Com o advento das redes sociais, migramos definitivamente de uma sociedade formatada por classes sociais, para outra formatada por grupos identitários fragmentários, constituídos a partir de fatores de coesão relativamente transitórios. Considere-se por exemplo os grupos LGBT: falar sobre o que une grupos de gays, lésbicas, e outras minorias marginalizadas de gênero,é um desafio que apenas quem está dentro do movimento, em contínua atualização, poderia ousar, pois o número de minorias sob o guarda-chuva LGBT se altera a todo momento. Outro dia me deparei com um cartaz sobre um sarau LGBTTQI, e aí fiquei a ruminar minha tanta ignorância diante do festival de letras desta sigla. Percebi que eu não saberia nem ao menos identificar o abecedário travalínguas dos convidados ao sarau, quem dirá discutir os conceitos transmutantes que se encontram por detrás das letras (para os curiosos, como eu, pedi ‘ajuda aos universitários’ para identificar os termos por trás das letras e eles, após um certo debate, concluíram que o sarau se refere a lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, queers e intersexo).
A fragmentação da sociedade em grupos identitários pequenos e transitórios pode refletir um deslocamento interessante, no sentido do rompimento com uma estrutura racional que classificaria e organizaria logicamente os agrupamentos sociais, de modo a dar-lhes sentido antes de tudo a partir de seu exterior. Classes identitárias forjadas a partir de teorias histórico-sociais ou ideologias abrangentes não teriam mais espaço na sociedade fragmentária pós-moderna, seja porque o mundo se tornou mais complexo do que as dicotomias público/privado, patrão/empregado, livre mercado/controle estatal, seja porque os indivíduos passaram a desconfiar de classificações por demais generalizantes, distantes do vivido a ponto de se tornarem puras abstrações.
Historicamente, buscar generalizações abstratas que se apliquem a múltiplas situações foi desde sempre um objetivo importante da ciência, e uma decorrência da própria busca de objetividade: o cientista visa fugir do pessoal e subjetivo, do contexto local, para analisar os problemas à distância, com visão ampla. Nada mais distante da vida pessoal e de identidades locais do que modelos abstratos, fundados ou não em sistemas de equações matemáticas, propostas geralmente baseadas em poucas e amplamente aceitas premissas. Assim, as ciências da complexidade, por exemplo, se utilizam de meta-teorias hiper-gerais, como a teoria geral de sistemas, que se aplicam à física, química, biologia, ecologia, sociologia: de fato, a qualquer organização que possa ser decomposta em componentes, com suas propriedades sendo explicadas a partir das interações de tais componentes, e deles com o entorno.
Como exemplo do poder estruturante destas meta-teorias, cito o mais recente livro do pesquisador basco Alvaro Moreno e seu colega Matteo Mossio. Partindo da teoria geral de sistemas, estes autores conseguiram abarcar em um mesmo quadro de pensamento áreas distintas da biologia, como a origem da vida, a embriologia, a ecologia, ou o comportamento animal. Em sua proposta, todos estes sistemas surgem a partir da organização de restrições internas que se produzem umas às outras, canalizando a energia absorvida do meio para processos que retro-alimentam esta mesma organização. Seria a organização de restrições internas que caracterizaria os sistemas vivos, e a eles daria relativa autonomia em relação à matéria bruta do mundo não-vivo. A organização de restrições se constituiria em um novo nível de organização, dando autonomia ao ser vivo em relação ao mundo material inerte. A evolução dos sistemas biológicos consistiria, em parte, na elaboração de novos níveis de organização que teriam uma ação regulatória sobre os níveis inferiores.
Como exemplo desta transição entre níveis de organização, podemos apresentar o caso de Myxococcus xanthus, uma bactéria de vida solitária que, em certas circunstâncias (escassez de alimento), passa a formar agregados de cerca de 100 mil indivíduos, com comportamento social. O deslocamento dos indivíduos dentro do grupo social é direcional, mantendo coeso o grupo. Assim, a interação social inibe os mecanismos de deslocamento solitário, o que se dá através de mudanças na rede metabólica do indivíduo em função da própria interação social. No entanto, esta interação se dá de forma lenta: a alteração da rede metabólica de um indivíduo requer tempo. A rede metabólica modificada leva à produção de substâncias na membrana que, em contato com outro indivíduo, potencializam a alteração da rede metabólica neste novo indivíduo, gerando uma onda de alteração de metabolismo. Ao final, os indivíduos (em novo estado metabólico) passam a agir em sintonia, na lenta velocidade da comunicação química de contato. Este agregado de bactérias, no entanto, não apresenta um processamento de informação que dê conta, simultaneamente, de toda sua extensão ‘corporal’. A massa de bactérias se desloca com a velocidade de uma bactéria isolada, pois ocorre apenas a auto-organização em um coletivo e lento micro-deslocamento. Já em organismos realmente multicelulares, como as medusas, a situação é muito distinta, pois há uma intensa e instantânea integração entre células funcional e morfologicamente diferenciadas, mesmo que imensamente distantes entre si. Esta integração se dá principalmente através de um sistema de comunicação especializado ultra-rápido: o sistema nervoso. Dessa forma, passamos de um simples agregado de bactérias que se desloca microscópica e monotonicamente, para um complexo organismo que se desloca macroscopicamente, com uma grande diversidade de comportamentos ecologicamente relevantes e especializados, associados à defesa, ao forrageamento, ou à busca de ambientes favoráveis, entre outras possibilidades. A comunicação neural veloz permite a ação coordenada de longa distância, e instancia um novo nível de organização, neste caso, cognitivo.
