Um parto saudável envolve a confluência de muitos fatores, incluindo a boa saúde da mãe, o desenvolvimento apropriado do feto e sua posição dentro útero. Há ainda um fator crítico de natureza mecânica: é preciso que as dimensões da cabeça e dos ombros do feto sejam menores do que a abertura da pelve (ou bacia) da mãe, permitindo que o parto ocorra sem nenhuma obstrução. Quando o feto tem uma cabeça maior do que a abertura da pelve materna, dizemos que há uma desproporção cefalopélvica. Nesses casos, há grande chance de haver uma obstrução, impedindo que as contrações uterinas expulsem o bebê através da pelve. Isso representa um grande risco para o bebê, que pode ficar sem oxigênio, o que pode levar inclusive à sua morte. Esse cenário também traz riscos para a mãe, que tem chances aumentadas de padecer de infecções, de ruptura uterina e de hemorragias pós-parto.
Apesar da gravidade desse quadro, o número de partos em que há algum tipo de obstrução é bastante alto, oscilando de 3 a 6% ao redor do mundo. Isso nos apresenta um desafio intrigante. Se a seleção natural é um processo que favorece aqueles indivíduos que têm maior capacidade de sobrevivência e reprodução, relativamente a outros que teriam menor capacidade, por que a bacia das mulheres não foi selecionada para tornar-se mais larga, reduzindo o risco de obstrução? Ou ainda, de modo complementar, por que a cabeça fetal não evoluiu para um tamanho menor, de modo a garantir sua passagem segura pela abertura da pelve? Como é possível que a seleção natural não tenha revertido um quadro de aparente má-adaptação?
Frente a essa questão, uma equipe interdisciplinar liderada por Philipp Mitteroecker, da Universidade de Viena, debruçou-se sobre o tema. Num artigo publicado em 2016, eles desenvolveram um modelo matemático que descreve como a seleção natural atua sobre os traços envolvidos no parto. Em primeiro lugar, eles refletiram sobre como a seleção natural atua sobre a largura da bacia de mulheres. Possíveis vantagens para bacias mais estreitas seriam uma locomoção mais eficaz e uma anatomia mais apropriada para conter a pressão exercida pelos órgãos abdominais. Esses órgãos pressionam a bacia verticalmente, em função de nossa postura bípede, podendo resultar em patologias quando a bacia é muito larga. Para apoiar essa hipótese seletiva, os autores citam estudos que mostram que mulheres com bacias mais largas têm maior frequência de distúrbios de assoalho pélvico, tais como a queda (ou prolapso) da bexiga, uretra, intestino delgado, reto, útero ou vagina.
Por outro lado, a seleção parece favorecer bebês com crânios grandes. Há boas evidências de que eles sobrevivem mais, ainda que não seja claro se isso resulta de vantagens da cabeça maior em si, ou se a cabeça maior é uma característica que caminha junto (ou no jargão quantitativo, está correlacionada) com o tamanho maior de corpo, uma característica que aumenta as chances de sobrevivência e reduz as chances de doenças na vida adulta. Já uma redução da cabeça do feto através de seleção para parto mais precoce não deve ser favorecida por seleção natural, uma vez que partos prematuros estão fortemente associados a uma redução nas taxas de sobrevivência.
Dessa forma, Mitteroecker e seu grupo estabeleceram as premissas sobre como a seleção atua: ela favorece bacias mais estreitas nas mães e cabeças maiores nos fetos. Os autores transformaram essas predições em equações que descrevem as chances de sobrevivência em função de diferentes combinações de largura da bacia e tamanho da cabeça. As equações mostraram que a seleção natural favorece a bacia mais estreita possível (a mais vantajosa para a mãe) em combinação com um crânio maior possível (o mais vantajoso para o bebê), porém sem que o crânio seja maior do que a abertura da bacia (situação na qual ambos sairiam perdendo). Esse modelo tem uma peculiaridade: a combinação de traços que é favorecida (crânios grandes nos fetos, bacia mais estrita nas mães) está perigosamente perto da condição que leva à obstrução do parto (crânio fetal maior do que a bacia). Basta uma pequena redução do tamanho da bacia ou um pequeno aumento da cabeça, em relação à combinação “ideal”, e haverá uma obstrução.
