Um dos provérbios mais antigos conhecido exime o álcool de qualquer responsabilidade em caso de acidentes: A cerveja está bem, o que está mal é o caminho (Mesopotâmia, século II a.C). A veneração pelo álcool na Mesopotâmia é a regra e não a exceção na história da humanidade. Embora o álcool represente hoje um grave problema social e de saúde pública, ele foi fundamental para o desenvolvimento da civilização, nos ajudando a construir cidades e impérios, superar epidemias e aperfeiçoar o processo democrático.
Com o surgimento da agricultura, surgiram as primeiras bebidas alcoólicas, e o sucesso do modo de vida agriculturista passou a depender do preparo e estocagem de álcool. Registros arqueológicos indicam que as primeiras bebidas fermentadas foram produzidas na China, a partir de arroz, há 9 mil anos. Mas o contato de nossos ancestrais com bebidas fermentadas parece ser bem anterior a isso. Um trabalho de 2004 sugere que, ao longo da evolução dos primatas, o hábito de comer frutas fermentadas (que contêm até 8% de álcool) pode ter sido benéfico para as espécies que possuíam esse comportamento. Neste contexto, ser atraído pelo cheiro das frutas fermentadas em um ambiente de floresta fechada, onde é difícil encontrar alimento, teria sido adaptativo, pois capacitaria os indivíduos que se sentiam atraídos pelo etanol a achar alimentos mais facilmente. Este processo seria útil para as plantas também, pois os primatas ajudariam na dispersão das sementes.
Embora as primeiras bebidas alcoólicas tenham surgido no leste asiático, elas foram aperfeiçoadas pelos sumérios. Essa civilização criou diferentes tipos de cerveja, a base de trigo e cevada. Durante o antigo Egito, trabalhadores responsáveis pelas construções das pirâmides recebiam cerveja como pagamento. Mais tarde, a linha de frente do exército romano expandia seus territórios munida de quantidades enormes de vinho (ou Posca). Bebidas alcoólicas eram mais seguras que água, pois estavam livres de patógenos, e assim garantiam a integridade física dos soldados. Pelo mesmo motivo, com o estabelecimento da agricultura, surgimento das cidades, e consequentemente aumento de microrganismo patogênicos, houve um aumento do consumo de bebidas fermentadas.
Evidentemente que uma prática cultural que tenha influenciado nossa civilização de maneira tão marcante nos impactou também biologicamente. Europeus, por exemplo, parecem estar adaptados a dietas gordurosas e consumo frequente de álcool. Um estudo mostrou que variações genéticas no gene galanina, que levam a maior ou menor produção dessa proteína no hipotálamo, estão associadas à preferência por álcool e comidas mais gordurosas. Indivíduos que expressam mais essas proteínas têm mais apetite por comidas gordurosas e bebidas alcoólicas. Esse fenótipo é mais comum em europeus do que em outras populações, provavelmente pela sua história fortemente agriculturalista. A combinação de mutações que leva à menor produção dessa proteína raramente é encontrada em homozigose em qualquer população humana, o que parece ser um indício de seleção desfavorável aos indivíduos que carregavam essas variantes genéticas. A má notícia para os europeus é que estas mesmas mutações, que antes parecem ter conferido uma vantagem, hoje estão relacionados a depressão e ansiedade.
Outro estudo, envolvendo milhares de chineses, mostrou que uma mutação no gene ADHB1 foi selecionada durante o processo de estabelecimento da agricultura do arroz na Ásia. A mutação *47 foi datada em aproximadamente 10 mil anos, ou seja, teria surgido ao acaso um pouco antes do estabelecimento da agricultura e dos primeiros indícios de produção de bebidas fermentadas no leste asiático. Tal mutação leva à metabolização mais rápida do álcool – indivíduos que carregam o alelo mutado processam o álcool de maneira 100 vezes mais rápida. No entanto, o álcool também pode ser mais tóxico para esses indivíduos. A mutação *47 parece ter uma vantagem adaptativa relacionada à possibilidade de consumo em pouco quantidade sem risco de embriaguez, o que favoreceria os indivíduos em uma situação onde a água não era potável e apresentava riscos. O ganho secundário seria uma tolerância ao alcoolismo, dado que o consumo em maiores quantidades acarretaria sintomas de ressaca acentuados.
Mais recentemente, um trabalho que envolveu análise genômica de 20 populações em busca de sinais recentes de seleção natural encontrou resultados bem interessantes em relação aos genes relacionados à metabolização de álcool. Esse estudo apontou que as redes relacionadas à oxidação de álcool estão sob seleção natural em diversas populações humanas, principalmente em africanos e asiáticos, em genes relacionados à proteção à dependência alcoólica. Os resultados desse estudo parecem indicar uma tendência à redução do consumo de álcool, dado que alelos relacionados à resistência ao comportamento de adição ao álcool parecem ter sido favorecidos nessas populações.
A coevolução entre a necessidade do uso do álcool como prática cultural ao longo da nossa história como fator essencial para nosso triunfo, e o manejo dos danos causados por eles, levou aos exemplos de interação gene-cultura citados acima. Atualmente em nossa sociedade, com as pressões seletivas menos evidentes, e com pressões sociais mais fortes, o uso do álcool deixou de ser apenas um componente cultural do processo civilizatório e tornou-se uma fonte de diversos problemas que atingem a sociedade em diferentes setores. As regras do jogo mudaram, e milhares de anos de bônus estão se convertendo rapidamente em um processo oneroso para a sociedade contemporânea.
Tábita Hünemeier
IB/USP
PARA SABER MAIS:
Standage, Tom (2005) A História do Mundo em Seis Copos. Zahar Editora. 240 p.
Uma consideração sobre “Cerveja, civilização e genes”