O termo “raça” tem sido usado para descrever a variabilidade de nossa espécie há pelos menos três séculos. De modo geral, a ideia é que uma raça representa um grupo de populações que compartilham algumas características físicas, culturais ou biológicas. Mas não há uma definição exata do que é uma raça nem de quantas existem em nossa espécie. Consequentemente, biólogos se debruçaram sobre a seguinte questão: até que ponto os achados genéticos sustentam a utilização de categorias raciais?
Num post anterior mostrei como estudos genéticos revelaram que as raças humanas não são muito diferentes umas das outras do ponto de vista genético. Além disso, dentro de cada raça há imensa variabilidade genética, muito similar à observada entre tais grupos. Esses achados levaram pesquisadores como Richard Lewontin a declararem que raças não possuem “significado genético” e que sua utilização deve ser abandonada.
Hoje examino três questões que são desdobramentos dessa refutação de raças biológicas. Primeiro, negar a realidade genética de raças significa que somos todos iguais? Segundo, porque seguimos falando de raças, se os cientistas negam sua validade? Por último, discuto como poderemos descrever a variabilidade genética humana, se decidirmos abandonar as classificações raciais.
Somos todos iguais?
Não é raro que os achados de estudos genéticos sejam usados para sustentar a ideia de que “não há diferenças” entre pessoas ou povos que vivem em diferentes lugares do mundo. Mas não é isso que os achados genéticos sustentam. Diferenças genéticas existem entre todos os seres humanos (menos entre gêmeos univitelinos, que são geneticamente idênticos). E há também diferenças entre populações de diferentes continentes. O que os estudos genéticos demonstram é que a variação genética humana não corresponde a grupos estanques, imutáveis e claramente separados, correspondendo a categorias raciais como “Negros Africanos”, “Caucasóides”, “Mongolóides”, característicos da literatura clássica sobre raças.
Conforme argumentei num post anterior, a diversidade genética humana não se encaixa de modo simples nas categorias raciais, pois não há um modo “certo e único” de subdividir a diversidade de nossa espécie. O uso da terminologia racial cria um retrato de subdivisões e de existência de grupos bem delimitados que, para um geneticista, não corresponde à realidade biológica.
É importante enfatizar: o problema com o uso de etiquetas raciais não é o fato dela implicar que há diversidade genética em humanos, nem que existam algumas diferenças genéticas entre grupos que habitam diferentes continentes. O problema reside em assumir que as categorias raciais tipicamente usadas representam um modo apropriado e único de descrever a variação genética humana. Podemos nos desfazer da terminologia racial na biologia, mas temos que seguir contemplando a existência da diversidade.
Se geneticistas refutam raças, porque ainda falamos tanto delas?
Os argumentos acima parecem implicar que cientistas têm clareza que a terminologia racial não é válida sob a ótica genética. Mas a referência a raças segue viva em nossos cotidianos. O tema esteve presente nas primeiras páginas dos jornais recentemente, ao tratar de cotas raciais para universidades públicas. O caso que gerou controvérsia diz respeito a alunos que fizeram o uso fraudulento das cotas, ao se autodeclararem como pertencentes ao grupo de pretos, pardos e indígenas, aos quais as vagas são destinadas.
Há várias questões para tratarmos aqui. Em primeiro lugar, como pode haver cotas para raças, se cientistas argumentam que não devemos alocar a diversidade humana em categorias raciais? A resposta é relativamente simples: nas ciências biológicas e nas humanidades, é comum um mesmo termo possuir múltiplos significados. A refutação da classificação racial diz respeito à sua realidade biológica. Porém, raças também são socialmente construídas. Um indivíduo se identifica como pertencendo a um grupo como “negro” não por causa da sua constituição genética, mas de sua identidade cultural e social. Faz sentido que as cotas em universidades públicas sejam voltadas para a perspectiva de raças socialmente construídas, pois seu objetivo é justamente corrigir as injustiças de origem social e histórica, com raízes no nosso passado em que havia escravidão.
