As mutações que carregamos

Estamos acostumados a considerar que a seleção natural inexoravelmente eliminará das populações as mutações que são prejudiciais. Porém, há um processo evolutivo é capaz de se opor à seleção e que explica a persistência de mutações prejudiciais em nossos genomas

Toda vez que uma criança nasce, ela carrega aproximadamente 50 mutações novas, que surgiram nos gametas produzidos pelos seus progenitores. Como populações são formadas por grandes números de indivíduos, a cada geração muitas mutações estão surgindo.

Qual é o destino dessas mutações? A resposta depende do efeito que elas têm sobre o organismo. Mutações que trazem vantagens para o seu portador – por exemplo, tornando-o resistente a uma doença—se tornarão mais comuns. Nesse caso, estamos diante de um exemplo de evolução por seleção natural em que uma mutação é favorecida.

Entretanto, mutações vantajosas são bastante raras. É mais provável que mutações interfiram no funcionamento normal de um organismo, reduzindo as chances de sobrevivência e reprodução. Essas mutações prejudiciais tendem a ser removidas da população pela seleção natural.

Uma visão simplista do processo evolutivo sugere que as mutações vantajosas se tornarão comuns enquanto as prejudiciais deixarão de ser transmitidas, sendo eliminadas da população. Entretanto, o destino das mutações é mais complexo. Isso resulta da existência de uma outro fator evolutivo, a deriva genética.

A deriva genética é o componente do acaso envolvido na transmissão de material genético entre gerações. Assim como  uma moeda que foi jogada pode mostrar a face “cara” ou “coroa”, há um elemento de sorte por trás da presença ou ausência de mutações nos gametas que se unirão para formar um novo indivíduo. Esse sorteio faz com que o repertório de mutações mude entre gerações, alterando a constituição genética de populações. A deriva genética é particularmente intensa quando o número de indivíduos que constitui uma população é pequeno. Nesse caso, poucos gametas estão sendo sorteados para compor a nova geração, tornando provável que a nova geração seja diferente da anterior.

A interação entre esses dois processos tem importância fundamental sobre os rumos da evolução: a deriva genética sorteia as mutações que serão transmitidas para a próxima geração (independentemente do efeito que poderão ter para a sobrevivência de quem as possui) e a seleção natural torna as mutações vantajosas mais comuns e as prejudiciais, mais raras. Já na década de 1970, biólogos evolutivos perceberam que havia uma espécie de cabo de guerra entre essas forças: quando o processo de deriva for intenso, o acaso será a principal força evolutiva. Consequentemente, mutações vantajosas poderão ser perdidas e as prejudiciais mantidas. Nos casos em que há muita deriva genética, a sorte pesaria mais do que a seleção natural no destino de mutações.

Para testar essa hipótese, é preciso primeiro encontrar uma população sujeita a “muita deriva” e então analisar sua constituição genética. Um estudo recente focou no Quebec, uma província Canadense, cuja população se originou a partir de um conjunto pequeno de indivíduos vindos da França. Nesse sentido, podemos dizer que o processo de colonização do Quebec envolveu intensa deriva genética. Através do sequenciamento do DNA de indivíduos do Quebec e da França, dois resultados marcantes foram encontrados. Em primeiro lugar, os pesquisadores documentaram que há menos variação genética no Quebec do que na população de origem, a francesa. Isso é esperado, pois o processo de deriva genética resulta na perda de diversidade genética (nem toda a variação genética existente é transmitida para a gerações futuras).

Em segundo lugar, os pesquisadores observaram que a proporção de mutações prejudiciais era maior no Quebec do que entre os franceses a partir dos quais eles se originaram. A existência de uma maior proporção de mutações prejudiciais entre os habitantes do Quebec é uma consequência da deriva genética: o acaso foi mais importante do que o processo de seleção, de modo que certas mutações se tornaram comuns, apesar de serem prejudiciais. A intensa deriva fez o acaso predominar e a seleção não foi forte o suficiente para reverter tal efeito.

Há um segundo caso muito bem documentado de deriva genética intensa em nossa espécie. Humanos atualmente habitam a maior parte do globo, mas nossa espécie se originou na África. Ao sair daquele continente, rumo a novas regiões, um pequeno conjunto de migrantes sofreu intensa deriva genética. Esse êxodo africano deixou marcas em nossos genomas, conforme revelado por um estudo que também analisou sequências de DNA de indivíduos de várias regiões: populações não-africanas possuem menos variabilidade e carregam uma proporção maior de mutações prejudiciais do que as africanas. Novamente, o acaso prevaleceu sobre a seleção natural.

Esses dois estudos têm uma mensagem clara. A seleção natural vive num cabo de guerra com a deriva genética, que sorteia mutações para serem transmitidas para a próxima geração, independentemente do seu efeito. Às vezes, o processo de deriva é suficientemente intenso para que mutações prejudiciais persistam, escapando ao crivo da seleção natural.

Estamos acostumados e enxergar a seleção natural como o processo que molda nossas características genéticas. Esses estudos mostram que a deriva tem um papel importante, muitas vezes superando os efeitos da seleção natural.

Diogo Meyer (USP)

PARA SABER MAIS

Henn, Brenna M. et al. 2015. “Estimating the Mutation Load in Human Genomes.” Nature Reviews Genetics 16(6): 333–43.

Mccoy, Rajiv C, and Joshua M Akey. 2016. “Patterns of Deleterious Variation between Human Populations Reveal an Unbalanced Load.” Proceedings of the National Academy of Sciences 113(4): 10–12.

2 comentários em “As mutações que carregamos”

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