A ordem Carnivora inclui a maioria dos mamíferos que se alimenta de outros vertebrados: gatos, cachorros, ursos, lontras, focas, quatis, hienas e outros tantos. Mas o nome da ordem pode causar mal-entendidos, pois, por um lado, nem todo mamífero que come carne pertence à ordem Carnivora e, por outro lado, a maioria dos que pertencem também come vegetais. Pertencer à família Carnivora, como a qualquer outra linhagem de seres vivos, depende da relação de parentesco, não da dieta. Tanto é assim que uma espécie da ordem Carnivora é vegetariana.
Por muito tempo debateu-se quem eram os parentes mais próximos dos pandas-gigantes. Comparações de DNA mostraram que eles são uma das oito espécies viventes de ursos. O urso-polar é quase exclusivamente carnívoro, alimentando-se principalmente de focas. Mas vegetais compõem uma parte importante da dieta da maioria dos outros ursos. Por exemplo, ursos-negros adoram frutas e ursos-de óculos, nativos da América do Sul, comem grandes quantidades de bromélias. Os pandas-gigantes, nativos da região central da China, comem, quase exclusivamente, bambu.
Abandonar por completo o consumo de carne demanda algumas adaptações. Mamíferos que se alimentam de folhas dependem de bactérias simbiontes alojadas em seu trato digestivo que são capazes de digerir a celulose por fermentação. Adaptações morfológicas como molares grandes, intestinos longos e compartimentalizados também são frequentes em herbívoros.
Os pandas-gigantes possuem algumas notáveis adaptações à sua dieta. A mais famosa é a presença de um falso sexto dedo – uma espécie de joanete gigante – que ele usa como polegar para arrancar folhas dos ramos. Mas seu trato digestivo, dos dentes pontudos ao intestino curto, é típico de animais carnívoros. Até mesmo sua flora intestinal se parece mais a de um carnívoro do que a de um herbívoro.
Um estudo publicado este mês na revista Current Biology, realizado por cientistas da China e Austrália, ajuda a entender como os pandas-gigantes driblaram suas restrições morfológicas e fisiológicas para poder levar uma vida vegetariana. O ponto fundamental da pesquisa foi mudar a abordagem. Em vez de perguntar a qual nível trófico pertence a comida dos pandas-gigantes – se ela é vegetal ou animal –, eles perguntaram qual a porcentagem das três principais categorias de macronutrientes da sua dieta: proteína, carboidrato e gordura.
Para responder essa pergunta, eles monitoraram vários indivíduos de pandas-gigantes durante um ano inteiro. A escala temporal do estudo foi fundamental, pois bambus são gramíneas, e, como toda gramínea, eles têm um ciclo sincronizado de germinação, floração e morte. O estudo mostrou que, de agosto a março, os pandas-gigantes se alimentam de uma espécie de bambu (Bashania fargesii) que germina nas terras mais baixas. À medida que essa espécie cresce e os brotos desaparecem, os pandas-gigantes passam a comer suas folhas, mais ricas em proteínas do que os caules fibrosos. Logo, no fim do verão, migram para as montanhas, onde outra espécie de bambu (Fargesia qinlingensis) está germinando e passam a comer seus brotos, depois suas folhas.
Comparando a composição nutricional desses alimentos e analisando o que não estava digerido nas fezes, o estudo mostrou que os pandas-gigantes possuem uma dieta composta por 61% de proteínas, 23% de carboidratos e 16% de lipídios, proporção que é similar à dieta de outros carnívoros. Mais ainda, a proporção de nutrientes no leite dos panda-gigantes também se parece ao de outros carnívoros, mostrando que a dieta rica em proteínas está presente em outras etapas do ciclo de vida.
O estudo ajuda a entender um controverso resultado publicado no início de 2019, afirmando que os ancestrais dos pandas-gigantes se tornaram vegetarianos muito mais recentemente do que se acreditava. A mudança de dieta não dependeria de grandes adaptações morfológicas, mas da emergência de uma cultura alimentar sincronizada à fenologia dos bambus na China.
Como escreveu Piaget, o comportamento é um dos motores da evolução.
João Francisco Botelho (PUC de Chile)
Para saber mais:
Han H, Wei W, Hu Y, Nie Y, Ji X, Yan L, et al. Diet Evolution and Habitat Contraction of Giant Pandas via Stable Isotope Analysis. Curr Biol. 2019;29(4):664-9.e2.
Machovsky-Capuska GE, Senior AM, Simpson SJ, Raubenheimer D. The Multidimensional Nutritional Niche. Trends Ecol Evol. 2016;31(5):355-65.
Nie Y, Wei F, Zhou W, Hu Y, Senior AM, Wu Q, et al. Giant Pandas Are Macronutritional Carnivores. Curr Biol. In press