Neste semestre, estamos envolvidos num tipo inovador de disciplina, criado na Reitoria de Felippe Serpa, na Universidade Federal da Bahia: Atividade Curricular em Comunidade e Sociedade (ACCS). A ideia é engajar estudantes, sob orientação de docentes, em iniciativas que lidam com uma diversidade de questões sociais. É um bom exemplo de como é falsa a ideia de que as universidades públicas brasileiras contribuem pouco para a sociedade.
Nossa ACCS se ocupa da resiliência de sistemas socioecológicos, tema de duas postagens anteriores do blog: Indicadores precoces de mudanças críticas são importantes para gestão de sistemas socioecológicos; Um olhar histórico sobre a ciência da resiliência). A ACCS trata das relações entre resiliência ecológica, social e econômica em Pirambu-SE, onde foi instalada a primeira base do Projeto TAMAR, especialmente dedicada à conservação da tartaruga oliva (Lepidochelys olivacea).
Antes de irmos a campo, promovemos três sessões de estudo: sobre resiliência de sistemas ecológicos; construção de estratégias de conservação em sistemas socioecológicos e economia ecológica; e Métodos de análise de sustentabilidade ecológica, social e econômica. Três artigos que discutimos são a base para esta postagem.
Em 2008, Marc Stern publicou o artigo The power of trust: toward a theory of local opposition to neighboring protected areas (O poder da confiança: rumo a uma teoria da oposição local a áreas de conservação vizinhas), em que relata resultados de estudos de comunidades vizinhas a três parques: Great Smoky Mountains National Park (EUA); Virgin Islands National Park, na parte norte-americana das Ilhas Virgens; Parque Nacional Podocarpus, no Equador.
A teoria dominante sobre conflitos entre comunidades locais e áreas protegidas se baseia no racionalismo econômico, propondo que esses conflitos são persistentes quando perdas econômicas não são superadas por ganhos compensatórios. Uma das soluções seria propiciar benefícios tangíveis para as comunidades vizinhas, suplantando perdas decorrentes das medidas de conservação.
Recentemente, uma teoria alternativa, mais voltada para os residentes locais e seu empoderamento, vem ganhando espaço. Desta perspectiva, a participação das comunidades locais na gestão das áreas protegidas é fundamental para evitar conflitos.
Stern investigou fatores que influenciam a decisão das pessoas de se opor ou não às áreas protegidas. Eles incluem avaliações racionais dos benefícios e das desvantagens (foco do racionalismo econômico), da confiabilidade dos gestores dos parques e de sua receptividade às contribuições locais, das atitudes de outras pessoas da comunidade em relação aos parques, da consistência das medidas de conservação (p. ex., ações dos guardas-parque), além de valores ambientais. Detalhes da metodologia do estudo, fundamentada em contribuições de teorias como a do comportamento planejado, se encontram no artigo original.
Esse estudo mostrou que o racionalismo econômico é insuficiente para compreender a resistência às áreas protegidas, sugerindo que a suposição de que pessoas podem ser entendidas como agentes racionais que sempre tomam decisões por meio da avaliação de vantagens e desvantagens leva a uma abordagem, no mínimo, incompleta. Devem-se considerar outras variáveis, como a desconfiança das comunidades locais em relação aos gestores dos parques, o preditor mais consistente da oposição ativa nos casos estudados por Stern. Não podemos extrapolar esses resultados para todos os casos, mas é tentador pensar se muitos problemas de nossas sociedades não estão sendo atacados de modo ineficaz com base no puro racionalismo econômico.
Claro, seguem sendo importantes políticas que forneçam alternativas de renda para comunidades vizinhas a parques, que perderam acesso a recursos que foram protegidos. Embora a análise racional de vantagens e desvantagens seja insuficiente para explicar a reação das comunidades, é uma questão de respeito a elas e de justiça socioambiental dar acesso a tais alternativas.
A partir desses estudos de caso, Stern propôs um modelo das razões para oposição a áreas protegidas (Figura 1).

Primeiro, quando há falta de alternativas, não há de fato decisão de opor-se às áreas protegidas. Se uma comunidade não tem alternativa de subsistência a não ser a caça ilegal numa área protegida, não podemos dizer que caçar seja uma oposição à conservação.
No modelo, linhas pontilhadas indicam razões que não foram encontradas de modo consistente em todos os casos estudados. Linhas cheias representam razões encontradas em todos os parques. O preditor mais forte da atitude das comunidades é a avaliação da confiança, que depende de variáveis como receptividade dos gestores às contribuições da comunidade local; compreensão e respeito dos gestores à cultural local; grau de sua conexão com a comunidade; e capacidade técnica e consistência das ações da equipe do parque. Avaliações racionais predisseram atitudes de todas as comunidades, mas de modo fraco. Atitudes dos outros membros da comunidade e valores ambientais foram os preditores mais fracos. Contudo, o estudo não levantou a influência dos valores apropriadamente, baseando-se apenas no nível de concordância entre preferências de usos da terra de pessoas da comunidade e regulamentos do parque.
Em colaboração com Timothy Baird, Stern abordou o caráter multifacetado da confiança em artigo publicado em 2015, Trust ecology and the resilience of natural resource management institutions (Ecologia da confiança e a resiliência de instituições de manejo de recursos naturais).
