Inspiração nos sistemas de defesa bacterianos
A Conferência de Asilomar sobre o DNA recombinante, em 1975, reuniu mais de cem cientistas, médicos e advogados para discutir os riscos potenciais da manipulação genética e estabelecer normas para sua utilização. Pouco antes, cientistas haviam descoberto um sistema de defesa das bactérias contra os bacteriófagos, seus patógenos virais. As bactérias produzem enzimas (endonucleases) capazes de cortar genomas virais em pequenos pedaços. Essas enzimas foram isoladas e utilizadas para cortar sequências de DNA de diferentes fontes não bacterianas (inclusive o genoma humano). Os fragmentos eram ligados a outros por uma outra enzima, a DNA ligase. Assim começou a tecnologia do DNA recombinante e um período de avanços sem precedentes no conhecimento sobre genes, genomas e suas aplicações, que vão desde a obtenção de transgênicos até a produção de medicamentos e vacinas.
Agora, mais uma vez as bactérias nos emprestam as ferramentas para criarmos nossas próprias versões de genomas. Após analisar repetições de sequências de DNA em genomas de bactérias por quase dez anos, cientistas descobriram um novo mecanismo de defesa contra vírus. As repetições eram peculiares: formavam um agrupamento de sequências curtas repetidas e palindrômicas, intercaladas por sequências espaçadoras diferentes que eram resquícios de sequências virais invasoras. Esses agrupamentos de repetições palindrômicas curtas espaçadas regularmente (Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats, CRISPR), servem como uma memória imunológica que ajuda a detectar e destruir os vírus invasores, quando eles re-infectam uma bactéria. Associadas a essas repetições, estão enzimas (CRISPR-associated, Cas) que reconhecem os pedaços dos genomas virais e os adicionam ao CRISPR, entre as repetições palindrômicas. RNAs produzidos a partir de CRISPR ligam-se a outras enzimas, como a Cas9 por exemplo, e as direcionam para destruir novos invasores. Se a sequência do genoma do invasor é idêntica ao RNA (chamado de RNA guia), ele será recortado pela Cas9. Esse processo deve ser bastante preciso — se um pedaço do genoma da própria bactéria é adicionado, uma resposta autoimune é desencadeada, com o próprio genoma virando alvo das enzimas Cas. Como as bactérias e arqueias adquiriram este sistema imune tão sofisticado ainda intriga os cientistas. É possível que a imunidade por CRISPR seja derivada de elementos de transposição, sequências que mudam sua posição no genoma. Foi encontrada uma classe desses elementos que codificam a Cas1, uma das enzimas que inserem os fragmentos virais no genoma bacteriano.
Edição de genomas
Pela simplicidade e especificidade, esse mecanismo de reconhecimento e corte de sequências logo chamou a atenção de cientistas, que viram nele uma aplicação biotecnológica. Ao criar suas próprias sequências de RNAs guias, os cientistas conseguiram direcionar a enzima Cas9 a regiões específicas que eles desejavam cortar em um genoma. Quando o corte no DNA é realizando em uma célula que está em divisão, ele resulta na ativação de um sistema de reparo, que impede quebras e erros no DNA. Dependendo do tipo de corte induzido pelos cientistas, o sistema de reparo celular pode (1) “colar” o DNA cortado, com pequenas falhas que inativam o gene alvo, ou (2) “copiar” uma sequência fornecida pelos cientistas, resultando na substituição do gene alvo por uma sequência de interesse (Fig. 1). Assim foi criada a técnica de edição de genomas por CRISPR-Cas9, uma técnica muito mais precisa e simples de induzir mudanças genéticas.

Talvez a melhor analogia para entender a técnica seja pensar no genoma como um texto bem longo, que você acabou de escrever num processador de textos. Você então se deu conta de que escreveu CRISPR da forma como é pronunciado, com uma letra “E” extra, “CRISPER”. O texto é tão longo que você não sabe em qual página está a palavra errada. Como você faz para encontrar essa palavra escrita incorretamente? Você pode usar a ferramenta “localizar no texto”. Nesse caso fornecemos a palavra incorreta “CRISPER” para que o programa possa fazer a busca. Essa também é a primeira etapa do sistema de edição de genomas. Primeiramente, é necessário saber qual a sequência alvo (ou no nosso exemplo, a palavra alvo). A segunda etapa, consiste na substituição da palavra incorreta pela palavra certa. No caso de genomas, a Cas9 corta a porção correspondente à sequência do RNA guia fornecido e a própria célula vai tentar corrigir esse corte.
