Crescemos sociais em vários níveis, seja no interior da família, das amizades concretas, da vizinhança, num crescente vertiginoso até o todo fora das amizades virtuais: onde quer que estejamos, podemos mesmo dizer que não estamos sós nunca, haja visto o esforço que requer a meditação, o treino intenso para amainar essa gritaria interna do mundo de vozes que nos pensa.
Antes que comecemos a nos vangloriar de nosso vasto mundo interno, vale à pena, como dizia o poeta pantaneiro Manoel de Barros, botar o olhar no ínfimo, focar no limo das coisas, nos insetos que andam sobre o limo das coisas, nos ácaros que andam sobre os insetos que divagam sobre o restos limosos do mundo. Talvez olhando para o ínfimo nos descubramos mínimos, e de quebra pode ainda acontecer de nos orgulharmos de tanta minudência.
Na interface entre o indivíduo o o coletivo estão as minúsculas formigas, os trabalhadores cupins, as diligentes abelhas. Também eles são, em geral, inviáveis em isolamento. Não, eles não meditam, acalme-se. Mas como eles nos parecem simples, e como não temos pudores em brincar de deus experimentando com suas vidas, aprendemos muito com eles sobre as maneiras de existir no social. E estes ínfimos revelam infinita riqueza.
Insetos, solitários ou sociais, não são pequenos robôs de mentes simples com respostas automáticas. São capazes de aprender conceitos, como igual e diferente, de aprender de outros indivíduos o uso de ferramentas (e as aprimoram), têm capacidades de navegar no espaço que muitas vezes excedem a nossa própria capacidade. É importante ter em mente tais capacidades para não esquecermos que formigas em um formigueiro não são exatamente como células de um organismo, ou unidades de processamento em um computador: elas mantêm sempre sua individualidade e tomam decisões constantemente, levando em conta toda a sua experiência de vida, e o contexto atual. O principal ganho da socialidade foi o aumento desproporcional na capacidade de comunicação química, tátil, vibratória e visual, e recentemente se mostrou que, editando-se o genoma para reduzir sua capacidade comunicativa (impedindo a expressão de genes ligados à produção de centros neurais de processamento olfativo), formigas sociais voltam a se comportar como formigas solitárias! As conexões entre os indivíduos permitem a solução de tarefas impossíveis de serem realizadas pelos indivíduos solitários, e esta vantagem da socialidade seleciona uma genética comunicativa mais complexa.
Apesar de decidir individualmente seu curso de ação, a formiga não tem nome próprio: ao se comunicarem, formigas não se importam com quem está passando a mensagem que é, para todos os efeitos, anônima. Juvenis vivem mais no centro do formigueiro, que se organiza em círculos concêntricos de idade: quanto mais velho, mais perto da periferia do formigueiro, mais em contato com o mundo externo. As múltiplas mensagens anônimas formam uma rede de vizinhos próximos hiperconectada, que se estrutura de forma concêntrica no espaço, em função do gradiente de idade. Assim, há ondas concêntricas de informação circulando em larga escala, fluindo lentamente entre distintos módulos sociais hiperconectados, os mais externos e os mais internos. O formigueiro se comporta como um grande processador de informações, com mensagens vindas do exterior (sobre fontes de alimento e de perigo) sendo traduzidas em tarefas do interior da colônia (controle do estoque de alimento e nutrição dos filhotes), e vice-versa.
Mensagens diferentes são tratadas de forma diferente. Por exemplo, uma mensagem de alarme (predador maligno por perto, formigas recém esmagadas na mesa da cozinha!) é amplificada por todos os indivíduos (emitindo feromônio muito volátil), e uma onda de alarme se espalha exponencialmente, e logo todos estão são e salvos de volta ao formigueiro. Esta amplificação incondicional da mensagem de alarme faz com que um indivíduo, certo ou errado, afete o comportamento de toda a colônia. Outras mensagens não são automaticamente repassadas por todos os indivíduos. Por exemplo, ao encontrar alimento a operária marca com feromônio de contato (pouco volátil) o caminho de volta, recrutando assim com o odor desta marcação novas operárias. Cada nova operária, ao chegar no alimento seguindo os rastros da primeira, decide por si só se volta remarcando a trilha; se não remarcar, o odor original vai evaporando, e a trilha não se forma. Esta avaliação individual da qualidade do alimento permite que só se formem trilhas quando de fato, no pensar de várias formigas, o alimento vale uma trilha. A formação de uma trilha é portanto uma decisão regulada pelo coletivo, e uma decisão individual não é capaz de mobilizar toda a colônia. Este mecanismo faz com que, quando há duas trilhas distintas em formação, duas fontes de alimento alternativas, a fonte mais próxima seja escolhida; por ser mais próxima os indivíduos voltam mais cedo, produzindo mais marcações, e assim recrutando mais operárias que a trilha mais distante. Dada esta forma de decisão (sensoriamento coletivo – quorum sensing), nenhum indivíduo sabe qual a melhor fonte de alimento (nem mesmo se há mais de uma fonte): quem sabe é a colônia. Como a colônia simplesmente opta por um dos comportamentos que seus indivíduos já estão realizando, dizemos que a decisão é uma propriedade emergente do coletivo, mas em um sentido fraco, pois os indivíduos são capazes de realizar sozinhos o comportamento que o coletivo realiza.
