Nossa capacidade de comunicação simbólica é sem dúvida impressionante. Basta olharmos para qualquer interação comunicativa entre humanos para ficarmos espantados com o que qualquer um de nós pode fazer com a linguagem. Esta capacidade é definidora de quem nós somos e está por trás de muito do que nossa espécie realizou ao longo da história.A comunicação simbólica é um entre muitos atributos humanos que foram utilizados para propor diferenças intransponíveis, verdadeiros abismos entre nossa espécie e outros animais. Em 1957, o antropólogo Kenneth Oakley publicou a primeira edição de seu livro “Homem: o produtor de ferramentas” (Man the tool-maker). O fato de que produzir ferramentas não é uma característica exclusivamente humana foi mostrado por estudos nas mais variadas espécies, de chimpanzés a golfinhos, de corvos aos nossos macacos-prego (como mencionado numa das postagens de Darwinianas). Houve quem considerasse a violência intra-específica e a realização de guerras um atributo unicamente humano, o que também caiu por terra quando Jane Goodall documentou amplamente a violência em chimpanzés. Terrence Deacon argumentou em “A espécie simbólica: a coevolução de linguagem e cérebro” (The symbolic species: the co-evolution of language and brain,) que a capacidade de usar símbolos seria unicamente humana. No entanto, como começamos a discutir na postagem de duas semanas atrás, há evidências de que outras espécies também são capazes de usar símbolos.
A grande atenção que dispensamos ao que nos diferencia de outros animais não causa espanto. Afinal, é parte de nossa tentativa de entendermos a nós mesmos (como é que viemos parar aqui, com nossa autoconsciência, e esta necessidade de resolver o problema de nossa própria existência?). É também consequência de nosso fascínio pelo que nossa espécie conseguiu realizar. Contudo, é importante reconhecer que entender o que nos aproxima dos demais animais é tão importante quanto entender o que nos distancia deles.
Primeiro, porque isso pode levar-nos a reconhecer que não se trata de compreender nossa superioridade e a inferioridade deles, mas, como disse Fernando Pessoa em um dos poemas de seu heterônimo Alberto Caeiro, que tudo que podemos saber é que somos diferentes, não podemos saber o que é mais ou o que é menos.
Segundo, somente entendendo características de outras espécies a partir das quais nossa capacidade de comunicação simbólica tenha evoluído, poderemos compreender como viemos a ser dotados de tal atributo. Dito de outra maneira, a evolução de nossas capacidades simbólicas deve ter como fundamento outras capacidades de outras espécies, que sofreram então modificações em nossa linhagem.
Essa constatação põe em destaque a relevância de respondermos se animais não humanos poderiam usar símbolos. Buscar essa resposta depende, contudo, de termos uma definição clara do que seja um símbolo. Sem isso, qualquer resposta que encontrarmos não lançará mais que uma pálida luz sobre nossa pergunta. Por sua vez, uma definição clara de símbolo depende de termos em mãos uma teoria sobre os sinais que são usados na comunicação, uma teoria dos signos, como a de Charles Sanders Peirce (1839–1914). Estamos, na verdade, repisando algo que já dissemos em postagem anterior, para chegarmos a um ponto central do argumento – podemos usar três atributos da comunicação simbólica para analisar se um animal usa símbolos:
- Um símbolo é um signo que pode referir-se a um objeto que não se encontra no mesmo contexto espaço-temporal.
- Um símbolo pode referir-se a uma classe geral de objetos ou eventos, e não somente a um objeto ou evento particular.
- A interpretação de um símbolo pode variar a depender do contexto.
Em busca desses atributos, hoje vamos tratar de um estudo que mostra como sinais usados na comunicação entre primatas podem ter distintos significados em diferentes contextos. Claro, isso já satisfaz o terceiro atributo acima… mas veremos que o estudo em questão mostra mais do que isso.
Em 2007, Jessica C. Flack e Frans de Waal publicaram um artigo que propôs hipóteses importantes para o entendimento da evolução da complexidade social em primatas, “o contexto modula o significado de sinais na comunicação de primatas” (context modulates signal meaning in primate communication). Embora não utilizem o conceito de símbolo, seus argumentos deixam claro a conexão de seus achados com a comunicação simbólica, se tivermos em vista os atributos que propusemos acima.
O estudo que realizaram com Macaca nemestrina (nome vulgar: Southern Pigtailed Macaque) teve uma motivação ampla: iluminar um aspecto central na evolução da complexidade social e da comunicação, a capacidade de comunicar-se sobre objetos e conceitos cada vez mais abstratos. Ou seja, nos termos que estamos usando, a capacidade de comunicação usando símbolos, que se refiram a objetos que não se encontram no mesmo quadro espaço-temporal e/ou sejam de natureza geral. Este é um fenômeno distinto da comunicação sobre comportamentos ou objetos/eventos imediatos, encontrada em muitos animais.