Ao mostrar esta estrutura profunda comum aos sistemas biológicos, Moreno e Mossio não deixam de discutir questões filosóficas fundamentais. Sua abordagem organizacional aparentemente resolve o problema da teleologia, ou seja, o problema lógico que surge quando os efeitos de uma estrutura biológica parecem ser também sua causa. Resolve também a questão da normatividade, ou seja, a questão da atribuição de normas de funcionamento, que deveriam apenas existir no âmbito do humano, ao mundo biológico em geral. Se contrapõe, com sucesso, a uma importante corrente filosófica segundo a qual componentes em um nível de organização (células) não podem causar efeitos no nível superior (organismo) [ou mesmo no nível inferior (organelas)], segundo a qual partes de um sistema não poderiam agir sobre o conjunto do sistema: elas simplesmente constituiriam o sistema. Assim, a abrangência do conjunto da obra de Moreno e Mossio é verdadeiramente impressionante, e exemplifica à perfeição o poder de esquemas meta-teóricos gerais.
Esquemas meta-teóricos com tamanha generalidade são poderosos e prestigiados entre cientistas, mas sua aplicação concreta a casos particulares é o que permitiria prever acontecimentos no mundo real. Esta aplicação da teoria a casos concretos requer muito mais do que uma teoria ampla e internamente consistente. Requer a especificação de uma infinidade de parâmetros e variáveis locais do sistema. Para a especificação destes parâmetros, é necessária a articulação de múltiplos especialistas, que introduzirão no sistema informação pertinente à realidade local de um sistema empírico particular. No entanto, as especialidades não contribuem com o modelo geral apenas com dados brutos, pois cada especialidade se organiza ao redor de teorias de menor escala, sobre as quais frequentemente não há consenso. Dessa forma, para a modelagem de um sistema empírico particular, há que se fazer também escolhas entre teorias não consensuais, além de escolhas metodológicas e práticas, todas elas necessárias para a efetiva integração de uma equipe multidisciplinar. A questão que nos importa aqui é que escolhas distintas poderiam levar a diferentes resultados, ou seja, a diferentes modelos de um mesmo sistema empírico. Tais modelos poderiam ser até mesmo incompatíveis entre si. Esta situação não seria problemática se estivéssemos sempre trabalhando no longo prazo do caminhar científico, pois o debate interno à comunidade terminaria ao final por gerar consensos, modelos aceitos pelo conjunto da comunidade acadêmica. No entanto, esta situação se agrava e torna-se especialmente perigosa quando temos urgências de interesses econômicos poderosos por trás das questões de pesquisa.
Quando o resultado de pesquisas científicas contradizem interesses imediatos de indústrias farmacêuticas, petrolíferas, ou de outros grandes conglomerados econômicos, frequentemente inicia-se uma guerra de discursos, que pode ser muito efetiva quando há fissuras internas na comunidade acadêmica. Esta guerra envolve a fabricação de contra-verdades parciais, ou inverdades provisórias, de fôlego curto, patrocinadas direta ou indiretamente pelos próprios conglomerados econômicos. Na indústria alimentícia, para tomar um exemplo corriqueiro, estamos acostumados com esta guerra de discursos, e assim às vezes manteiga ou ovos fazem bem à saúde, outras vezes prejudicam o funcionamento de nosso coração ou nossa circulação sanguínea. Cria-se assim uma cortina de fumaça sob a qual sobrevive o poderio econômico.
