Há imensa variação na cor de pele de humanos: temos desde pele muito escura até muito clara. E, é claro, uma imensa gama intermediária. Por que? Como é comum em biologia, há diferentes formas de responder à questão.
A primeira resposta simplesmente explica as diferenças entre peles escuras e claras remetendo às suas bases bioquímicas: a abundância de um pigmento chamado de melanina, que confere um tom escuro à pele. Peles escuras resultam de um maior acúmulo de melanina num tipo de células de nossas peles, os melanócitos. Nas pessoas de pele clara, há menos melanina.
A segunda resposta diz respeito a fatores que contribuem para diferenças na quantidade de melanina. Achados feitos na última década mostram que diferenças na constituição genética das pessoas ajuda a compreender as diferenças na cor de pele. Há um conjunto de genes que tem um papel importante na síntese e deposição da melanina nas células da pele. Mutações nesses genes podem mudar a forma como a síntese da melanina ocorre e, consequentemente, a quantidade desse pigmento que é depositada na pele.
Entre os genes mais estudados estão o KITLG (que regula aspectos do desenvolvimento de células, inclusive as da pele), TRYP1 e SLC24A5 (que codificam proteínas que atuam na síntese de melanina), e SLC45A2 (que codifica para uma proteína que regula o transporte de substâncias dentro dos melanócitos, influenciando a cor da pele). Em muitos casos os cientistas não descobriram exatamente de que forma mutações nesses genes alteram sua função e, consequentemente, a cor da pele. Mas há evidências convincentes de que mudanças nesses genes, de alguma forma, contribuem para o surgimento de diferenças na cor de pele. Como essas descobertas foram feitas? Em muitos casos, o passo inicial foi dado em estudos com outros organismos, inclusive peixes e camundongos, que apresentam pigmentação diferente quando esses genes são alterados. Quando investigados em humanos, esses genes apresentam diferentes versões entre grupos de pessoas com peles clara e escura.
Repare que as explicações vistas até aqui simplesmente transferem o foco do que é diferente entre as pessoas. Começamos com a pele (escura ou clara), fomos para as células (com mais ou menos melanina), e então para os genes (contribuem para que haja maior ou menor síntese e deposição de melanina). Resta entender algo fundamental: como é que surgiram as diferenças genéticas que explicam a variação na cor de pele?
Nossa terceira resposta para a questão original, “por que a cor de pele varia entre as pessoas”, traz a dimensão da história de nossa espécie. Como, ao longo da evolução, ocorreram as mudanças na cor de pele?
A vantagem de ter pele escura na África
A nossa primeira mudança de cor de pele parece ter ocorrido quando nossos ancestrais ainda estavam restritos à África. Tudo indica que os nossos antepassados se originaram a partir de primatas que tinham pele clara, como é o caso de chimpanzés e gorilas hoje em dia (por trás de seus pelos escuros a pele é clara). Assim como nós, nossos ancestrais devem ter sido desprovidos de uma espessa camada de pelos, provavelmente em função das vantagens de se verem livres de parasitas que neles se prendem e escondem. Assim, suas peles tornaram-se desprotegidas da radiação ultravioleta (abreviada como UV), presente na luz do sol. Que mal a exposição à radiação UV pode fazer? Apesar de associarmos a exposição ao sol ao câncer de pele (um risco real), do ponto de vista evolutivo o risco maior parece ter sido outro: a radiação UV degrada o folato (também conhecido como vitamina B), uma substância fundamental para o desenvolvimento saudável do sistema nervoso (razão pela qual gestantes são orientadas a suplementar suas dietas com ele). A hipótese mais aceita, portanto, é que a seleção natural teria favorecido a pele escura em nossos ancestrais africanos, pois a melanina protegeria as células da pele do ataque da radiação UV.
Mas a história de nossa espécie, como sabemos, não se restringiu à África. Há cerca de 100 mil anos os humanos se dispersaram para outros continentes, e pouco tempo depois ocupavam a Europa e grandes porções da Ásia. Nessas regiões, de latitudes mais altas, há uma marcante diferença em relação à África: a intensidade da radiação UV é muito mais baixa. Que consequências evolutivas essa menor exposição poderia trazer?
A vantagem de ter pela clara na Europa e na Ásia
Se por um lado a radiação UV degrada folato e pode levar ao câncer de pele, por outro ela é essencial para nossa saúde. A síntese da vitamina D, necessária entre outras coisas para a formação de ossos saudáveis, depende desse tipo de radiação. Em regiões do mundo com pouca insolação, a pele escura pode ser desvantajosa, pois impede a chegada da radiação UV aos vasos sanguíneos. Mas a pele escura que nos protege do excesso de radiação UV na África pode nos privar do mínimo necessário na Europa e Ásia, causando deficiência de vitamina D.
Nesse novo ambiente, a pele escura, que era favorecida pela seleção natural, passou a ser prejudicial.
