Novos inimigos invisíveis

Cientistas descobrem mais de 200 novas espécies de vírus de RNA em vertebrados, a partir de uma ampla busca por esses vírus em répteis, anfíbios e peixes.

Todos nós que crescemos durante a década de 1980 fomos de alguma forma marcados pelo início da epidemia de AIDS: o desconhecimento, o medo, e o preconceito marcavam então o cenário nacional e internacional. Foi apenas em 1984 que o vírus HIV foi isolado, dando início aos estudos da biologia viral e ao desenvolvimento de terapias antirretrovirais

Trinta milhões de pessoas já morreram desde o início da epidemia de AIDS, das quais 1 milhão morreu em 2016. Graças ao avanço das terapias antirretrovirais, a mortalidade por AIDS caiu 12% na América Latina entre 2000 e 2016, resultado da melhoria da expectativa e da qualidade de vida dos portadores de HIV. Hoje, mais de 30 milhões de pessoas estão infectadas com o vírus HIV, e em torno de 2 milhões de novos casos são registrados todos os anos. Apesar dos grandes avanços, a prevenção, sem dúvidas, ainda é o melhor caminho. Certamente, gerações anteriores foram assoladas por epidemias virais e, mais recentemente, outras nos assustam: a gripe aviária, o ebola, a gripe suína, o Zika. O certo é que nossos organismos (e as indústrias farmacêuticas) estão em constante corrida armamentista contra novos vírus que, por sua vez, não param de evoluir.

Os vírus são, em geral, classificados com base no material genético que carregam. A classificação mais amplamente utilizada, a classificação de Baltimore, reconhece sete classes, e leva também em consideração o mecanismo de produção de RNA mensageiro viral. Em particular, os vírus de RNA são os das classes III a VI. Mais de 200 vírus de RNA são conhecidos por infectar os humanos. Muitos deles são também os principais agentes de doenças emergentes, como o Ebola, a síndrome respiratória aguda grave (SARS) e a gripe aviária.

Os vírus de RNA de fita dupla (classe III) são agrupados em nove famílias, sendo a Reoviridae a mais conhecida, devido à presença de inúmeros agentes infecciosos de diversos organismos. Talvez o gênero mais notável seja o dos Rotavírus, uma das principais causas de gastroenterites em lactentes e crianças jovens. Os vírus de RNA de cadeia simples (classes IV e V) são classificados em 38 famílias, e estão entre os mais abundantes na natureza. Incluem a maior parte dos vírus de plantas, assim como o Rinovírus, que causa o resfriado comum em humanos, e os agentes infecciosos do sarampo (Paramyxoviridae), raiva (Rhabdoviridae), ebola (Filoviridae) e hantavirose (Bunyaviridae). Já os vírus agrupados na classe VI possuem RNA de fita simples e utilizam a transcrição reversa como o principal mecanismo de replicação do material genético. Dentre esses vírus, a família Retroviridae é a mais conhecida e inclui o HIV e o HTLV.

Um dos mecanismos conhecidos de defesa antiviral envolve a produção de RNAs de interferência (RNAi) por meio da ação de um complexo de proteínas do qual as proteínas ARGONAUTA (AGO) são componente fundamental. Em geral, os RNAi em vertebrados, invertebrados e plantas estão envolvidos na regulação da expressão gênica e na manutenção da estabilidade do genoma. Mas, em plantas e invertebrados, um grupo específico de proteínas AGO (siRNA-class AGO) atua também como linha de defesa contra vírus. Um estudo recente sugere que esse grupo particular de AGO está ausente em vertebrados, tornando-os particularmente susceptíveis a infecção viral.

Enquanto conhecemos muito sobre vírus de RNA em mamíferos e aves, sabemos muito pouco sobre esses vírus em outros vertebrados. No entanto, peixes, anfíbios e répteis representam uma parcela significativa dos vertebrados e possuem papel central na evolução desses vírus. Até o momento, conhecemos pouquíssimas espécies de vírus de RNA nesses hospedeiros e, por ocorrerem em pequeno número, esses vírus terminam sendo classificados em um grupo isolado e divergente daquele formado por vírus de aves e mamíferos.

Sabemos também muito pouco a respeito da frequência relativa com a qual os vírus de RNA são capazes de mudar de espécie hospedeira, fenômeno que geralmente leva à emergência de novas doenças no novo grupo hospedeiro. Assim, o estudo da diversidade desses vírus em outros grupos menos estudados de vertebrados nos permite entender um pouco mais a respeito da evolução desses vírus e das possibilidades futuras de emergência de novas doenças virais em humanos ou outros grupos de vertebrados de interesse.

