A domesticação de espécies de interesse econômico é um processo muito antigo, através do qual o ser humano realiza o cruzamento de indivíduos com características desejáveis, a fim de melhorar a sua produtividade. Milhares de espécies, tanto de animais como de plantas, já foram domesticadas ao longo da história. Por exemplo, um pouco da história da domesticação de várias espécies utilizadas na nossa alimentação pode ser encontrada no texto “A longa jornada evolutiva das plantas até os nossos pratos”, publicado aqui mesmo no Darwinianas.
Quando uma planta é domesticada, ela adquire um conjunto de características conhecidas como ‘síndrome da domesticação’, que facilitam o seu cultivo e aumentam sua produtividade. No entanto, além do processo de domesticação, outro processo também pode ocorrer , a desdomesticação. A desdomesticação resulta da evolução de características economicamente indesejáveis, a partir de variedades já domesticadas. Um exemplo amplamente estudado de desdomesticação é o do arroz.
As duas principais variedades de arroz cultivadas mundialmente (Oryza sativa indica e Oryza sativa japonica) tiveram histórias evolutivas relativamente independentes. A síndrome de domesticação do arroz inclui traços como o aumento do tamanho do grão, a perda da dormência e a manutenção do grão do arroz na planta até a sua colheita. Hoje, diversas variedades de arroz desdomesticado (chamado, em inglês, de weedy rice Oryza sativa L.) já são encontradas nas plantações de arroz de todo o mundo. Essas variedades desdomesticadas apresentam, em geral, tempo de dormência prolongado, crescimento rápido e a habilidade de competir agressivamente com as espécies domesticadas por nutrientes e luz.
A proliferação de populações desdomesticadas em meio a plantações de arroz é responsável por uma perda de mais de 45 milhões de dólares anuais, apenas nos Estados Unidos. Em algumas plantações, infestações com variedades desdomesticadas podem gerar uma perda de até 80% da produção. No entanto, os mecanismos genéticos da desdomestificação ainda são pouco conhecidos. Sem dúvidas, um maior conhecimento sobre esse processo pode ajudar a melhorar não apenas a produção de arroz, como também a produção de outros alimentos.
Nesse sentido, uma contribuição importante foi dada recentemente por Li e colaboradores. Empregando novas tecnologias de sequenciamento de DNA, eles compararam o genoma de diversas variedades de arroz selvagem, domesticado e desdomesticado, com o intuito de desvendar as regiões do genoma envolvidas nos processos de desdomesticação, ou seja, de retorno ao estado “selvagem”. Para isso, os pesquisadores sequenciaram mais de 30 genomas de duas das principais variedades de arroz desdomesticado encontradas nas plantações norte-americanas: a straw hull (ou SH) e a black hull awned (ou BHA). Além disso, utilizaram, para comparação, os mais de 145 genomas já disponíveis de variedades domesticadas, assim como de variedades selvagens (que não passaram por processo de domesticação).
Um resultado curioso desse trabalho foi a constatação de que poucas modificações genéticas são suficientes para que a desdomesticação ocorra. Além disso, do total de diferenças encontradas entre os genomas das variedades domesticadas e desdomesticadas, apenas 16% se encontram em regiões do DNA que contêm genes, as chamadas regiões codificantes. Essas modificações, no entanto, são diferentes para as variedades BHA e SH, sugerindo que a desdomesticação dessas linhagens ocorreu de forma independente. A partir da comparação do número de modificações no genoma das espécies desdomesticadas (BHA e SH) em relação às espécies domesticadas (O. sativa indica e O. sativa japonica) e selvagens (wild), os pesquisadores estabeleceram que os diferentes eventos de desdomesticação ocorreram em momentos distintos da história evolutiva desse cultivar.
Ao comparar os sinais de seleção natural no genoma, os cientistas se surpreenderam ao perceber que as regiões sob seleção das duas variedades de arroz desdomesticado estudadas eram totalmente distintas. A partir de uma comparação de mais de três mil regiões genômicas das variedades BHA e SH, apenas 12 regiões apresentaram sinais de seleção similares, sugerindo claramente que o processo de desdomesticação do arroz acontece por mecanismos genéticos distintos.
Os resultados obtidos nesse trabalho têm consequências interessantes tanto para o nosso entendimento das bases genéticas do processo de desdomesticação, quanto para a melhoria das técnicas atuais de geração de variedades agrícolas. As regiões genéticas sob seleção natural nas variedades SH e BHA possuem diversos genes que possivelmente estão associados a traços agronômicos importantes. Abrem-se, assim, diversas vertentes de estudos para uma maior compreensão do papel funcional desses genes. O certo é que ainda temos muito a aprender a respeito dos mecanismos evolutivos e genéticos subjacentes à desdomestificação.
Ana Maria Rocha de Almeida
California State University East Bay (CSUEB)
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Para saber mais:
Hufford, M.B.; Lubinsky, P.; Pyhäjärvi, T.; Devengenzo, M.T.; Ellstrand, N.C.; Ross-Ibarra, J. 2013. The Genomic Signature of Crop-Wild Introgression in Maize. PLoS
Genetics, 9(5): e1003477. doi:10.1371/journal.pgen.1003477.
Qiu, J.; et al. 2014. Genome re-sequencing suggested a weedy rice origin from domesticates indica–japonica hybridization: a case study from southern China. Planta, doi: 10.1007/s00425-014-2159-2.
He, Q.; Kim, K-W.; Park, Y-J. 2017. Population genomics identifies the origin and signatures of selection of Korean weedy rice. Plant Biotechnology Journal, 15: 357-366.
Imagem de Capa: Três variedades de arroz desdomesticado que invadem os campos de arroz de todo o mundo. As três variedades aqui apresentadas foram coletadas em um mesmo campo de cultivo na Espanha. (Fonte: Caicedo Lab, University of Massachusetts-Amherst, Estados Unidos, https://www.bio.umass.edu/biology/research/gbi/morphological-diversity-in-weedy-rice. Foto: Ana Caicedo)
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