O desejo de criar vida em laboratório a partir de moléculas não-vivas, ou de modificar organismos vivos com um objetivo específico, sempre povoou a mente de muitos de nós. Entre escritores, por exemplo, esse desejo se expressa nas mais mirabolantes histórias de ficção científica, nas quais personagens semi-humanos adquirem novas habilidades através da expansão do corpo por meio de aparatos tecnológicos.
Ou, como no caso do fascinante livro Carbono Alterado, no qual os personagens podem armazenar sua consciência em um cartão de memória associado ao cérebro, e transferir essa informação para um novo corpo sempre que necessário. Em alguns casos, a ficção às vezes se aproxima da realidade, como no caso recente do médico italiano que afirma ser possível a realização de transplantes de cérebro. Caso se torne realidade, essa prática terá, sem dúvidas, inúmeras implicações éticas: Quem terá acesso a esses transplantes? Que corpos serão utilizados? Que cérebros serão transplantados?
Já no caso de cientistas, esse desejo se mistura tanto ao interesse de entender a vida e os processos vitais, como ao de modificar os organismos para os mais diversos fins biotecnológicos. Uma dessas aplicações é a modificação de organismos vivos para a produção de proteínas diferentes daquelas já produzidas pelos organismos vivos. De forma semelhante, essas manipulações produzem uma cascata de implicações éticas que precisam ser cuidadosamente debatidas: Que proteínas serão produzidas? Quem terá acesso a essas tecnologias? Como acessar as consequências ambientais e sociais dessa proteínas?
Desde a origem dos primeiros organismos vivos na Terra, há mais de 3 bilhões de anos, o material genético utilizado pelas células para codificação de proteínas baseia-se em quarto moléculas, ou nucleotídeos: adenina (A), guanina (G), timina (T) e citosina (C). Eles são os blocos construtores do DNA encontrado nos organismos vivos. Sabemos também que, em eucariotos, a síntese de proteínas ocorre no citoplasma das células, enquanto o DNA é armazenado no núcleo. Assim, uma outra molécula, de constituição semelhante ao DNA, o RNA, é utilizado pelas células tanto para transferir a sequência de nucleotídeos do núcleo para o citoplasma quanto para participar na produção de proteínas. Três tipos principais de RNA estão envolvidos nesse processo: o RNA mensageiro, o RNA ribossômico e o RNA transportador. De forma semelhante ao DNA, o RNA dos organismos vivos é constituído também por quatro nucleotídeos: adenina (A), guanina (G), citosina (C), e uracila (U).
Nas células vivas, as proteínas são produzidas com base na sequência de nucleotídeos das moléculas de RNA mensageiro, organizados em trios. Esses trios, chamados códons, são as unidades mínimas utilizadas pelas células durante a síntese de proteínas. Cada códon determina o aminoácido que será adicionado à proteína durante a síntese. Assim, há uma correlação, mesmo que indireta, entre a sequência de nucleotídeos que encontramos no RNA mensageiro (e, em última análise, também no DNA) e a sequência de aminoácidos presente nas proteínas. Essa correlação é determinada pelo chamado código genético (Tabela 1).
Note que, com base no código genético, alguns aminoácidos podem ser identificados por diferentes códons. Por exemplo, o aminoácido Alanina (Ala/A), pode ser identificado por qualquer um dos códons GCU, GCC, GCA ou GCG no RNA. Essa característica do código genético, na qual o mesmo aminoácido pode ser identificado por diferentes códons é o que chamamos de redundância. E foi exatamente essa propriedade que que os cientistas exploraram inicialmente, para modificar a síntese proteica em células bacterianas.
Tabela 1 – Código genético. Relação entre os códons encontrados no RNA mensageiro e os aminoácidos das proteínas. Muitos aminoácidos estão relacionados a mais de um códon, resultando em redundância no código genético. Códons específicos (iniciação e parada) indicam o início e o término da síntese da proteína. Fonte: Wikipedia (https://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%B3digo_gen%C3%A9tico)
Em 2016, cientistas foram capazes de eliminar códigos redundantes na bactéria Escherichia coli (E. coli), um organismo modelo amplamente utilizado em estudos de laboratório. Dessa forma, foi possível reduzir o número total de códons do código genético de E. coli de 64 para 57, removendo códons de parada redundantes, assim como códons redundantes para Arginina (Arg/R), Leucina (Leu/L) e Serina (Ser/S). Os cientistas removeram, também, os genes envolvidos no processamento desses códons, e a retirada desses genes do genoma bacteriano abriu espaço para a introdução de novos genes de interesse.
