem o abandono das categorias raciais humanas.
Mas com a rejeição de classificações raciais, novos desafios surgem. Há uma longa tradição de categorizar as diferenças e semelhanças humanas seguindo a cartilha racial. Então, falar das diferenças entre pessoas vindas de locais diferentes e com características diferentes exigirá um novo vocabulário. Há ainda outro sério desafio: a rejeição do conceito de raça pode, equivocadamente, reforçar a ideia de que a espécie humana não possui grande variabilidade, ou ainda que não existam diferenças genéticas entre pessoas vindas de diferentes continentes. É preciso questionar a categorização racial, mas não abandonar o desafio de estudar a diversidade humana.
O avanço da genética tem pintado um quadro surpreendentemente detalhado dessa diversidade. Isso fica particularmente claro em análises feitas a partir do final dos anos 1990, quando a tecnologia permitiu que fossem gerados dados genéticos para milhares (e até milhões!) de marcadores genéticos (trechos do genoma que variam entre indivíduos). Esses estudos revelaram algo muito importante: a análise de milhares de marcadores permite, com o uso de ferramentas apropriadas, detectar conjuntos de indivíduos que são mais semelhantes entre si, e geneticamente diferentes de outros grupos. A delimitação desses grupos pode ser feita por métodos matematicamente complexos (como, por exemplo, a análise de componentes principais, conhecida por sua sigla em inglês, PCA). A Figura 1 dá um exemplo desse tipo de análise, mostrando uma forma gráfica de representar as semelhanças e diferenças entre vários indivíduos que foram caracterizados geneticamente.

A representação na Figura 1 deixa uma coisa clara: raças podem não existir, mas há conjuntos de indivíduos que são geneticamente semelhantes entre si, e apresentam diferenças em relação a outros grupos. E há uma boa razão pela qual conseguimos visualizar esses grupos: a análise de milhares de marcadores genéticos permite encontrar combinações de variantes genéticas que são mais comuns num grupo do que em outro. A ênfase em combinações é importante: geneticistas sabem que não há virtualmente nenhuma mutação que seja exclusiva de africanos ou exclusiva de europeus. Há, entretanto, muitas mutações que são ligeiramente mais comuns em europeus do que africanos (e vice-versa). Ainda que nenhuma mutação, sozinha, permita classificar um indivíduo, se um indivíduo possui muitas das mutações ligeiramente mais comuns entre europeus, temos uma forte evidência de que ele é de fato europeu. É a presença dessas variantes que gera o agrupamento dos indivíduos de um mesmo continente.
Para ajudar a entender o que há por trás dessa técnica de agrupamento, recorro a um exemplo mais próximo de nosso cotidiano: dizer que uma pessoa come arroz com feijão frequentemente, se sente desconfortável em climas frios e fala português, é bastante indicativo de que seja brasileira. Porém, nenhuma dessas informações sozinha seria conclusiva: fala-se português em vários outros países, habitantes de vários países tropicais não gostam do frio, come-se arroz com feijão no Caribe, etc. É a combinação de informações que nos ajuda identificar a provável origem do indivíduo.
Essa abordagem é surpreendentemente poderosa: num estudo de populações europeias, pesquisadores mostraram que era possível identificar apenas com dados genéticos grupos de indivíduos que correspondiam aos seus países de origem dentro do continente! Esse achado está apresentado na Figura 2. Os resultados não deixam dúvidas: de posse de abundantes dados genéticos para uma pessoa, podemos ver com quem ela se agrupa numa análise como a das Figuras 1 e 2 e, dessa forma, podemos inferir o seu continente ou até seu país de origem.

O poder da genética para identificar a ancestralidade de indivíduos levanta uma importante pergunta: se diferenças genéticas permitem identificar grupos de indivíduos (como as figuras 1 e 2 mostram), isso quer dizer que, afinal de contas, raças existem?
As raças são uma coisa, mas a possibilidade de identificar grupos a partir de dados genéticos é outra. Considere, por exemplo, as diferenças entre as Figuras 1 e 2: na primeira, os grupos correspondem a indivíduos de cada um de três continentes, enquanto na Figura 2 há grupos constituídos por indivíduos de cada país. Se tivéssemos mais dados e mais indivíduos, seríamos capazes de identificar novos grupos dentro de cada país, e mesmo dentro desses encontraríamos subdivisões adicionais. A variação genética permite, portanto, identificar grupos que estão dentro de outros maiores, e assim por diante. Não há um corte único com a melhor definição de tais grupos. Assim, o nível de agrupamento definido por raças é apenas um entre muitos possíveis: a humanidade poderia ser dividida de várias outras formas, inclusive algumas envolvendo milhares de grupos.
E há outra complicação: os grupos nem sempre têm contornos claros: há países na Figura 1 que se sobrepõem uns aos outros (repare nos pontos para portugueses e espanhóis, PT e ES). Isso reflete a proximidade geográfica e genética entre esses povos. Além disso, quanto mais mistura houver entre povos vindos de diferentes regiões do mundo, mais borrados serão os limites entre os grupos. Repare nos brasileiros, na Figura 1 (círculos pretos). Eles ocupam um espaço no gráfico entre europeus e africanos, refletindo o fato de se tratar de uma amostra de indivíduos que resultam da mistura de pessoas vindas desses dois continentes. Como delimitar um grupo para eles? Não há resposta clara.
Definições raciais se tornaram uma moeda corrente no discurso cotidiano porque de alguma forma resumem a forma como a diversidade genética humana está distribuída. Entretanto, falar em raças dá a impressão de que grupos são delimitados de modos claros e únicos. A realidade é outra: há várias possíveis definições de grupos e vários casos em que os limites entre eles não são claros (grupos se sobrepõem, ou há mistura entre grupos). A diversidade genética é real, mas a forma de delimitá-la e a encaixá-la em grupos não se encaixa na solução fácil das categorias raciais. O desafio posto aos geneticistas começa aí: entender quais são os contornos dos grupos humanos e entender quais são os processos que explicam suas semelhanças e diferenças. Esse será o tema de um próximo post.
Diogo Meyer (USP)
Para saber mais:
Jobling, M., Hollox, E., Kivisild, T. e Tyler-Smith, C. 2014. Human Evolutionary Genetics. Garland Science.
Yudell, M., Roberts, D., De Salle, R., TIshkoff, S. 2016. Taking race out of human genetics. Science, 351: 564.
Preciso aprender mais sobre sobre esse assunto, pois percebi que ao longo dos anos venho repetindo para meus alunos apenas o que aprendi em livros e com professores. Descobri que o que sei é muito pouco.
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Oi Genilda
Deve ser sobretudo um incentivo para seguirmos sempre estudando. Formação é tarefa para a vida toda.
Parabéns Genilda por toda sua atuação como professora da educação básica. A gente sabe bem a batalha que é!!!!
Abraços
Charbel
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Diogo,
Parabéns pelo texto! Muito claro e informativo.
Um dos critérios para se fazer a classificação de uma espécie é a análise do DNA. Como é atualmente classificada a nossa espécie? Alguns autores sugerem que usemos apenas o “Homo sapiens” e outros introduzem a subespécie “Homo sapiens sapiens”.
Um abraço.
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