Law & Order: Unidade de Insetos Especiais

Em 29 de dezembro de 2017, após 17 anos encarcerada em Nevada por um assassinato que não cometeu, Kirstin Lobato foi finalmente inocentada por moscas varejeiras, ou melhor, pela ausência dessas moscas em um corpo. Lobato havia sido condenada por um horrível assassinato de um sem-teto, cujo corpo foi encontrado atrás de uma lixeira em Las Vegas. Apesar de uma cena de crime rica em evidências, os detetives do caso ignoraram pistas óbvias, concentrando sua investigação em Lobato, na época com 18 anos, com base apenas em boatos, como revelado em uma matéria da mídia independente The Intercept. Lobato foi inocentada com a ajuda da entomologia forense, que é a aplicação de conhecimento biológico de insetos –e  outros artrópodes– na investigação criminal.

Insetos são, em geral, os primeiros visitantes de vertebrados em decomposição. Esses colonizadores podem ser utilizados ​​para estimar o tempo transcorrido desde a morte até a descoberta do corpo (também chamado de tempo ou intervalo pós-morte), se houve movimentação do cadáver (com algumas ressalvas), e para tentar descobrir a maneira e causa da morte e a associação de suspeitos com a cena do crime. Essas inferências são baseadas em informações trazidas por insetos de importância forense como por exemplo a morfologia de suas larvas, tempo de desenvolvimento, distribuição geográfica e conteúdo toxicológico em seus tecidos.

A primeira investigação criminal resolvida com a ajuda de insetos já registrada aconteceu na China do século XIII. No registro realizado em 1235, Sung Tzu descreve que um fazendeiro foi encontrado morto em um campo, com suspeita de assassinato por uma arma afiada. Uma autoridade convocou os agricultores locais e pediu que trouxessem as suas foices e as deixassem no chão, no calor do verão. Uma grande quantidade de moscas se concentrou em apenas uma foice, atraídas por vestígios de sangue deixados na lâmina. O dono da foice confessou. A primeira aplicação da entomologia forense em um tribunal moderno ocorreu na França do século XVIII. Na época, dados entomológicos foram admitidos como prova para absolver os ocupantes da residência de onde os restos mortais de uma criança foram encontrados. Um médico francês, observando as larvas e pupas de moscas e mariposas datou o intervalo pós-morte em dois anos, atribuindo assim a morte aos antigos moradores. Desde então, as espécies de importância forense atraem a atenção de cientistas que estudam seus aspectos biológicos que vão desde desenvolvimento em diferentes condições ambientais, até seus evolução de seus hábitos alimentares.

Quatro categorias de insetos podem ser encontradas em cadáveres em decomposição: (1) espécies necrófagas que se alimentam de tecidos em decomposição; (2) predadores e parasitas que se alimentam das espécies necrófagas; (3) espécies onívoras que se alimentam de material orgânico em decomposição e outros artrópodes como formigas, vespas e alguns besouros; (4) Outras espécies como colêmbolos e aranhas que usam o cadáver como uma extensão de seu ambiente. Os dois primeiros grupos são considerados mais importantes para entomologia forense. Os insetos mais envolvidos nas investigações forenses são as moscas verdadeiras (ordem Diptera). As espécies predominantes são das famílias Calliphoridae (moscas varejeiras), Sarcophagidae (moscas da carne) e Muscidae (moscas domésticas). Calliphoridae e Sarcophagidae podem chegar em poucos minutos após a morte, enquanto Muscidae colonizam o corpo em estágios mais avançados de decomposição.

As espécies que incriminaram o fazendeiro na China no século XIII e inocentaram Lobato mais recentemente, fazem parte da família Calliphoridae. Os adultos de Calliphoridae são moscas brilhantes com coloração metálica, muitas vezes com tórax e abdome azul, verde ou preto. São as moscas varejeiras que frequentam churrascos e lixões em busca de seu sitio de oviposição. Além das moscas varejeiras, a família Calliphoridae também apresenta espécies cujas larvas se alimentam de tecidos vivos de hospedeiros vertebrados, tornando-se assim ectoparasitas. Assim, levando em conta os hábitos alimentares de suas larvas, os califorídeos são classificados em: necrófagos, que se alimentam de material orgânico de origem animal em decomposição; ectoparasitas facultativos, que podem se alimentar de matéria orgânica em decomposição (necrófagas) ou infestar tecidos necrosados de vertebrados vivos; e parasitas obrigatórios, que se alimentam somente dos tecidos vivos de hospedeiros. Todas essas espécies podem fornecer informações para dar andamento ou conclusão a um processo investigativo. Além de constituírem parte da fauna cadavérica, fornecem subsídios para estimar o intervalo pós-morte em casos de morte violenta também no Brasil. Essas moscas fazem sua oviposição em aberturas naturais do corpo e em feridas. As larvas eclodem e se alimentam do tecido do hospedeiro, passando rapidamente por três estádios ou instares. Uma vez atingido o último estádio (pré-pupa), elas param de se alimentar, migram para áreas mais secas (como o solo) e iniciam a formação da pupa, para posteriormente emergirem como uma mosca.