Esse posicionamento gera um desafio: que critério adotar para definir a raça à qual um candidato a cotas pertence? Minha modesta contribuição para essa difícil questão é reiterar onde não procurar a resposta, que é na genética. A genética pode indicar a fração do genoma de um indivíduo que tem origem na África ou entre populações indígenas, mas não me parece ser exclusivamente isso que ajudará a reverter as injustiças cometidas contra grupos raciais socialmente definidos.
O desafio é grande, pois não há um critério objetivo para definir raças, e tal definição é necessária para implementar cotas. A autodeclaração segue como o critério utilizado, o que me parece ser apropriado. Já a instalação de “comitês raciais”, que teriam o poder de legislar sobre a declaração do candidato, me parece um caminho fadado ao fracasso, uma vez que é difícil imaginar que critérios objetivos podem ser adotados. Uma sugestão proposta pela UFMG para inibir as fraudes consiste em exigir, junto com a autodeclaração, uma carta em que descreve porque se identifica socialmente como preto, pardo ou índio.
Ancestralidade genética é a mesma coisa que raça?
Os mesmos estudos que argumentam que não é apropriado empregar categorias raciais para descrever a variabilidade genética humana, também mostram que há diferenças genéticas entre indivíduos. Mais do que isso, eles mostram que essa variação tem importante componente geográfico: dois indivíduos do mesmo continente são, em média, mais parecidos entre si do que indivíduos de diferentes continentes. A variabilidade genética humana não está aleatoriamente espalhada pelo mundo: em geral há mais semelhanças genéticas entre aqueles que estão geograficamente mais próximos.
Se pensarmos que, assim como entre membros de uma família, as populações humanas possuem elos de parentesco, torna-se possível identificar em que lugar do mundo viveram os seus ancestrais. Para isso, precisamos procurar o local onde vivem as pessoas que são geneticamente mais parecidas com você.
Há empresas que são especializadas em fazer análises desse tipo, um exemplo sendo a norte-americana 23andMe. Como a ancestralidade de um indivíduo é inferida? De modo simplificado, a empresa usa um banco de dados que contém dados genéticos de indivíduos de 31 países, e aplica métodos estatísticos para identificar com qual deles os dados genéticos de um cliente são mais parecidos (ou, para ser mais preciso, mais aparentados). Esses 31 países definem grupos maiores, tais como “Europa”, “Africa subsaariana”, “Oriente médio e norte-africano” (veja mais detalhes no site deles). Assim, um cliente envia o seu DNA e recebe de volta uma análise indicando qual pedaço do genoma veio de qual lugar no mundo.
A pergunta que compreensivelmente surge é a seguinte: qual a diferença entre dizer que um indivíduo possui “ancestralidade na África subsaariana” ou usar a categoria racial “Negro Africano”? Ou entre empregar “Europeu” em relação a “Caucasóide”? Para muitas pessoas, as categorias geográficas usadas para descrever a ancestralidade seriam apenas uma nova encarnação das categorias raciais. Há muitas pessoas que julgam que os cientistas evitam em falar de raças por serem “politicamente corretos”, mas a resposta é que há sim diferenças entre identificar a origem geográfica de nossos ancestrais e atribuição de raças. Em primeiro lugar, a atribuição de origem geográfica não é um exercício em que alocamos indivíduos a categorias fixas, como são as raças. Pelo contrário, a atribuição de um indivíduo depende dos dados que dispomos sobre ele e de características do banco de dados que estamos consultando. Por exemplo, é possível que um indivíduo seja classificado como pertencente a um grande grupo abrangendo nativos americanos e populações do leste asiático. Isso decorre do fato de nem sempre termos resolução para identificar com precisão o local de origem, então uma inferência mais grosseira é feita, e ela não equivale a qualquer categoria racial.
