Coevolução Gene-Cultura

Estudos recentes sugerem que mudanças na estrutura social e cultural das sociedades humanas podem promover e acelerar sua evolução biológica.

Práticas culturais têm alterado drasticamente as condições ambientais e comportamentais de nossa espécie, promovendo mudanças rápidas e marcantes em nosso genoma. Um ramo da genética de populações teórica, conhecido como Teoria da Coevolução Gene-Cultura, estuda os fenômenos evolutivos que surgem das interações entre os sistemas de transmissão genéticos e culturais, mostrando através de diversos exemplos como a transmissão cultural pode modificar o processo de Seleção Natural em humanos. Cultura é entendida, nesse contexto, como o conjunto de informações capazes de modificar o comportamento dos indivíduos e adquiridas pelos membros de um grupo através de ensinamento, imitação e outras formas de transmissão social.

O entendimento de como processos culturais moldaram a diversidade biológica de certos grupos ou populações baseia-se na Teoria da Construção de Nicho. Por definição, a Construção de Nicho é o processo pelo qual uma espécie, ou organismo, através de suas atividades e escolhas, é capaz de modificar o ambiente em que vive. O exemplo mais importante na história do Homo sapiens, que foi um gatilho poderoso no estabelecimento de um novo ciclo de coevolução gene-cultura, foi o desenvolvimento da agricultura e a domesticação de animais durante o Neolítico (aproximadamente 10.000 anos atrás). A Revolução do Neolítico é provavelmente o exemplo mais concreto, do ponto de vista biológico, de um processo de construção de nicho em diferentes regiões do globo que gerou pressões seletivas distintas em diferentes populações humanas.

A transição para a agricultura tem sido amplamente considerada como um ponto inicial para o surgimento das civilizações e seus elementos fundamentais, trazendo benefícios nutricionais que se refletem em mudanças em características fenotípicas, tanto morfológicas quanto metabólicas. No entanto, ainda que estas vantagens sejam observadas em longo prazo após a estabilização dos meios de produção de alimento, durante um largo período o processo de transição para agricultura levou a deficiências nutricionais, diminuindo os índices de saúde nas populações que passavam de estratégias caçadoras-coletoras para agriculturalistas. Sendo assim, o investimento na agricultura não foi um processo direcional de ganho incondicional, como parecia, em princípio, facilmente dedutível a partir do grande sucesso obtido pelas sociedades agriculturalistas do Velho e Novo Mundo. Diversos estudos em diferentes grupos humanos mostram que, para que a agricultura se tornasse benéfica em termos de taxa de retorno energético, foi necessário um período de cerca de 4000 anos de desenvolvimento e melhoramento da mesma pelas sociedades que a desenvolveram.

Do ponto de vista evolutivo, alguns dos mais interessantes sinais de seleção natural têm sido atribuídos a adaptações à dieta em humanos. Atualmente são conhecidas mais de 100 regiões genômicas que foram alvos prováveis de seleção positiva recente, resultante possivelmente de pressões culturais oriundas de nichos recentemente construídos. Um dos casos mais conhecidos de coevolução de gene-cultura é a associação entre a capacidade de humanos adultos de digerir a lactose encontrada no leite fresco (devido à persistência da enzima lactase) e a domesticação de gado e de outros animais que fornecem leite. Na Europa, a persistência da enzima lactase varia num gradiente sul-norte entre 15 e 96%, aumentando de frequência nos grupos historicamente pastoris, que introduziram a prática pecuarista há mais de 5.000 anos antes do presente. A mutação no gene LCT associada à capacidade de digerir lactose em europeus surgiu há aproximadamente 7.500 anos, mantendo-se em baixas frequências nas populações europeias até aproximadamente 5.000 anos atrás, quando a introdução da pecuária nessas comunidades, associada com diminuição de outras fontes de alimentos, tornou indivíduos portadores de tal mutação mais aptos ao novo nicho construído. Ou seja, numa situação de mudança de nicho, indivíduos que carregavam desde muito tempo a mutação que possibilitava digerir lactose puderam beneficiar-se do nicho pecuarista, tornaram-se mais aptos ao novo ambiente e tiveram mais descendentes que também carregavam tal mutação genética, aumentando a frequência de indivíduos tolerantes ao consumo de leite na idade adulta.

Em populações nativas da América, foi descrito um paralelo interessante ao da tolerância à lactose. Ele envolve a construção do nicho agriculturalista na Mesoamérica, especializado no cultivo do milho, como vantajoso para indivíduos portadores de uma mutação em um gene responsável pelo metabolismo de lipídios, o gene ABCA1. Durante a transição de sociedades caçadoras-coletoras para agriculturalistas incipientes na Mesoamérica, na qual períodos de fome eram constantes, indivíduos portadores da variante 230C do gene ABCA1 teriam mais resistência à subnutrição, devido à associaçâo desse alelo à capacidade de armazenar colesterol livre dentro da célula. Hoje, com a mudança de dietas e abundância de nutrientes, indivíduos portadores do alelo variante 230C são mais propensos a desenvolver as chamadas doenças da opulência (diabetes, pressão alta e obesidade).

Nos dois exemplos descritos acima, a cultura age como um catalisador da diversidade genética pré-existente, alterando o valor adaptativo dos indivíduos ao gerar novas pressões seletivas. Ao construir um nicho que a longo prazo será um fator seletivo, espécies construtoras de nicho, como a espécie humana, se diferenciam de espécies não construtoras de nicho, passando de passivas a ativas em relação ao processo de seleção natural.

Uma revisão recente sobre Coevolução Gene-Cultura pode ser encontrada em edição especial sobre Evolução Humana da Revista Ciência & Ambiente, editada por Paulo C. Abrantes (UNB). Essa edição conta com diversos textos de autores de diversas áreas do conhecimento envolvidas no estudo de diferentes aspectos da Evolução Humana, tais como, paleoantrolopologia e paleogenômica, diversificação humana e conceitos raciais, origens do pensamento simbólico e evolução da linguagem, dentre outros assuntos interessantes.

Tábita Hünemeier

(Instituto de Biociências, USP)

Para saber mais:

Curry, A. (2013) The Milk Revolution. Nature 500:20–22.

Gebault, P. et al. (2011) Evolution of lactase persistence: an example of human niche construction. Philosophical Transactions of the Royal Society of London B, Biological Sciences 366(1566):863–877.

Herrera, R. J., Garcia-Bertrand R. & Salzano, F. M. (2016) Genomes, Evolution, and Culture: Past, Present, and Future of Humankind. Wiley-Blackwell, 264 pp.

Hünemeier, T. et al. (2012) Evolutionary Responses to a Constructed Niche: Ancient Mesoamericans as a Model of Gene-Culture Coevolution. PLoS One 7(6):e38862.

Laland, K. N., Odling, Smee, J. & Myles, S. (2010) How culture shaped the human genome: bringing genetics and the human sciences together. Nature Reviews Genetics 11:137-148.

Laland, K., Matthews, B. & Feldman, M. W. (2016) An introduction to niche construction theory. Evolutionary Ecology 30(2): 191-202.

Mathieson, I. et al. (2015) Genome-wide patterns of selection in 230 ancient Eurasians. Nature 528:449-503.

Figura: El Cultivo del Maiz – Diego Rivera

2 comentários em “Coevolução Gene-Cultura”

  1. Parabéns pelo texto, professora.
    Você sabe me informar se publicações mais recentes da área da antropologia/ Sociologia já tratam disso ao abordar temas como sociogênese e evolução do conceito de cultura?

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