Flack e de Waal estudaram a exibição silenciosa dos dentes expostos (silent bared-teeth display), um sinal encontrado em várias espécies de primatas. Em Macaca nemestrina, assim como numa série de outros macacos, este é um sinal unidirecional (num par de macacos, sempre exibido por um mesmo membro do par para o outro), relacionado à dominância social.
Em seu estudo, Flack e de Waal mostraram que esse sinal tem dois significados distintos, a depender do contexto em que é emitido. Ele é emitido por um animal quando ocorre um conflito com um oponente pelo qual ele será provavelmente derrotado, com base em sua história passada de interações. Nesse contexto conflitivo, emitido em resposta a agressão ou ameaça, ele significa submissão ao oponente, como um meio de evitar que o conflito escale, ou seja, sinaliza um comportamento imediato, mas não uma rendição a uma condição subordinada na sociedade primata. Tanto o emissor quanto o receptor se beneficiam do sinal, por evitarem um conflito maior, que seria prejudicial a ambos.
Entretanto, o mesmo sinal também é exibido num contexto pacífico, quando os animais estão apenas passando um pelo outro, ou se aproximam sem comportamento de agressão ou ameaça pelo receptor. Nesse caso, ele pode ser interpretado como um sinal de um padrão geral de comportamento, a subordinação, na medida em que um comportamento de submissão imediata não faz sentido num contexto em que não está havendo conflito. Assim, os emissores do sinal diminuem a necessidade de que o oponente sonde o estado da relação por meio de agressão. Neste contexto, o sinal tem, pois, um significado geral e abstrato, o que indica tratar-se de um símbolo, considerando-se os atributos listados acima.
Esse sinal evoluiu num contexto conflitivo e foi então deslocado para um contexto pacífico. Tal deslocamento pode ser considerado uma invenção comportamental e de sinalização, com consequências para as relações sociais e um possível papel na evolução da complexidade social. A função desse deslocamento, conjecturam Flack e de Waal, é reduzir a incerteza do receptor do sinal sobre seu significado. Afinal, se emitido numa situação conflitiva, como um sinal de subordinação, de um padrão geral de comportamento, é muito difícil, se não impossível, o receptor interpretá-lo sem ambiguidade, uma vez que poderia significar somente submissão na interação presente. Ao deslocar o sinal para um contexto pacífico, no qual submissão não faz sentido, o emissor do sinal mostra claramente sua aceitação de uma posição subordinada na hierarquia social. Por isso, Flack e de Waal denominam esse tipo de comunicação uma “sinalização do estado da relação”. Essa sinalização pode ter papel importante na evolução da complexidade social em diferentes grupos de animais. Além de várias espécies de macacos, sinais unidirecionais de subordinação foram observados em chimpanzés e, possivelmente, hienas, lêmures-de-cauda-anelada, lobos e cães.
A diminuição da incerteza sobre o significado do sinal amenizaria restrições a relações positivas entre emissor e receptor. Ao indicar com menor ambiguidade o estado da relação entre os machos, o sinal facilitaria o desenvolvimento de relações sociais de maior qualidade, sendo importante para a evolução da complexidade social e a emergência de estruturas estáveis de poder nas sociedades primatas.
De fato, estudo anterior da própria Jessica Flack (em colaboração com David Krakauer) mostrou, usando Macaca nemestrina como modelo, que estruturas de poder temporalmente estáveis e bastante previsíveis emergem de redes de sinais trocados em contextos pacíficos. Esta estrutura de poder leva a um novo modo de gerenciar conflitos, mudando de modo importante a estrutura e a complexidade das redes sociais, que, para primatas, são recursos sociais fundamentais. A emergência dessa estrutura de poder parece depender da capacidade de se comunicar sobre padrões comportamentais, como a subordinação. Isso mostra a importância da comunicação simbólica em primatas, capaz de referir-se a objetos abstratos como padrões comportamentais, o que fornece base para hipóteses sobre as razões de sua preservação na evolução das sociedades primatas, uma vez que tenham aparecido.
A partir da hipótese de que a exibição silenciosa dos dentes expostos sinaliza, em contexto pacífico, um padrão comportamental de subordinação, Flack e de Waal fazem as seguintes previsões:
- Indivíduos que emitem esse sinal em contexto pacífico fazem grooming (catação) com o macho dominante com frequência maior do que macacos que não a realizam (a catação é importante na formação de vínculos sociais em primatas).
- Indivíduos que emitem o sinal em contexto pacifico se reconciliam com os machos dominantes, reparando relações após conflitos, com frequência maior do que macacos que não a realizam.
- Indivíduos que emitem o sinal em contexto pacifico lutam com os machos dominantes com frequência menor do que macacos que não a realizam.
Todas essas hipóteses foram apoiadas pelos dados coletados por eles no Yerkes National Primate Research Center, no estado da Geórgia, Estados Unidos, onde observaram 1.218 sinais emitidos em contexto pacífico e 403, em contexto conflitivo, entre animais não aparentados de um grupo de Macaca nemestrina.