A primeira descrição deste método foi publicada em 2012. No mesmo ano, inúmeros grupos de pesquisa já estavam aplicando a técnica para entender a função de genes (inativando-os) e para explorar o potencial aplicado do CRISPR-Cas9, modificando genes já conhecidos. Menos de dois anos após a sua descrição, a técnica já havia sido utilizada para conferir resistência a pragas em trigo, entender efeitos de translocações cromossômicas, corrigir mutações patogênicas em linhagens de camundongos, entre outras (Fig. 2).

A polêmica
Em fevereiro de 2014, foi descrita a utilização do sistema CRISPR-Cas9 para editar o genoma de macacos da espécie Macaca fascicularis. Os embriões modificados desenvolveram-se em indivíduos com mudanças na maioria de suas células, incluindo suas células germinativas, demonstrando que as alterações poderiam ser passadas para gerações futuras. Esse foi o alerta para que se realizasse uma discussão sobre as implicações das mudanças em linhagens germinativas. Assim como na Conferência de Asilomar na década de 70, alguns cientistas se reuniram em Napa para discutir a utilização de CRISPR-Cas9. Entre as recomendações estavam um pedido de transparência nas pesquisas utilizando a técnica e de moratória a quaisquer tentativas de modificação da linhagem germinativa para aplicação clínica até que fosse feita uma ampla discussão sobre as implicações ecológicas, éticas e sociais dessas modificações.
Assim como num texto, as palavras isoladas do genoma não fazem sentido. Os genes trabalham em sintonia com outros genes e o ambiente para criar o fenótipo; são poucos os fenótipos afetados por um gene principal. Por exemplo, muitas doenças complexas como Alzheimer, escleroderma, asma, Parkinson, esclerose múltipla, doenças autoimunes, entre outras, resultam da combinação de alelos de inúmeros genes e do ambiente. Ainda não sabemos quais são essas combinações e as consequências de sua alteração. Muitos genes também exercem mais de uma função, e alguns alelos que levam a um aumento de risco de algum fenótipo “indesejado” podem ser os mesmos que conferem alguma vantagem adaptativa. Por exemplo, a variante APOE4, associada com o aumento de risco de Alzheimer, está presente na população em uma frequência de 15% e também pode proteger contra a deficiência de vitamina D.
Além disso, não podemos prever as consequências para as gerações futuras. Mesmo se identificarmos as “melhores versões dos genes”, elas serão apenas as melhores para as condições atuais. Por exemplo, o gene FTO tem uma forte associação com alguns tipos de obesidade. Algumas variantes aumentam o risco de obesidade, outras diminuem. No entanto, os efeitos delas dependem do ambiente. Além disso, a nossa espécie tinha um risco maior de sofrer de desnutrição que obesidade há pouco tempo atrás. A capacidade de armazenar calorias na forma de gordura já pode ter sido uma vantagem, ao contrário do que observamos hoje.
Ainda precisamos conhecer o funcionamento das intricadas relações entre os genes e o ambiente e as consequências de sua modificação. Neste momento, cientistas devem explorar todos os aspectos da tecnologia e entender o que pode ser feito de forma segura para ajudar tanto a nossa, como outras espécies, para então discutirmos os limites dessa aplicação. As tecnologias são amorais. Cabe à sociedade decidir o que fazer com elas.
Tatiana T. Torres (USP)
Para saber mais:
Lander, E (2016) The Heroes of CRISPR. Cell, 164: 18-28.
Barrangou R, Doudna JA (2016) Applications of CRISPR technologies in research and beyond. Nature Biotechnology, 34: 933–941.
Fonte da imagem de capa: Publico
Uma consideração sobre “CRISPR-Cas: o corretor ortográfico de genomas”