Outro ponto importante é que as regiões geográficas que definem ancestralidades vão sendo redefinidas à medida que aprendemos mais sobre como a diversidade genética humana está espalhada pelo mundo. Por exemplo, nas análises da 23andme há uma origem geográfica que é “Oriente Médio e norte da África”; isso não corresponde a nenhuma categoria racial, mas trata-se de uma região em que muitos indivíduos são evolutivamente aparentados. Ou seja, faz sentido biológico tratá-la como uma unidade.
Por fim, muitos indivíduos de vários países, em particular o Brasil, não poderiam ser alocados a uma raça pelo simples fato de possuírem ancestralidade espalhada por vários locais. Quantos brasileiros são em parte africanos e em parte europeus? A abordagem de ancestralidade contempla essa possibilidade, descrevendo um indivíduo como um mosaico de ancestralidades, ao invés de alocá-lo numa única raça.
Por essas razões, quando há interesse em compreender a diversidade humana sob perspectiva genética, é preferível falar de ancestralidade do que em raças. Cientificamente, é muito mais preciso descrever alguém como possuindo “80% de ancestralidade na África subsaariana e 20% de ancestralidade europeia”, por exemplo, do que simplesmente alocá-lo em “Africano”, “Europeu” ou mesmo “Pardo”. Assim, na era da genômica, temos fortes argumentos para abandonar o uso da terminologia racial e passar a falar em ancestralidade, remetendo aos prováveis locais de origem.

Aplicações da ancestralidade
No início deste ensaio argumentei que para a política de cotas, a genética era de pouca utilidade. Agora vou dar dois exemplos de situações em que a informação sobre ancestralidade pode ser útil.
Há certas drogas que podem ter efeitos indesejáveis dependendo de características genéticas do paciente. Por exemplo, a carbamazepina é uma droga antiepilética, mas que resulta numa reação adversa forte quando administrada a indivíduos que portam uma variante genética que é particularmente comum entre pessoas de ancestralidade asiática. Já o abacavir é uma droga antirretroviral usada no tratamento contra o HIV, que resulta numa grave reação de hipersensibilidade em indivíduos que portam uma variante genética que é mais comum entre descendentes de europeus. Nesses dois casos, a ancestralidade é informativa sobre a chance de haver riscos na ingestão de drogas.
Nesses casos, a identificação de quais regiões do mundo possuem mais indivíduos sob risco de desenvolverem respostas de hipersensibilidade foram identificadas sem ajuda de marcadores moleculares (“Asiáticos” e “Europeus”, nesses casos). Estudos mais detalhados em diversos países vem sendo feitos para identificar de modo mais preciso a distribuição geográfica das variantes genéticas que levam à hipersensibilidade. Diferentemente do caso das cotas raciais, a ancestralidade genética é informativa no contexto do uso dessas drogas. Ela nos levanta uma alerta sobre quais indivíduos estão sob maior risco para um tratamento.
Contexto é tudo
Como muitos temas que tratamos em ciência, a resposta para “raças existem” é dependente de contexto. A visão de raça relevante para implementar cotas é diferente do conceito de ancestralidade usado para planejar a utilização de um droga com efeitos colaterais que variam entre regiões do mundo. A palavra raça irá persistir conosco. A nossa tarefa será então exigir o máximo de clareza sobre a a forma como ela está sendo empregada.
Diogo Meyer (Instituto de Biociências, USP)
Para saber mais:
Lewontin, R. C. 1972. The apportionment of human diversity. Evol. Biol. 6:381–398.
Cavalli-Sforza, L. L. 2003. Genes, povos, línguas. Companhia das Letras.
David Dobbs, num artigo no New York Times, tratando de um livro que defende a existência de categorias raciais.
Excoffier, L. Human Diversity: Our Genes Tell Where We Live. Current Biology, 13: 134-136
Uma consideração sobre “Vamos conversar sobre raça”