Mas, qual a importância de se criar organismos com código genético não redundante? No caso de bactérias, um dos exemplos mais diretos é a possibilidade de usar desses organismos em diversos processos de produção industrial, nos chamados biorreatores ou reatores biológicos. Biorreatores possuem diversas aplicações biotecnológicas, como produção de pigmentos, proteínas, e enzimas. Mas, assim como nós, as bactérias estão sujeitas a infecções virais, que frequentemente resultam na morte da célula bacteriana. Infecções virais em biorreatores podem destruir o processo produtivo e acarretar danos financeiros significativos. Curiosamente, as bactérias modificadas tornam-se imunes a vírus que necessitam desses códigos redundantes para a produção das proteínas virais, essenciais para a sobrevivência e replicação viral. Essas bactérias modificadas são, portanto, de grande interesse econômico, apesar de não possuírem nenhum componente sintético externo. Qual seria, então, a correlação entre essas bactérias e as bactérias semissintéticas?
A modificação da redundância do código genético de bactérias foi apenas o primeiro passo rumo à produção de bactérias semissintéticas: ele permitiu a redução do número de genes no genoma, abrindo espaço para a introdução de outros genes. Pois, lembremos: o real objetivo de muitos pesquisadores é construir organismos capazes de produzir proteínas diferentes daquelas naturalmente produzidas por organismos vivos, as chamadas proteínas não-naturais. Para tanto, cientistas vêm há muitos anos sintetizando nucleotídeos não-naturais com características químicas semelhantes aos nucleotídeos naturalmente encontrados nos seres vivos. O objetivo último dessa empreitada é a expansão do ‘alfabeto’ do código genético das bactérias, possibilitando assim a produção de proteínas não-naturais. Essa produção necessita não apenas de novas ‘letras’ no código, mas também de novos genes, utilizados pela célula para processar essa nova informação.
E foi exatamente isso que Zhang e colaboradores fizeram em fevereiro deste ano. Após inúmeras tentativas sem sucesso, conseguiram introduzir no genoma da E. coli dois nucleotídeos não-naturais (dNaMTP e d5SICSTP) que foram mantidos na bactéria por inúmeras gerações. Essa bactérias foram capazes de reproduzir o DNA semissintético, assim como manter as suas funções vitais, tornando-se o primeiro exemplo bem-sucedido de vida semissintética. Assim, esse foi um passo importante rumo a produção de proteínas não-naturais em organismos vivos semissintéticos. Mas ainda há muito o que se fazer. E, nem tudo são flores. As dificuldades técnicas de se produzir organismos semissintéticos são grandes, mas são apenas parte do problema.
Talvez um problema de ordem ainda maior, e de grande consequência social, diga respeito à segurança desses organismos semissintéticos. É muito provável que proteínas não-naturais produzidas por bactérias semissintéticas sejam tóxicas para outros organismos vivos. E a resistência dessas bactérias semissintéticas a infecções virais as colocam em vantagem quando em competição com outras bactérias naturais, estejam elas no ambiente ou no nosso intestino. E uma vez que esses organismos se espalhem para além dos laboratórios onde são produzidos, é difícil prever as consequências das interações possíveis no mundo real.
Esse é apenas o começo de uma nova e estimulante era em que organismos vivos são capazes de armazenar indefinidamente moléculas informacionais não-naturais. Sem dúvida, o resultado do trabalho de Zhang e colaboradores é um grande avanço nessa direção. No entanto, ainda há muito o que se entender nesse processo. Certamente, estamos ainda distantes de produzir organismos semissintéticos capazes de produzir moléculas não-naturais. Mas, talvez seja exatamente esse o momento de discutirmos a regulamentação dos processos de produção de vida semissintética, para que sejamos capazes de disfrutar dos inúmeros benefícios desses avanços e, ao menos tempo, evitar possíveis consequências indesejadas.
Ana Almeida
California State University East Bay (CSUEB)
Para saber mais:
Liu, C.C. & Schultz, P.G. 2010. Adding new chemistries to the genetic code. Annual Review of Biochemistry, 79:414-444.
Malyshev, D.A.; et al. 2014. A semi-synthetic organism with an extended genetic alphabet. Nature, 509(7500): 385-388.
Mukai, T.; et al. 2017. Rewriting the genetic code. Annual Review of Microbiology, 71: 557-577.