A metade oculta do ecossistema Devoniano

Cientistas descrevem o mais antigo registro de paleossolo com rizomas de plantas vasculares e propõem um importante papel para essas estruturas na estabilização dos solos há 400 milhões de anos.

 

As consequências da erosão dos solos, principalmente devido à ação da água, são largamente conhecidas, assim como sabemos também do papel da vegetação na redução das taxas de erosão. Sabemos que as taxas de erosão do solo decrescem exponencialmente com o aumento da cobertura vegetal e, pelo menos desde 2005, tornou-se inequívoca a contribuição das raízes na diminuição das taxas de erosão do solo.  Apesar dos avanços nos conhecimentos sobre as contribuições recentes da vegetação na formação e estabilização do solo, ainda sabemos pouco sobre a contribuição da cobertura vegetal para o estabelecimento e a evolução dos solos ao longo da história da Terra.

Os paleossolos são solos antigos, do passado distante, que foram preservados como fósseis.  Em Agosto desse ano, Xue e colaboradores publicaram nos Proceedings of the National Academy of Science (PNAS) um relato do que os autores consideraram o paleossolo mais antigo que apresenta rizomas de plantas vasculares. Um rizoma é um caule modificado, geralmente subterrâneo e horizontal, do qual partem raízes e ramos. Têm papeis importantes na reprodução clonal (ou também conhecida como reprodução vegetativa) de muitas espécies de plantas, como bananeiras, samambaias e orquídeas. Alguns rizomas são comestíveis, como é o caso do gengibre (Zingiber officinale).

Xue e colaboradores encontraram, nos depósitos de Yunnan, na China, complexas redes de rizomas da planta Drepanophycus em paleossolos do Devoniano Inferior, datando entre 411 e 408 milhões de anos atrás (ver Figura 2).

Diversos acontecimentos importantes marcaram a história da vida na Terra durante os seus 4,5 bilhões de anos. Dentre eles, podemos citar o surgimento da vida na Terra há 3,8 bilhões de anos, o surgimento da fotossíntese há 2,1 bilhões de anos, e o aparecimento dos primeiros seres multicelulares há 900 milhões de anos. Há aproximadamente 255 milhões de anos, no final do Permiano, a Terra sofreu a maior extinção em massa da sua história, que dizimou uma quantidade considerável de espécies do planeta. As primeiras plantas com flores surgiram por volta de 130 milhões de anos atrás, no Cretáceo, e há apenas 6 milhões de anos os hominíneos divergiram dos chipamzés e bonobos, e logo em seguida se tornaram bípedes (Uma história detalhada da vida na Terra pode ser encontrada aqui).

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Insira uma legendaFigura 2: Principais divisões do tempo geológico e suas durações aproximadas em milhões de anos (Ma).  A seta indica o período Devoniano. Fonte: Imagem modificada da Geological Society of America.

Diante de tantos acontecimentos importantes, qual seria, portanto, a relevância da descoberta dos rizomas no paleossolo do Devoniano Inferior?

A resposta a essa questão está intimamente relacionada à contribuição das plantas para a formação e estabilização dos solos. Os solos são formados por um processo chamado pedogênese e o modelo mais aceito para explicar esse processo envolve 5 fatores: o clima, a ação dos organismos, o relevo, a rocha matriz e o tempo.  Cientistas consideram que a grande radiação das plantas vasculares no final do Paleozóico teve um impacto profundo no planeta. Principalmente durante os períodos Siluriano e Devoniano, aconteceu uma série de mudanças significativas na atmosfera e superfície terrestres, incluindo a diminuição das taxas de gás carbônico atmosférico, a estabilização de encostas de rios e planícies alagadas, e o aumento dos depósitos sedimentares associados a intensa pedogênese.  Essas mudanças estavam, até o momento, fortemente ligadas à expansão das plantas vasculares com sistemas radiculares bem desenvolvidos, principalmente de porte arbóreo.