Eles distinguem quatro tipos de confiança. Confiança disposicional: predisposição inicial de um indivíduo para confiar ou desconfiar de outro indivíduo, instituição ou organização. Uma de suas bases são experiências da pessoa em sua primeira infância, mas também é influenciada por experiências posteriores.
Confiança racional: baseada em avaliação de resultados prováveis do comportamento de um parceiro, a partir de interações anteriores e estimativa de custos e benefícios da decisão de confiar.
Confiança por afinidade: decorrente de fatores, como percepções de valores compartilhados, que promovam sentimentos de afinidade com um parceiro.
Confiança sistêmica: associada a normas sociais e procedimentos claros e transparentes, que protejam parceiros do risco de confiar.
Esses tipos de confiança interagem uns com os outros: por exemplo, se tenho grande confiança disposicional, posso decidir confiar sem demandar muita afinidade de um parceiro ou muitas vantagens numa análise racional. Se há grande confiança sistêmica, posso decidir confiar quando há mais risco ou menos afinidade, e assim por diante.
Devido às interações dos tipos de confiança, Stern e Baird argumentam que a resiliência das instituições de manejo de recursos naturais é tanto maior quanto maior a diversidade de tipos de confiança. Outro ponto importante é que confiança e desconfiança não se situam no mesmo espectro: uma dimensão vai da total falta de confiança à confiança plena, outra, da completa desconfiança à total ausência de desconfiança. Assim, há várias combinações possíveis de confiança e desconfiança nas pessoas, instituições e organizações. E confiança, falta de confiança e desconfiança podem cumprir papeis positivos e negativos nas interações sociais. Uma função positiva da desconfiança é que ela pode motivar participação e deliberação, embora, num sentido negativo, possa levar a conflitos improdutivos, sabotagem, recusa em compartilhar informação e abandono da interação. Falta de confiança tem os mesmos papeis positivos da desconfiança, mas menos consequências negativas, como apatia e abandono das relações. Mais surpreendente é pensar que quantidades crescentes de confiança não têm sempre papel positivo. Embora tenha várias funções positivas, motivando participação, colaboração, inovação, compartilhamento de ideias e construção de capital social, a função positiva da confiança satura. Confiança excessiva numa interação social pode gerar apatia ou, pior ainda, complacência, que mina o debate ativo e a atitude crítica. A partir do que Stern e Baird denominam “limiar de complacência”, tende-se a delegar tarefas a parceiros nos quais se confia muito, em vez de participar. Pequenas doses de falta de confiança, e até mesmo desconfiança, podem cumprir papeis construtivos, sobretudo quando há suficiente confiança sistêmica.
O artigo de Stern e Baird ajuda a entender os achados de estudo publicado em 2013 por Jordan Smith e colaboradores, Community/agency trust and public involvement in resource planning (Confiança comunidade/agência e envolvimento público no planejamento de recursos). Embora tenham partido da hipótese de uma relação positiva entre confiança de membros de uma comunidade num órgão de manejo e participação em debates públicos e ações de gestão, seus resultados indicaram que o nível de confiança disposicional dos indivíduos, sua crença de que a gestão era guiada por valores similares aos seus, e a confiança na competência moral dos gestores estão significativa e negativamente relacionados ao grau de engajamento. Eles encontraram, pois, evidências do ponto de saturação além do qual confiança leva a apatia e complacência, como teorizado por Stern e Baird.
Esses resultados sugerem que a construção de laços de confiança com comunidades locais, embora importante, não é suficiente. É preciso dar atenção, também, aos desejos dos indivíduos que desconfiam de órgãos ambientais, áreas protegidas etc.
Esses três estudos são importantes para a construção de propostas de gestão e conservação ambientais. Eles mostram que seu sucesso pode depender de: (1) iniciativas apropriadas de desenvolvimento local, que deem alternativas de renda às comunidades que perderam acesso a recursos; (2) gestão baseada em pessoas, que busque a construção de laços de confiança; e (3) engajamento sustentado no debate com pessoas que desconfiam das iniciativas de gestão e conservação, visando não somente convencimento, mas também soluções pactuadas, que considerem seus interesses e valores.
Charbel N. El-Hani
Gustave Lopez
(Instituto de Biologia/UFBA)
PARA SABER MAIS:
Hahn, T., Olsson, P., Folke, C. & Johansson, K. (2006). Trust-building, knowledge generation and organizational innovations: the role of a bridging organization for adaptive comanagement of a wetland landscape around Kristianstad, Sweden. Human Ecology 34: 573-592.
Smith, J. W., Leahy, J. E., Anderson, D. H. & Davenport, M. A. (2013). Community/agency trust and public involvement in resource planning. Society & Natural Resources 26: 452-471.
Stern, M. J. (2008). The power of trust: Toward a theory of local opposition to neighboring protected areas. Society and Natural Resources 21: 859-875.
Stern, M. J. (2008). Coercion, voluntary compliance and protest: the role of trust and legitimacy in combating local opposition to protected areas. Environmental Conservation 35: 200–210.
Stern, M. J. & Baird, T. D. (2015). Trust ecology and the resilience of natural resource management institutions. Ecology and Society 20: 14.
Stern, M. J. & Coleman, K. J. (2015). The multidimensionality of trust: Applications in collaborative natural resource management. Society & Natural Resources 28: 117-132.