Um estudo recente, publicado na última edição da revista Nature, fez justamente isso: realizou um extenso levantamento dos vírus de RNA presentes em peixes, répteis e anfíbios e comparou-os aos vírus já conhecidos em mamíferos e aves. Utilizando metagenômica em larga escala e focando principalmente nos grupos de vertebrados menos estudados, para os quais o nosso conhecimento a respeito da existência de vírus de RNA é ainda limitado, os pesquisadores foram capazes de detectar esses vírus em 168 espécies do filo Chordata. Dentre os organismos estudados estão os anfioxos, o peixe pulmonado Protopterus annectens, a tartaruga Mauremys megalocephala e Poecilia formosa, uma das espécies partenogênicas de peixes ósseos.

Foram identificados 214 novos vírus de RNA, dos quais 196 são específicos de vertebrados. Ainda, as análises filogenéticas apontam para o fato de que as novas espécies identificadas estão relacionadas a todos os grupos de vírus de RNA já identificados em aves e mamíferos. Pela primeira vez, vírus das famílias Arteriviridae, Filoviridae, Hantaviridae, Arenaviridae, Astroviridae, Bornaviridae, Coronavirinae, além dos vírus Influenza, Rotavirus e Rubivirus, foram encontrados em peixes e anfíbios (Figura 1).

Figura 1 – Novos vírus de RNA identificados no estudo. (a) Distribuição das novas espécies de vírus em relação aos seus respectivos hospedeiros. (b) Distribuição das novas espécies de vírus dentre as famílias de vírus de RNA (Adaptado de (2018)).

Um dos resultados mais surpreendentes desse estudo foi a identificação de novos vírus Influenza em anfíbios e nos vários peixes estudados, formando um grupo intimamente aparentado aos Influenzavirus B de humanos. Apesar de as análises evolutivas da grande maioria dos novos vírus identificados seguir o agrupamento das respectivas espécies de hospedeiros, os vírus Influenza e os Rotavírus fogem desse padrão. Em particular, o vírus Influenza encontrado em peixes ósseos apresentou-se mais semelhante aos vírus Influenza B de mamíferos, com 76% de aminoácidos semelhantes, sendo mais semelhante aos vírus de mamíferos do que àqueles encontrados em aves, répteis e anfíbios. O estudo apresenta ainda evidência sugerindo que, apesar de a evolução dos vírus de RNA estar intimamente ligada à evolução das respectivas espécies hospedeiras, a mudança de hospedeiro é um evento comum na evolução desses vírus, por vezes mais frequente do que anteriormente previsto (Figura 2).

Figura 2 – Relações evolutivas entre os vírus de RNA e seus respectivos hospedeiros vertebrados. (a) Evolução dos Hepatovírus apresentando clara correlação entre grupos de espécies virais e respectivos grupos de hospedeiros. (b) Evolução dos vírus influenza, sugerindo mudança de hospedeiro vertebrado (*) (Adaptado de , 2018)

Em suma, o estudo aponta para relações vírus-hospedeiro muito mais antigas do que o anteriormente previsto, o que sugere uma nova compreensão a respeito da origem dos vírus de RNA em vertebrados: os vírus de RNA possuem uma história evolutiva de milhares de anos, provavelmente desde a existência dos primeiros vertebrados, incluindo muitos dos vírus que hoje nos afetam.

Estudos futuros em novos grupos animais, ou em espécies pouco estudadas, podem revelar uma diversidade ainda maior de vírus de RNA. É muito provável que milhões de outras espécies desses vírus ainda sejam desconhecidas. Apesar de a identificação de um número significativo de mudanças de hospedeiro ao longo da evolução dos vírus de RNA não significar necessariamente um maior risco de emergência de novas doenças em humanos, um maior conhecimento a respeito desses vírus certamente nos auxiliará no entendimento da virosfera e dos processos evolutivos particulares a ela.

Ana Almeida

California State University East Bay (CSUEB)

Para saber mais:

Bowie, A. G. 2018. Self-RNA sentinels signal viral invasion. Nature Immunology 19, 4–5.

Dolja, V. V.; Koonin, E. V. 2018. Metagenomics reshapes the concepts of RNA virus evolution by revealing extensive horizontal virus transfer. Virus Research, 244: 36-52.

Simon-Loriere, E.; Holmes, E. 2013. Gene duplication is infrequent in the recente evolutionary history of RNA viruses. MBE, 30(6): 1263-1269.

Shi, M.; Zhang, Y-Z.; Holmes, E. C. 2018. Meta-genomics and the evolutionary biology of RNA viruses. Virus Research, 243: 83-90.

Figura de capa: (a) Rotavírus (escala, 100nm). Fonte: Wikipedia – F.P. Williams, http://www.epa.gov/microbes/rota.html(b) Ebola. Fonte: Wikipedia – CDC/Cynthia Goldsmith. Wikipedia, https://pt.wikipedia.org/wiki/Doen%C3%A7a_por_v%C3%ADrus_%C3%89bola#/media/File:Ebola_virus_virion.jpg(c) Vírus Influenza. Fonte: Wikipedia – Cynthia Goldsmith, Wikipedia, https://en.wikipedia.org/wiki/Influenza#/media/File:EM_of_influenza_virus.jpg

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