Pouco sabemos sobre a influência das plantas vasculares nos processos de formação dos solos no intervalo entre 420 a 390 milhões de anos atrás, antes do surgimento das árvores. Até então, cientistas julgavam que as primeiras plantas vasculares, do Siluriano Superior e Devoniano Inferior, como as Rhyniopsida, Zosterophyllopsida, Lycopodiophyta, e diversos grupos de Euphyllophytes em geral espécies de pequeno porte, teriam  estruturas subterrâneas superficiais e pouco desenvolvidas, de maneira similar à sua parte aérea. Os primeiros registros de árvores com sistemas radiculares profundos e bem desenvolvidos datam de 385 milhões de anos atrás, 20 milhões de anos depois dos registros apresentados por Xue e colaboradores.

Em seu trabalho, esses autores também relatam os resultados de um estudo detalhado do paleossolo onde os rizomas foram encontrados. Eles estudaram a rocha sedimentar vermelha típica dos depósitos de Yunnan, tanto morfológica quanto geoquimicamente. Talvez o achado mais interessante seja não apenas o complexo sistema de rizomas encontrado em várias camadas do solo, mas o registro sucessivo de soterramento de rizomas e partes aéreas, sugerindo a formação de uma malha capaz de agregar e estabilizar sedimentos. Esse fenômeno é visto também em ecossistemas modernos, onde plantas de hábito herbáceo-arbustivo e com capacidade de reprodução clonal por meio de rizomas, são importantes determinantes da diversidade de comunidades de plantas, tornando-se espécies dominantes nesses ambientes. A matéria orgânica proveniente tanto do rizoma quanto do soterramento das partes aéreas pode auxiliar na fertilidade do solo, além de promover resistência contra erosão.

Com bases nesses achados, os autores propõem que os rizomas das primeiras plantas vasculares, como aqueles de Drepanophycus, tiveram um papel fundamental na formação e estabilização dos solos da Terra há 400 milhões de anos, antes mesmo do surgimento dos sistemas radiculares mais profundos das plantas de porte arbóreo.

A metade oculta do ecossistema Devoniano seria, dessa maneira, muito mais complexa do que até então imaginávamos. O solo do Devoniano Inferior seria permeado por complexas estruturas de rizomas das espécies herbáceas predominantes, como Drepanophycus. Essas estruturas subterrâneas teriam sido fundamentais no aumento da resiliência dos ecossistemas terrestres e promovendo um ambiente propício para a colonização de plantas de porte arbóreo nos 20 milhões de anos seguintes. Os antigos sistemas de rizomas, até então escondidos e desconhecidos, seriam componentes fundamentais da história dos ambientes terrestres tais como conhecemos hoje.

A fração subterrânea do ecossistema do Devoniano Inferior estava, até então, longe dos olhos dos cientistas, mas sua importância sempre esteve perto (muito perto!) de nós.

Ana Maria Almeida

(Instituto de Biologia/UFBA;

California State University East Bay/Hayward)

Para saber mais:

(1) Kernick, P. & Strullu-Derrien, C. (2014). The origin and early evolution of roots. Plant Physiology, 166: 570-580.

(2) Vannoppen, W. et al. (2015). A review of the mechanical effects of plant roots on concentrated flow erosion rates. Earth-Science Reviews, 150: 666-678.

(3) Gibling, M.R. & Davies, N.S. (2012). Palaeozoic landscapes shaped by plant evolution. Nature Geoscience, 5: 99-105.

(4) Retallack, G.J. (2001). Soils of the past: An introduction to paleopedology. John Wiley & Sons.

(5) Jenny, H. (1994). Factors of Soil Formation: A system of quantitative pedology. Dover Publications, INC. New York.

(6) Iwatsuki, K & Raven, P. H. (eds). (1997). Evolution and diversification of land plants. Springer-Verlag. Tokyo.

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