Quando esta guerra é prolongada, áreas inteiras de pesquisa podem terminar em descrédito frente à sociedade. Foi dessa forma que, por muito tempo, os acordos internacionais sobre o aquecimento global foram retardados: seja em função da descrença nos modelos climáticos em si, seja em função de controvérsias com relação à sua aplicação. De forma ainda mais dramática para nossa realidade local, até hoje não conseguimos emplacar no Brasil um discurso conservacionista com força suficiente para compor as decisões econômicas fundamentais, que assim terminam por favorecer, invariavelmente, o agronegócio, a mineração, as construtoras. Além disso, esta guerra de discursos alimentada pelo poder econômico de corporações como a Vale do Rio Doce termina, em última instância, por colocar em descrédito o esforço intelectual e, em última instância, toda uma geração de ecólogos de nosso país.
Este esforço para desacreditar a ciência tem muitas vertentes, e uma delas é a quase que criminalização da estatística nos tempos pós-modernos. A estatística foi criada há cerca de meio século para avaliar sociedades, levantando atributos tais como a taxa de crescimento, ou o nível de emprego e, nos tempos atuais, medidas mais elaboradas, como o produto interno bruto e a taxa de inflação. Dos tempos de glória do passado a estatística guarda pouco, pois tem sido vista pela sociedade atual como a produtora de uma numerologia frígida, de valores abstratos utilizados por políticos basicamente para enganar a população. Em outra vertente, a estatística é criticada porque suas frias abstrações numéricas são inteiramente descoladas da calorosa e delicada narrativa histórica através da qual as pessoas efetivamente se engajam na sociedade. Muitos se sentem ultrajados quando pessoas são reduzidas a números. Além disso, embora sintetizar numericamente o funcionamento de uma sociedade possa ter funcionado bem nos últimos 450 anos, talvez isso não seja mais tão simples em nossas megalópoles interconectadas por redes de relacionamento (Facebook®, Twitter®) com imensa fluidez identitária, nas quais bolhas sociais surgem, explodem, e desaparecem em questão de dias. Neste novo mundo hiperconectado, a verdade é menos relevante do que aquilo que se fala dela (spinning, trending topics). Nos subgupos internáuticos (bolhas de identidade transitória) a invenção de fatos alternativos inaugura um mundo no qual a verdade perde terreno, e a pós-verdade reina e contagia as massas em ondas emocionais. Temos visto este fenômeno com certa regularidade, nos tsunamis políticos do ano passado, não apenas no Brasil (impedimento da presidenta), mas também no Reino Unido (apoio ao Brexit) e nos Estados Unidos (eleição de Donald Trump). Uma nova estatística é necessária para tratar esta efervescência social, dado que grandes sínteses da sociedade dizem pouco na ausência de um tecido social estável, na emergência de um verdadeiro líquido social em turbulência de likes e emoticons. No momento, esta nova estatística (o chamado big data) está ainda privatizada na mão de grandes corporações, como Facebook® e Google®, que preferem lucrar com esta informação que a eles fornecemos gratuitamente, que torná-la pública para o planejamento de políticas sociais mais efetivas. Sem acesso público ao big data, temos que nos contentar com anuários estatísticos desatualizados e desinteressantes, e a dinâmica do sistema social pode terminar por assassinar a credibilidade pública da própria estatística, já rejeitada por boa parte da sociedade.
Apesar desta contemporânea crítica ao mundo abstrato da ciência e da estatística, ‘abstrações’ sociais (bolhas de relacionamento virtual) têm ganhado uma realidade concreta na medida que passamos a viver um mundo de pós verdade, ou seja, nosso mundo atual baseado no espetáculo, este nosso mundo presente no qual a representação virtual vale mais do que a verdade, do que aquilo que de fato ocorreu. O mundo enquanto representação (nossa vida nas redes sociais) ganha tanto mais relevância quanto mais a representação de um cotidiano repetitivo e muitas vezes enfadonho for maquiada em fotos vibrantes, editadas em vídeos espetaculares, e roteirizadas profissionalmente, na própria rede social, em um thriller eletrizante com paixões arrebatadoras, amores delicados e eternos, em finais paradisíacos.
