O Monge e o Hominínio

Um fóssil encontrando na década de 90 por um monge tibetano acaba de transformar o conhecimento sobre a história evolutiva de nossa espécie.

É atribuída ao microbiologista francês Louis Pasteur a frase “o acaso favorece a mente preparada”. Você poderia tropeçar em um diamante e o maldizer como uma simples rocha, caso não estivesse preparado para diferenciar os dois tipos de materiais. Perderia assim ou a oportunidade de enriquecimento ou, no mínimo, uma bela joia.

Em 1989, um monge budista tibetano, durante um retiro de meditação na caverna Baishiya Karst, na região Xiahe, China, encontrou uma mandíbula com alguns dentes. Muitos dos visitantes desta caverna buscam este sítio à procura de ossos que consideram sagrados. Tais ossos normalmente são recolhidos e cremados, para posteriormente serem usados como medicamentos ou em rituais. O monge tibetano, ao recolher a mandíbula, percebeu que ela apresentava algumas características que eram distintas das demais encontradas na caverna, pois parecia mais robusta e com dentes maiores. Sendo assim, ele decidiu oferecer a mandíbula para o Sexto Buda Vivo, e salvá-la de ser incinerada. Décadas mais tarde, o Buda Vivo doou a mandíbula para a Universidade de Lanzhou, na China. Com este gesto, um novo capítulo da história da nossa espécie passou a ser escrito.

A mandíbula em questão, salva pelo olhar mais atento do monge desconhecido, é o único registro existente de uma parte do crânio de um Homem de Denisova. Os denisovanos tiveram seu genoma sequenciado em 2012 a partir de uma dente e uma falange encontrados na Caverna de Denisova, nos Montes Altai, na Sibéria, aproximadamente 2500 km ao norte de Xiahe. Desde então, a genética vem reconstruindo a história desse primo desconhecido. Estes Hominínios são provavelmente muito próximos aos neandertais, estudos recentes indicam que eles coexistiram e miscigenaram com os mesmos e com os sapiens. No entanto, nada se sabe sobre seu aspecto físico, além da morfologia da mandíbula e dentes recentemente encontrados, e que o situam entre o Homo erectus e o Homo sapiens.

Além da grande distância separando os dois sítios arqueológicos, a idade que separa os dois fósseis é também considerável. Enquanto os fragmentos encontrados na caverna de Denisova foram datados em aproximadamente 80 mil anos antes do presente, a mandíbula de Xiahe apresenta o dobro dessa idade, 160 mil anos. Devido à antiguidade da amostra, não foi possível extrair DNA do espécime de Xiahe. No entanto, proteínas antigas se preservam melhor do que DNA antigo. Sendo assim, na ausência de DNA, é possível usar proteínas para análises filogenéticas e, neste caso, testar se mesmo com uma variação de tempo tão grande esse espécime continuaria dentro do ramo dos denisovanos na árvore de nossa espécie. E foi o que aconteceu, com base em análises de proteínas extraídas dos dentes (as proteínas da mandíbula estavam degradadas), o indivíduo de Xiahe se posicionou próximo aos seus similares morfológicos (dentários) da Caverna de Denisova.

Um terceiro fato, além da distância, e da diferença temporal, é que a caverna de Baishiya Karst está situada a 3200 metros de altitude. Este fato torna esta descoberta simplesmente extraordinária dentro de nossa história evolutiva, pois mostra um parente próximo adaptado às terras altas há mais de 160 mil anos. Se pensarmos que grande parte da humanidade que vive hoje em altitudes elevadas só é capaz de fazê-lo pois herdou as mutações necessárias de nossos primos denisovanos, este achado é ainda mais impressionante. Os Xerpas do Himalaia são um exemplo dos povos que foram capazes de se adaptar à montanha devido à introgressão do genoma denisovano.

Como este achado resultou da “mente preparada” do monge desconhecido, ele carece de informações precisas sobre o local que foi escavado e do contexto em que estava ao ser encontrado. Novas escavações estão em andamento dentro do santuário budista da caverna, e devem fornecer novas pistas de como esses hominídeos se adaptaram ao ambiente de montanha 150 mil anos antes de nossa espécie escalar o Monte Everest.

 

Tábita Hünemeier

IB/USP

 

PARA SABER MAIS:

Adam Rutherford (2016) A Brief History of Everyone Who Ever Lived: The Stories in Our Genes. Weidenfeld & Nicolson.

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