Esse cenário prevê que deve ter havido seleção natural favorecendo mutações que contribuíam para uma pele clara, com menos melanina. Essas mudanças genéticas, ao tornarem a pele clara, permitiriam que a pouca radiação UV disponível não fosse bloqueada, resultando na síntese de vitamina D.
A análise dos genes envolvidos na síntese de melanina revelou que foi exatamente isso que aconteceu. Há uma série de mutações que se tornaram comuns na Europa ou na Ásia, porém são raras na África. Foi possível mostrar que tais diferenças genéticas entre Africanos e Europeus ou Asiáticos só poderiam ter surgido se as mutações associadas à pele clara fossem vantajosas fora da África. Os estudos revelaram outro aspecto da origem evolutiva da pele clara: as mutações que levaram ao surgimento da pele clara na Europa ocorreram nos genes SLC24A5, TRYP1 e SLC45A2. Já a pele clara Asiática envolveu mutações em outros genes, chamados de OCA2 e DCT. A mesma mudança evolutiva ocorreu com mudanças em genes diferentes.
Mensagens evolutivas
Essa breve história sobre a evolução da cor da pele traz algumas mensagens importantes sobre como a evolução ocorre e a forma como ela é estudada. Em primeiro lugar, a investigação evolutiva representa a intersecção de diferentes disciplinas. No tema tratado aqui, estudos de saúde humana, antropologia, genética e evolução se encontraram.
Em segundo lugar, a análise da evolução da cor da pele revela alguns temas recorrentes em estudos evolutivos. A evolução não é um processo linear, unidirecional. Num contexto, a pele escura era vantajosa. Em outro, a pele clara passou a ser vantajosa. Em evolução, não há algo global ou definitivamente melhor: à medida que o ambiente ocupado por uma espécie muda, altera-se também o traço que é vantajoso. Por fim, ao longo da evolução, a mesma mudança pode ocorrer de diferentes formas. Asiáticos e europeus têm pele clara e se originaram a partir de ancestrais de pele escura. Há muitos caminhos genéticos para realizar tal mudança, e cada população evoluiu de uma forma distinta.
Diogo Meyer, Universidade de São Paulo
Para saber mais:
Stoneking, M. 2016.An Introduction to Molecular Anthropology. Wiley-Blackwell
Jablonski NG, Chaplin G (2000) The evolution of human skin coloration. J Hum Evol 39: 57–106.
Jablonski, Nina G, and George Chaplin. 2010.“Human Skin Pigmentation as an Adaptation to UV Radiation.” Proceedings of the National Academy of Sciences 107 (Supplement 2): 8962–68. doi:10.1073/pnas.0914628107
“Em evolução, não há algo global ou definitivamente melhor (…)”, definição que pode ser levada à desatenção por partes dos professores no campo valorativo, por exemplo. Esse texto tem um potencial que deve ser considerado pelo corpo docente, principalmente quando os mesmos compõem o ensino de base. Em datas importantes como “dia da consciência negra” nos deparamos com imagens estereotipadas, que cercam os sujeitos de uma pseudo-euforia ingênua, sem qualquer menção à consciência.
Parabéns pelo texto e pela linguagem adotada!
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Oi Filipe, obrigado pela mensagem. A ideia do blog é criar um espaço que, entre outros temas, trata das relações entre ciências e sociedade. Todos os assuntos ligados à questão de raças humana são de imensa importância. Um abraço, Diogo.
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Olá professor, parabéns pela pertinência do texto! Tem oferecido a disciplina de Processos Evolutivos? Sou ex-aluna. Gde abraço!
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Obrigado! Processos evolutivos é oferecida todos os anos, no segundo semestre. Abraço!
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O texto está muito informativo e interessante. Mas me deixou curiosa, já que o tom da pele se torna vantajoso ou não, conforme o ambiente. Isso ainda acontece? Tipo, os descendentes de escravos que vivem na Europa e na América do Norte, com o tempo, ao longo de várias gerações, ficarão com a pele mais clara? O mesmo irá ocorrer com os sul-africanos brancos?
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Oi Gisele, sua pergunta é interessante. Os efeitos da cor de pele ainda persistem: pessoas com pele escura (geralmente descendentes de africanos) são mais afetados pela deficiência de vitamina D do que aqueles de pele branca, quando moram no hemisfério norte. Mas isso não significa que a seleção natural irá atuar levando a mudanças de cor de pele, pois a medicina hoje em dia tem um papel de suprir a deficiência de vitamina D. Isso nos dá um exemplo de como a forma como a força da seleção natural muda, à medida que ocorrem mudanças no ambiente (neste caso, a presença da medicina é a mudança relevante).
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Este txt é sintético, com uma linguagem clara e compreensível p trabalhar com a educação básica. Obg, professor! É uma das referências no nosso projeto interdiscilpinar sobre racismo, com as turmas da 3a série do Ensino Médio, IF BAIANO, Campus Teixeira de Freitas.
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Obrigado pelo retorno, Alana. Fico muito feliz que o texto contribua para suas atividades em aula. Espero em breve vir com novos posts. Abraços para você e seus alunos e suas alunas. Diogo
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