Nossa percepção visual é tridimensional: largura, altura e profundidade. Distinguimos largura e altura de acordo com a posição da imagem de um objeto na nossa retina, e profundidade de acordo com a diferença de posição em cada olho. Coloque seu dedo na frente do rosto a quinze centímetros e feche um olho. Depois, abra esse olho e feche o outro, sem mover o dedo. O dedo parece se mover, pois está sendo visto de uma posição relativamente diferente. Quanto mais próximo do rosto, mais evidente esse efeito. Nosso cérebro usa essa diferença para criar a percepção de profundidade.
A retina tem neurônios conectados ao cérebro pelo nervo óptico. Antes de entrar no cérebro, neurônios das duas retinas se encontram em uma região chamada de quiasma óptico. Aqui acontece o truque que permite criar a percepção de profundidade: alguns neurônios de um mesmo olho se conectam ao lado direito do cérebro e outros ao lado esquerdo. Assim, quando os dois olhos estão abertos, um mesmo lado do cérebro recebe a imagem do dedo em posições levemente diferentes e calcula sua distância do rosto.
Essa organização em que cada olho está conectado aos dois lados do cérebro é chamada de bilateral e está presente em todos os mamíferos. Na maioria dos peixes, cada olho está conectado somente ao lado oposto do cérebro (Figura 1). Acreditava-se que conexões bilaterais evoluíram nos ancestrais dos vertebrados terrestres, como um sistema mais adequado para a visão noturna, mas um estudo publicado esta semana na revista Science contradiz essa hipótese.
Figura 1: A conexão de um olho ao lado oposto do cérebro é chamada de contralateral e ao mesmo lado é chamada de ipsilateral (modificado de Vigouroux, 2021).
Uma cooperação entre cientistas da Europa, dos Estados Unidos e da Austrália investigou como os olhos estão conectados ao cérebro em espécies de peixes mais próximos evolutivamente aos vertebrados terrestres (tetrápodes). Para poder visualizar as conexões, eles injetaram substâncias florescentes de diferentes cores em cada olho e seguiram os neurônios marcados até o cérebro usando duas técnicas inovadoras de microscopia. Primeiro, tornaram os cérebros transparentes e depois os colocaram em um microscópio que utiliza um lençol de laser para reconstruir modelos tridimensionais.
Mais de 95% dos peixes ósseos pertence a um grupo chamado de teleósteos e muito do nosso conhecimento sobre neuroanatomia dos peixes foi produzido usando espécies que pertencem a esse grupo. Sete espécies de teleósteos foram usadas no estudo, incluindo saltadores-do-lodo, que podem passar longos períodos fora da água, e peixes-de-quatro-olhos, que têm olhos divididos em duas regiões especializadas para ver dentro e fora da água. Nenhum deles tem conexões bilaterais, estando cada olho conectado exclusivamente ao lado oposto do cérebro (Figura 2).
Quatro espécies de peixes não-teleósteos também foram investigadas, incluindo uma espécie de esturjão e uma espécie de peixe pulmonado, que têm um ancestral comum mais recente com os vertebrados terrestres do que com outros peixes (Figura 2). Em todas as quatro espécies, foi encontrado que um mesmo olho tem neurônios conectados a diferentes lados do cérebro, em uma organização bilateral parecida com a dos mamíferos.
Figura 2: Conexões bilaterais são a condição ancestral das conexões visuais dos peixes ósseos e tetrápodes. Conexões ipsilaterais foram perdidas pelos peixes teleósteos (modificado de Vigouroux, 2021).
Há alguns anos se acreditava que os pulmões haviam evoluído de bexigas natatórias. Quando se compararam essas características em um melhor contexto filogenético, ficou claro que a bexiga natatória, presente só nos teleósteos, derivou evolutivamente de pulmões, e não ao contrário. O resultado do estudo sobre as conexões visuais mostra mais uma vez que uma característica comum em peixes não representa necessariamente uma condição ancestral para os vertebrados terrestres. Conexões bilaterais provavelmente estavam presentes no ancestral de todos os peixes ósseos e as conexões para um mesmo lado do cérebro foram perdidas nos teleósteos. Muito antes de conquistar a terra, antes até da evolução dos dedos, nossos ancestrais já poderiam distinguir a distância de um dedo na frente de seus olhos.
João Francisco Botelho (PUC de Chile)
Para saber mais:
Vigouroux, R. J., et al. (2021). “Bilateral visual projections exist in non-teleost bony fish and predate the emergence of tetrapods.” Science 372(6538): 150-156.