Alguns comportamentos coletivos não podem ser realizados pelo indivíduo. Dificilmente uma formiga individual poderá conhecer todo o entorno do formigueiro, e mesmo seu interior, porque ela é muito menor que este macro-ambiente que habita. Para lidar com a diversidade de informação, os indivíduos se especializam em resolver apenas os problemas de seu entorno conhecido. Com isso, forma-se uma divisão de tarefas em que alguns se especializam em alimentar as larvas (os filhotes), outros se especializam em coletar lixo, outros ainda em cultivar fungos, de modo que o conhecimento total distribuído na colônia é muito maior que o de cada indivíduo. A construção do ninho é um exemplo máximo em que o conhecimento de um indivíduo não é suficiente para a obtenção do resultado final. A construção do formigueiro envolve uma forma de comunicação indireta, em que um indivíduo age sobre o resultado do trabalho do outro indivíduo, depositando feromônios e grãos no terreno; da diferenciação progressiva do relevo diferenciam-se também novas tarefas especializadas, gerando uma complexidade final que reflete o desenvolvimento destas interações.
Às vezes a colônia inteira se transforma com uma decisão, como quando formigas de correição têm de escolher um novo local para o formigueiro, ou quando abelhas enxameiam para buscar um novo local para a colmeia: o coletivo é quem conhece todos os locais alternativos, o coletivo, e não o indivíduo, é quem escolhe o novo local. Esta decisão é impressionante pois, além de envolver toda a colônia (não apenas um pequeno subgrupo de operárias em busca de alimento), requer informação detalhada sobre o novo local: qual sua distância, qual seu tamanho, qual a riqueza de alimento no entorno. Para além destas decisões, há ainda o gerenciamento fino das tarefas: ir atrás de alimento, mas de que tipo? Construir novas câmaras de resíduos, mas onde? Criar uma nova abertura para o formigueiro, mas de que tamanho? São todas decisões que não cabem na cabeça de um indivíduo, como não cabe nestas minúsculas cabeças o plano completo para uma colmeia, ou formigueiro, ou cupinzeiro, ou vespeiro. Alguns comportamentos envolvem, portanto, alterações profundas no estado geral da colônia, que passa a migrar, ou a construir seu ninho, realizando portanto tarefas que não são a mera amplificação do comportamento de um indivíduo (como as trilhas que vimos mais acima), mas sim tarefas que não são pensáveis por indivíduo algum. A este pensar que se faz exclusivamente no coletivo, denominamos propriedades emergentes fortes.
Assim, às vezes o indivíduo importa (movimenta o social: alarme contra predadores), às vezes pequenos coletivos decidem por trilhas individualmente descobertas, e às vezes é a sociedade como um todo que deve decidir a partir de informações distribuídas no coletivo. Este último processo é o que permite o surgimento de formas pouco previstas de comportamento, por resultar da integração de informações difusas na sociedade. Olhando com cuidado, parece que de fato descobrimos um infinito dentro do ínfimo. Formigas são um caleidoscópio dentro do caleidoscópio, e sua sociedade revela em fractal aquilo mesmo de que nos constituímos.
A diferença entre os insetos sociais e nossa sociedade humana é que nossas mensagens não são anônimas: temos nome, e honramos os nomes de nossos ancestrais. Pertencemos a uma linhagem de primatas sociais que conhecem os componentes de seu grupo, que sabem o status de cada um, que sabem quem é amigo de quem, quem gosta de quem e do que e quando e como, e esta é uma importante diferença entre sociedades de primatas e de insetos. No entanto, com as cidades gigantescas que estamos construindo, milhões de desconhecidos interagem regularmente entre si, e seus nomes passam a ser quase irrelevantes. Muitas vezes procuramos o gerente no banco, e saímos dali sem saber seu nome, mesmo porque da próxima vez o gerente já será outro. Nas redes sociais, os nomes falsos, as curtidas falsas compradas em fazendas chinesas de cliques, as notícias falsas amplificadas no perfil inventado, tudo ressalta o anonimato contemporâneo.
Assim, talvez seja mesmo a hora de estudarmos as formigas, porque estamos cada vez mais deixando de ser primatas. Mas não se assustem, afinal, as formigas são lindas e complexas, não lembrando em nada as ficções que as retratam como pequenos robôs trabalhando às cegas. São tão espertas que certamente sobreviverão a holocaustos em gestação. Elas são nosso infinito ínfimo, e agora trilham nosso futuro.
Hilton Japyassú (UFBA)
Para saber mais:
Alem, S., Perry, C. J., Zhu, X., Loukola, O. J., Ingraham, T., Søvik, E., & Chittka, L. (2016). Associative mechanisms allow for social learning and cultural transmission of string pulling in an insect. PLoS biology, 14(10), e1002564.
Wehner, R. (2003). Desert ant navigation: how miniature brains solve complex tasks. Journal of Comparative Physiology A, 189(8), 579-588.
Imagem: homem coberto por abelhas, em https://i.ytimg.com/vi/lkkUYvn0VPs/maxresdefault.jpg
Uma consideração sobre “De humanos a formigas: o ínfimo infinito”