Flack e de Waal tiveram o cuidado de testar hipóteses alternativas que poderiam resultar em correlações espúrias entre exibição pacífica do sinal e qualidade das relações entre os machos, como alguma regra de reciprocidade subjacente às relações (p. ex., indivíduos poderiam fazer grooming com membros mais dominantes em troca de apoio durante lutas), ou algum efeito do temperamento dos animais (p. ex., subserviência dos indivíduos subordinados ou tolerância dos dominantes). Todas as hipóteses alternativas foram refutadas pelos dados obtidos.
A sinalização do estado da relação, como mostrada na exibição silenciosa dos dentes expostos por Macaca nemestrina em contexto pacífico, tem tal importância que estudos comportamentais, cognitivos e neurológicos a seu respeito seriam muito importantes, como destacam Flack e de Waal. Seria importante investigar, p. ex., como o contexto modula a decodificação do objeto do signo pelo receptor. Será que submissão e subordinação, como objetos distintos do mesmo signo, são codificadas neuralmente de maneiras distintas e, se sim, como estas codificações seriam disparadas pelas pistas contextuais? Como a relação entre a emissão pacífica do sinal e o estilo de interação de um par de animais é estabelecida, ao longo de vários caminhos potenciais, contingentes, de desenvolvimento? Em estudos envolvendo várias espécies, poderia ser encontrada uma correlação entre complexidade social e capacidade de sinalizar o estado das relações entre indivíduos? Espécies que não possuem tal capacidade teriam relações caracterizadas por menores níveis de cooperação, menor nível de afiliação, interações triádicas pouco frequentes e ausência de estruturas de poder que influenciam interações entre indivíduos? Todas estas são novas previsões que podem dar vez a estudos capazes de levar a avanços no conhecimento sobre a evolução da complexidade social.
A exibição silenciosa dos dentes expostos num contexto pacífico satisfaz todos os atributos da comunicação simbólica que estamos utilizando: ela é um signo que se refere a um objeto geral, um padrão comportamental, que não pode situar-se, pois, no mesmo contexto espaço-temporal da emissão do sinal, e sua interpretação é dependente do contexto da emissão.
Embora Flack e de Waal não tratem esse sinal como um símbolo, eles fazem uma comparação sugestiva com sinais usados na linguagem humana (palavras e sentenças), que podem representar tanto ideias quanto objetos e eventos temporal e espacialmente separados do próprio sinal. A linguagem humana é testemunho, assim, de uma transição de um sistema de signos que somente permite comunicação sobre o aqui e o agora, sobre o contexto imediato em que a comunicação ocorre, para sinais que se referem a objetos abstratos, divorciados no tempo e no espaço do contexto de emissão dos sinais, exatamente o que podemos denominar símbolos, à luz da semiótica de Peirce. Para Flack e de Waal, a distinção entre sinais relacionados à dominância emitidos em contexto conflitivo, no qual comunicam intenção de retirar-se da interação presente, e em contextos não conflitivos, nos quais comunicam concordância com um padrão comportamental subordinado, é potencialmente um análogo mais simples dessa transição, em animais não humanos.
A capacidade de usar símbolos mostrada por Macaca nemestrina ao exibir silenciosamente os dentes expostos num contexto pacífico reforça a ideia de que não é nessa capacidade que encontramos a diferença entre humanos e outros primatas. Há diferenças, claro, mas há também aproximações que são muito relevantes quando tentamos compreender a evolução da capacidade humana de comunicação simbólica e, em última instância, da nossa linguagem.
Charbel N. El-Hani
(Instituto de Biologia/UFBA)
PARA SABER MAIS:
Deacon, T. W. (1997). The symbolic species: the co-evolution of language and brain. New York, NY: W.W. Norton.
Flack, J. C. & de Waal, F. (2007). Context modulates signal meaning in primate communication. PNAS 104: 1581-1586.
Queiroz, J. (2004). Semiose segundo C. S. Peirce. São Paulo: EDUC/FAPESP.
Ribeiro, S., Loula, A., Araújo, I., Gudwin, R. & Queiroz, J. (2007). Symbols are not uniquely human. BioSystems 90: 263-272.
Thierry, B.; Demaria, C.; Preuschoft, S. & Desportes, C. (1989). Structural convergence between silent-bared teeth display and relaxed open-mouth display in the Tonkean Macaque (Macaca tonkeana). Folia Primatologica 52: 178-184.
Figura da capa: Exibição silenciosa dos dentes expostos (silent bared-teeth display) em Macaca tonkeana. Nesta espécie, esse sinal é bidirecional (ou seja, num par de animais, A e B, há exibição tanto de A para B, quanto de B para A) e não é usado como sinal relacionado à dominação, como em Macaca nemestrina, espécie da qual trata a postagem. Na imagem, um macho adulto emite esse sinal enquanto agarra suavemente o escroto de um macho juvenil (de Thierry, B. et al., 1989).
Uma consideração sobre “Sinais com significados dependentes do contexto são símbolos usados por macacos”