Há boas razões para esperar que exista variação na população ao redor dos tamanhos ideais de bacia e cabeça do feto. Considere o tamanho da bacia: essa é uma característica que depende de múltiplos fatores, ambientais e genéticos: a nutrição da mãe, a sua idade no parto (o esqueleto muda ao longo do tempo), e a contribuição genética paterna (homens, apesar de não engravidarem, também possuem genes que influenciam as dimensões da pelve, dessa forma afetando a variabilidade vista em mulheres). A consequência é que, mesmo que a seleção natural empurre o tamanho do quadril em direção a um tamanho “ideal”, inevitavelmente haverá variação ao redor desse valor, com algumas mulheres tendo medidas maiores e outras menores. O problema é que uma oscilação sutil, gerando uma bacia sutilmente menor, será suficiente para gerar uma desproporção entre mãe e feto, com uma possível obstrução. De acordo com o estudo, a seleção natural favoreceu uma combinação vantajosa entre tamanho da cabeça do feto e tamanho da bacia da mãe que é tão próxima de uma combinação que é prejudicial, que a cada geração surgem casos de desproporção. A questão que motivou o estudo ganha então uma resposta: a seleção favorece combinações de cabeça e pelve que estão no limite do que é possível para gerar um parto viável. Qualquer alteração mínima – com gatilho genético ou ambiental — e teremos um parto obstruídos.
Será que as cirurgias cesarianas, que atualmente correspondem a 18% dos partos em todo o mundo, estão influenciando essa dinâmica evolutiva? As cesárias permitem a sobrevivência de mães e fetos em que há uma desproporção (cabeças maiores do que bacias), e que no passado geralmente morriam. Assim, com a popularização das cesárias, espera-se que seja mais comum a sobrevivência – e consequente transmissão de genes para formato de bacia e tamanho de crânio — de indivíduos que antes não teriam sobrevivido, em função da desproporção. Assim, a desproporção entre as bacias das mães e os crânios dos fetos deverá se tornar mais comum. Usando o modelo quantitativo, os autores estimaram que o grau da desproporção teria aumentado em até 20% desde a década de 1950, quando cesárias se tornaram comuns. De acordo com o estudo, as cesárias estariam influenciando os rumos da evolução morfológica de nossa espécie.
É preciso cautela ao analisar os resultados desse estudo. Ele propõe um modelo evolutivo e faz uma previsão sobre o impacto das cesárias. Mas o estudo faz uma série de simplificações, colocando toda a ênfase na relação entre o tamanho da bacia e do crânio. Fatores adicionais, como a saúde da mãe, as atividades físicas que ela realiza, entre outros, podem influenciar a dinâmica evolutiva, mas não foram incluídos no modelo. A modelagem de processos biológicos requer um ajuste fino entre a complexidade biológica introduzida no modelo – que torna o modelo mais realista— e a simplicidade necessária, essencial para interpretações poderem ser feitas.
É importante lembrar que o estudo em si não reuniu dados para testar as hipóteses evolutivas. Ele partiu de conhecimentos prévios e fez previsões sobre como a evolução parece estar caminhando. Um teste das hipóteses evolutivas exigirá a coleta de dados de mães e neonatos ao longo do tempo, controlando para complicações como mudanças na idade gestacional, a idade materna, nutrição e saúde materna. Nesse sentido, podemos dizer que o trabalho de Mitteroecker e colaboradores é acima de tudo um “gerador de hipóteses”. Uma hipótese é que a cesária permitirá a seleção de bacias mais estreitas e cabeças maiores em fetos. Agora é uma questão de reunir dados para testá-la.
A boa ciência, além de dar respostas, propõe perguntas que são o ponto de partida para novos estudos. Dado o interesse que esse estudo gerou, e a clareza das hipóteses que gera, espero que, nos próximos anos, surjam mais estudos levantando dados para testar se –e como– as cesárias estão mudando a nossa espécie.
Diogo Meyer
(Universidade de São Paulo)
Para saber mais
Mitteroecker P, Huttegger SM, Fischer B, Pavlicev M. Cliff-edge model of obstetric selection in humans. Proc Natl Acad Sci U S A. [O artigo comentado neste texto]
Natural selection hidden in modern medicine? [Texto com proposta de atividade (em inglês) sobre o tema de Evolução do parto]
Richard Grossman, 2017. Are human heads getting larger? [Artigo que apresenta algumas críticas ao modelo de Evolução de parto discutido.]
Imagem: Uma bacia normal (esquerda) e uma com deformações (direita), situação que pode levar a um trabalho de parto obstruído. (https://en.wikipedia.org/wiki/Obstructed_labour)