Alguns poderiam apontar que estas bolhas virtuais (movimentos sociais virtuais) andam par e passo com a fragmentação dos coletivos de ação (movimentos sociais reais, que invadem as ruas). As semelhanças no entanto são superficiais. A principal semelhança diz respeito ao fato de que ambas as vertentes rejeitam o objetivismo da ciência e a quantificação do humano. De resto, estas duas vertentes contemporâneas são opostas em tudo. Em particular, elas representam uma exacerbação desta negação da ciência em sentidos opostos. Os movimentos sociais reais rejeitam a abstração em prol da vivência concreta dos indivíduos e coletivos de ação, que consideram muito mais complexa do que qualquer modelo abstrato. Por assim dizer, esta vertente desce o nível de organização em que realiza sua análise: rejeita os números sintéticos sobre a sociedade, para lidar diretamente com indivíduos e pequenos grupos em sua interação cotidiana. Por sua vez, a vertente da sociedade do espetáculo (dos movimentos sociais virtuais) rejeita a quantificação científica da sociedade em prol de um simulacro de vida que habita apenas o mundo do simbólico, o mundo da representação, o qual lhes parece mais amigável do que o cotidiano bruto. Por assim dizer, os movimentos sociais virtuais optaram por abandonar os níveis inferiores de análise (a vida dos indivíduos como ela é), mantendo-se apenas no nível recém constituído da vida enquanto filme, buscando conduzir a sociedade a partir de uma filmografia vívida, posto que colada à vida dos indivíduos e pequenos grupos. Ambos os movimentos trazem preocupação. A vertente dos movimentos sociais reais pode terminar por se perder na miríade de detalhes do nível de organização inferior, nas complexidades das decisões dos indivíduos, perdendo de vista até mesmo a possibilidade de um entendimento global da sociedade. Já a vertente dos movimentos virtuais pode terminar por se perder no jogo de representações e aparências, perdendo de vista as consequências concretas deste simulacro de vida que se imagina cotidianamente ideal. Em outras palavras, este mundo virtual pode muitas vezes se desacoplar do mundo real, e conduzir a vida real em direção a aparências enganosas.
Alguns poderiam objetar, veementemente, apontando que esta seria justamente a função dos ideais; que eles deveriam justamente conduzir a vida real em direção ao sonho imaginado; que o poder do símbolo, da linguagem, da cultura, é justamente o de retirar-nos do aqui-agora, de modo a nos permitir viver em um futuro apenas pensado, ou construir um passado melhor para todos. Esta é realmente uma função para lá de nobre, contra a qual não pretendo me opor de forma alguma. Ninguém em sã consciência defenderia a extinção do sonhar, ninguém gostaria de ver impedido o livre curso das ideias, nem de travar a busca de ideais. No entanto, enquanto cientista, gostaria que estes ideais tivessem um pé na realidade, e para isso precisamos dos modelos do mundo empírico, pois eles conectam o presente ao futuro. Segundo, como biólogo e ser humano, preferiria que nossos sonhos não girassem ao redor de uma vida futura em espaçonaves ou em mundos habitáveis fora do sistema solar. A trajetória do gênero humano não deveria ser a de um assassino serial de mundos, que busca a tecnologia apenas para partir sempre novamente em busca de novos planetas habitáveis (semana passada, por exemplo, a notícia de que achamos mais sete planetas potencialmente habitáveis na constelação de Aquarius foi divulgada na mídia em um tom quase esperançoso … algo como: achamos a luz no fim do túnel … o pequeno ‘detalhe’ é que este túnel se abre em luz a ‘apenas’ 39 anos luz do aqui-agora). Como biólogo e ser humano entendo que temos que conseguir conviver com nossos erros, corrigindo-os de forma responsável, e abandonar este pseudo-sonho de fuga permanente. Terceiro, enquanto pesquisador da cognição, entendo que o mundo idealizado não existe nunca descolado do mundo real. Este descolamento é uma ficção, inclusive científica. A estratificação do mundo em níveis de organização (célula, organismo; indivíduo, sociedade; comunidade, ecossistema), incluindo o nível da mente como distinta do corpo, não implica a independência entre estes níveis. Nossos pensamentos são parte de nosso corpo em funcionamento, e assim nossos ideais têm carne e osso (pretendo desenvolver este ponto em uma próxima publicação). Finalmente, vale o alerta de que nossos sonhos mais queridos, quando viram realidade, têm quase sempre o condão do desencanto. É que, quando sonhamos, estamos sempre com um modelo muito incompleto do futuro desejado, e a especificação dos detalhes empíricos deste modelo no mundo real termina por trazer consequências indesejadas infernais e, como bem sabemos, o diabo, mora nos detalhes.
Hilton Japyassú (UFBA)
Para saber mais:
Arnellos, A., & Moreno, A. (2015). Multicellular agency: an organizational view. Biology & Philosophy, 30(3), 333-357.
Moreno, A. & Mossio, M. (2015) Biological Autonomy: A Philosophical and Theoretical Enquiry. Springer, London, 221pp.
Rosslenbroich, B. (2016). Alvaro Moreno and Matteo Mossio: Biological autonomy: a philosophical and theoretical enquiry. Biology & Philosophy, 31(4), 591-601.
Figura: Bactérias Myxococcus xanthus se agregam em colônias em situação de estresse, quando passam a ter comportamentos sociais, como o deslocamento coordenado (imagem: Gregory J. Vellcer).