A sucessão em que os artrópodes colonizam um corpo depende do estado de decomposição, das condições ambientais e das alterações produzidas por fenômenos naturais. Os efeitos do ambiente sobre a dinâmica de ocupação de cadáveres por artrópodes dados são obtidos nos estudos realizados pelos entomologistas com carcaças animais (porcos, em geral) ou em “fazendas de cadáveres”, locais onde corpos doados são deixados ao ar livre por semanas ou meses para a coleta de dados úteis para investigações de medicina legal e forense. Nesses estudos, verificou-se que o processo de decomposição pode ser dividido em diferentes etapas com base na aparência física das carcaças, temperaturas internas e populações de insetos características.

Nos dois primeiros dias, começando no momento da morte e terminando com a observação do inchaço da carcaça, ainda não há alterações morfológicas ou odores perceptíveis para nós, mas odores liberados pela decomposição celular atraem insetos até mesmo nesse estágio inicial –eles são atraídos já nos primeiros 10 minutos de morte. A maior quantidade de moscas adultas é atraída no estágio de putrefação que se inicia após cerca de dois dias. No quarto dia, larvas de dípteros de primeiro ou segundo instares podem ser observadas. Vários predadores de larvas também são recuperados neste estágio. No estágio seguinte (do quinto ao 13o dia), há uma conversão de biomassa de carcaça em biomassa larval de dípteros e a maioria das larvas de Diptera deixa a carcaça quando começa o estágio seco. O conhecimento prévio sobre a sucessão das espécies de importância forense durante os diferentes estágios de decomposição do cadáver permite a estimativa do intervalo pós-morte.

E afinal, como as moscas varejeiras inocentaram Lobato? A polícia não tinha nenhuma prova que colocava claramente a jovem na cena do crime, apenas um telefonema que a denunciava como suspeita. Além disso, Lobato tinha um álibi para o dia do crime: ela estava em casa com os pais em uma cidade a três horas de Las Vegas. Mesmo assim, detetives e promotores insistiram que Lobato estava em Las Vegas durante as primeiras horas da manhã do dia do assassinato, cometendo o crime antes de voltar para a casa de seus pais. A promotoria se baseou fortemente na estimativa do médico legista para minar o álibi de Lobato: o médico legista calculou que a vítima havia morrido 18 horas antes de ser encontrada, às 22h de uma noite de julho. Em seu novo julgamento, Lobato apresentou o testemunho de três entomologistas forenses que concluíram, com base nas condições climáticas de Las Vegas em julho e no local onde o corpo foi encontrado (um ambiente externo), que seria esperado que o corpo estivesse repleto de ovos de moscas varejeiras dentro de um curto período de tempo após sua morte. Como o corpo da vítima não possuía ovos de moscas varejeiras, cada um dos entomologistas forenses concluiu, de forma independente, que ela teria provavelmente morrido pouco tempo antes da descoberta de seu corpo às 22h, enquanto Lobato estava em casa com os pais. Assim, com a ajuda dos entomologistas (e a falta de provas que a incriminassem), Lobato foi absolvida 17 anos após sua condenação.

Tatiana Teixeira Torres (USP)

Para saber mais:

Revisão da história da entomologia forense no Brasil, com descrição dos principais trabalhos e das sub-áreas e tarefas da entomologia forense. Também apresenta diretrizes e metas para o desenvolvimento de pesquisas e aplicações da entomologia forense no Brasil.

Atividade escolar desenvolvida para observação da sucessão de insetos em uma simulação de “fazenda de cadáver” usando fígado bovino. Contém vídeos e explicações sobre entomologia forense, ciclo de vida de moscas de importância forense e como variações em condições ambientais podem afetar a inferência de intervalo pós-morte.

Artigo com relatos de casos criminais com utilização de informações fornecidas por insetos presentes em cadáveres no estado de São Paulo. São apresentados cinco casos nos quais, informações ecológicas de moscas varejeiras mudaram o curso da investigação.

Foto: Besouros e moscas varejeiras em um crânio humano. Foto de Damien Charabidze.

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